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Uma história sobre mulheres cativas dos seus pais
Opinião Viver 11 min. 10.03.2023
Psiquiatra

Uma história sobre mulheres cativas dos seus pais

Opinião Viver 11 min. 10.03.2023
Psiquiatra

Uma história sobre mulheres cativas dos seus pais

Diogo RAMADA CURTO
Diogo RAMADA CURTO
Aproveito a liberdade desta coluna para contar uma pequena história. Se a tivesse de catalogar, diria que corresponde ao género de realismo ficcionado. Os elementos que a compõem pouco ou nada têm a ver comigo, a não ser no início. Tão pouco posso apresentar como sendo minhas as ideias que adianto.

A distância a que me coloco em relação ao que vou contar está também relacionada com o facto de ter surgido numa situação inesperada. E o pior é que o relato em nada me ajuda a resolver os problemas de meia-idade tardia que vivo em pleno. Não serve para nada... Mas, ainda assim, aqui vai.

No último ano, uma grande amiga começou a achar que eu estava a passar por uma evidente transformação. Uma agressividade inusitada no espaço público – sobretudo no meu local de trabalho, resultado de uma acumulação de ressentimentos e frustrações – contrastava com uma espécie de letargia e passividade no espaço mais privado das relações íntimas. Ao esquecimento de palavras e à amnésia em relação a alguns nomes, uma espécie de tristeza profunda estava a tomar conta de mim. 

Depois de me dizer o que pensava, sem rebuço, confrontou-me com essa dura realidade, reconhecendo que pouco mais podia fazer para me ajudar. Entretanto, informara-se com cuidado para me recomendar um muito conhecido psiquiatra, que não conhecia bem, mas respeitava. 

Explicou-me em pormenor – pois também ela é médica de profissão, embora especialista noutras áreas –  que, mesmo considerando a hipótese de o meu problema ser do foro neurológico, melhor seria ter um psiquiatra, eventualmente dobrado de psicanalista, para me ajudar. No seu entender, só indo ao fundo do poço, seria possível fazer com que eu saísse do buraco em que me estava a meter, de maneira precoce.  

Compareci no dia e hora marcados. Fui pontual, talvez para compensar o extremo nervosismo que tomara conta de mim. Por duas vezes na minha vida, convivera de perto com o trabalho de psiquiatras e aprendi a ter por eles um enorme respeito. Mas nunca fora eu o paciente, ou seja, nunca tivera de me sentar na cadeira, ou no divã, a falar de mim. A minha experiência na matéria era, pois, por interposta pessoa o que só por si me levava a reconhecer o trabalho dos psiquiatras, mas sem chegar a estabelecer com eles ou elas uma relação directa. 

O médico psiquiatra em causa era pouco mais velho do que eu e apresentava uma compleição física parecida comigo. Teria feito desporto em novo e depois ter-se-ia deixado abandalhar, no sofá e em comezainas. Informei-me acerca da sua grande experiência hospitalar, a par da de consultório, o que criou em mim uma sensação de conforto. 

Desde a primeira sessão, procurei expor-me e ir directo ao que me preocupava. Sabia que não estava ali para me resolver na totalidade, seria mesmo impossível limpar de dentro de mim todo um peso que carregava, mas estava preparado para receber ajuda em coisas pontuais que me pudessem fazer sair do estado de tristeza e passividade em que me encontrava. 

Ainda não sei ao certo por que razão, mas talvez desde a segunda ou terceira sessão, senti que o experiente médico à minha frente me guiava por um caminho principal – o das minhas relações amorosas. Deixando de lado, o mergulho na infância. Talvez, eu próprio, lhe tivesse dado a entender que existia nelas uma espécie de padrão. Neste sentido as indicações que dele comecei por receber, muito ténues, eram apenas uma reelaboração do que eu próprio dizia, sem grande método e de maneira pouco sistemática. Mesmo assim, acho que foi suficientemente perspicaz para perceber que o problema, em princípio, se encontrava no modo como eu encarava as minhas relações amorosas. 

Só as deslindando se poderia ir mais fundo, recuando, mais tarde, à família primordial e às relações nela estabelecidas. Era um caminho em marcha atrás, onde se começava por perceber o que era mais recente, para daí alcançar um período mais recuado. Nunca falámos nestes termos, mas confesso que comecei a entender ser esta a estratégia a que tinha de procurar corresponder.

As visitas ocorriam duas vezes por semana e na sétima sessão, depois de eu ter monopolizado a conversa, o meu médico arriscou uma história que aqui gostava de reproduzir. Penso que o fez por achar que continha em si um padrão que, em parte tinha afectado quase todas as minhas relações amorosas. Refiro-me à história das mulheres que ficaram cativas dos seus próprios pais e que, qualquer que seja o seu valor individual, passaram a maior parte da sua vida numa espécie de jogo. 

Um jogo paradoxal, insista-se, porque, por um lado, o objectivo é sempre o de abater essa figura paterna que pesa de forma extraordinária sobre a existência das filhas, maltratadas ou não; por outro lado, no extremo oposto do mesmo jogo, encontra-se a busca de um substituto (talvez capaz de criar uma alternativa ao interdito constituído pelo incesto) projectado na figura do homem ideal. 

Não era esta bem a história que queria contar, nem ela corresponde bem ao que o meu médico me contou. Aliás, em lugar de narrar uma história apenas consegui, até agora e de modo mais substantivo, apresentar uma ligação, que não percebo muito bem, entre as minhas relações amorosas e a definição de um tipo de mulher cativa do próprio pai e, por isso mesmo, enredada num jogo paradoxal, onde, de um lado, está a violência do parricídio e, do outro, a necessidade de quebrar com o tabu do incesto, sublimando a atracção pela figura paterna num qualquer substituto. 

Reconheço que para chegar à caracterização desse tipo de mulher, o meu psiquiatra andou às voltas, trazendo para as nossas conversas uma série de casos de mulheres que ele tinha conhecido. Aparentemente muito diferentes, em termos de origens familiares, itinerário e horizontes, todas se sentiam nas suas vidas esmagadas pelo peso de pais demasiado fortes, tanto para o bem como para o mal.              

Interrogo-me acerca da inibição que sinto agora (apesar de já o ter prometido fazer) em relação ao simples facto de querer reproduzir todos esses casos narrados de forma tão eloquente pelo meu psiquiatra. Acho que a razão para essa inibição está em ter medo de ofender alguém das minhas relações que julgue poder encaixar-se ou, pelo menos, aproximar-se deste ou daquele caso. É que, numa crónica passada, em que falei de uma amiga, sem nunca a identificar, cometi um erro tremendo e fui confrontado com a ideia de que tinha invadido a sua privacidade, pelo simples facto de ter reproduzido algumas das suas ideias. 

Tudo isso para me armar em engraçado ou, simplesmente, para arranjar matéria sobre a qual podia escrever acerca dos sentimentos dos outros. Quase perdi essa amiga, por isso não volto a reincidir no mesmo erro. Mesmo sabendo, à partida, que os casos expostos de uma variedade de mulheres que ficaram cativas dos pais, longe de terem sido inventados por mim ou pelo meu psiquiatra, são matéria de velhos arquétipos. Não estou em estado de me meter em confusões e invadir a privacidade seja de quem for. 

Chegado a este ponto, reconheço que a minha história não obedece tanto ao desenvolvimento de uma acção, por protagonistas bem identificados, nem tão-pouco é sustentada por uma intriga. A minha história reduz-se a uma tipologia. O que equivale a dizer que a minha história falhada não é bem uma narrativa, com princípio, meio e fim. De qualquer modo, é irrelevante reflectir sobre o meu falhanço de contador de histórias. 

Mais interessante se afigura explicar que, através da definição de um tipo de mulher, será possível integrar muitos casos marcados por itinerários específicos. É que em todas as mulheres que foram referidas pelo meu psiquiatra, mais do que a voz deste, senti a sua capacidade de dar sentido a vidas em que era notório o peso excessivo, abafador, dos próprios pais. 

Sublinho que, de todas as histórias que ouvi acerca desses pais, as que mais me entusiasmaram foram aquelas que se centraram em pais bons. É que existem mulheres que beneficiaram de um pai presente, tornado insubstituível. Generosos no seu tempo e nos estímulos; respeitadores na sua forma de interagir e de respeitar a individualidade das suas filhas, desde crianças; capazes de as fazer chegar longe tanto intelectual, como sentimentalmente; e satisfeitos com o que recebem em troca sem exigir mundos e fundos das suas meninas. 

Ter um pai bom deste tipo constitui-se num desafio para qualquer mulher, pois raros são os homens que conseguirão ser tão bons. Explicou-me o meu psiquiatra que, nesses casos, as mulheres ganham em tranquilidade e em liberdade, na proporção em que os seus companheiros se sentem desafiados a superar o legado de afectividade e segurança herdado pelas mulheres que escolheram. 

O peso principal e marcante para qualquer mulher advém dos maus pais. Sugadas afectivamente, ou seja, com um enorme deficit sentimental, por quem nunca se contenta com nada. Manchadas por pais desequilibrados, incapazes de manter a estabilidade, só satisfeitos com a excitação em picos, seguida de estados de abatimento. Presenciando, por isso mesmo, estados de excitação e, até de violência, a que se seguem vertigens de depressão. Mais o espectáculo das frustrações e ressentimentos, carregados pela figura paterna, capaz de contaminar todos os que estão à sua volta. 

As mulheres vítimas de maus pais tanto podem continuar a procurar na figura dos seus companheiros o mesmo abuso, já anteriormente sentido pelos seus pais, como podem encontrar nos seus companheiros uma espécie de alvo a abater. Um alvo de substituição, uma vez que, durante uma vida de confronto com um pai mau, dificilmente uma filha consegue ganhar, destruindo ou reeducando o próprio pai. 

Recordo com particular nitidez a sessão em que o meu psiquiatra me falou de todas essas histórias. Nas horas e dias que se lhe seguiram, dediquei-me a retirar as devidas conclusões e a construir a tipologia que agora apresento. Pouco me rala que tenha falhado na construção de uma narrativa. Claro que, entre as histórias ouvidas e a secura deste meu modo classificatório de proceder, não há comparação. As narrativas passaram pelo filtro que lhes impus e perderam em colorido. O que era específico desapareceu, para surgir apenas o esqueleto que lhes servia de base.           

Fui metódico na minha maneira de arrumar as histórias contadas pelo meu psiquiatra. Acho que me esforcei e reconheço ter trabalhado no duro para chegar à sua expressão mais simples. Mas há uma coisa que não percebi e continuo com dificuldade em entender: por que razão me terá ele querido contar tudo isso sobre mulheres cativas dos seus pais? E, questão subsequente: em que é que este mesmo quadro compósito, embora sustentado por uma tipologia tão simples, me pode ajudar? 

Tal é a distância entre os meus problemas, a começar pela minha melancolia, e o quadro de histórias e tipos acabado de referir, que cheguei a pensar não existir nenhuma relação. Não ponho em causa a experiência e a capacidade analítica do meu psiquiatra, mas até comecei a pensar que o seu modo de tomar a palavra nas nossas sessões, acabando com o meu monopólio, teria mais a ver com ele. Sem querer armar-me em sabichão, talvez tivesse sentido, então, em mim a existência de um ombro capaz de compreender histórias vividas com mulheres, sobretudo daquelas de que já tinha sido vítima. 

Sinceramente, não percebo bem se a posição do meu psiquiatra era a de vítima ou de alguém que estava farto de projectar nos outros uma espécie de figura paternal. Até hoje, não sei como dar sentido a todos esses materiais que procurei catalogar e organizar em busca de um sentido, mesmo sem saber para que servem. A única certeza, no meio da minha relação com ele, é que não me sinto melhor, apesar de  já terem passado dois meses de sessões. Mas ainda não perdi a esperança de que algo de bom possa acontecer, embora seja difícil descortinar qual o rumo ou a estratégia, definidos por ambos os lados. Entretanto, o esforço financeiro que faço para pagar as consultas continua, mas ainda não penso em desistir.   

(Autor escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.)

 

 

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