Retratos escondidos de Paris à beira das eleições
Retratos escondidos de Paris à beira das eleições
No início desta semana, estive dia e meio em Paris. Nada mau! Podia ter-me limitado a participar na reunião a que tinha de ir por zoom, sem sair do meu buraco. Mas a universidade que me convidou insistiu em pagar-me avião e estadia. Por isso, não quis desperdiçar a oportunidade. Foi a minha primeira saída para o estrangeiro, depois da pandemia. O hotel com entrada curiosa e uma porta pintada de azul-turquesa tinha uns quartos lúgubres e minúsculos – o costume! Mas não me queixo, julguei que me poriam num outro, bem melhor, onde já tinha estado, mesmo em frente da Sorbonne.
A viagem correu bem, dispus de um fim de tarde e de uma manhã só para mim, uma vez que a reunião foi no dia da volta e durou toda a tarde. Andei a pé e perdi-me nalgumas livrarias. Só assim conseguir ensacar uma quantidade de livros velhos e novos. Não consegui ir a nenhuma exposição, nem entrar num único museu. Infelizmente o Jammes, um dos mais importantes centros do livro antigos do mundo, estava fechado. Mas lá estive a esborrachar o nariz na vitrine. No único jantar a que tive direito, comi um belo “filet de boeuf saignant à la citronnelle et au basilic”. Depois, como um verdadeiro animal, fui dormir de barriga cheia.
As minhas viagens profissionais, tal como os meus interesses são tudo coisas demasiado livrescas e académicas para interessarem seja a quem for. Considero, cada vez mais, que a escrita e a investigação vivem de rotinas e são estas práticas mais sedentárias que me permitem trabalhar. E, se uma viagem, por breve que seja, se apresenta como algo de excepcional frente a um quotidiano marcado pela repetição dos hábitos, as minhas idas e vindas são ou, antes, eram quase sempre feitas em função das minhas necessidades de trabalho.
Por todas estas razões, tenho pudor em impingir ao leitor, sob a forma de crónica, as minhas impressões de viajante e até me sinto ridículo em presumir que lá porque fui a Paris posso vir agora fazer um arrazoado do que me ocorreu durante as minhas deambulações. É que o registo autobiográfico, confessional, ainda por cima feito a propósito de uma viagem, grande ou pequena, resvala quase sempre no ridículo quando nos tomamos demasiado a sério e julgamos que aquilo que nos interessa pode, mesmo que de forma breve, interessar aos outros.
Todas estas desculpas servem de introito a uma questão que se me pôs enquanto me debruçava sobre o dito “pavet” e bebia um “pichet” de tinto da Borgonha. Afinal, o que mudou em 35 anos de visitas e de estadias em Paris? Desenganem-se os que pensam que irei responder a esta pergunta com uma cronologia dos acontecimentos ocorridos desde 1987 para cá, isto é, desde o momento que antecedeu a Queda do Muro de Berlim até ao início da Invasão Russa da Ucrânia. Prefiro escolher, apenas, dois ou três fios mais pessoais.
O primeiro diz respeito ao esforço que inicialmente tive de fazer para me apresentar e começar a participar nos seminários de historiadores da Escola dos Altos Estudos. O mundo familiar de onde vinha era demasiado fechado e a universidade portuguesa em que me tinha formado – que acantonara no departamento de sociologia Vitorino Magalhães Godinho, o mais internacional dos historiadores portugueses – não me tinham preparado para viajar para outras paragens. Por isso, cheguei a Paris num Outono magnífico, cheio de camisolas e casacos, com medo do frio. Levava uma mala de rodinhas que um parente me emprestara, mas que eu não sabia se devia puxar ou empurrar. E fui, de carta na mão e com um envelope com livros de Magalhães Godinho, apresentar-me a alguns dos historiadores que mais admirava.
Fi-lo, de início, com um colega com quem dividi projectos e partilhei certezas. Pensávamos, então, que acumular conhecimentos fora nos ajudaria a mudar o que achávamos atrasado cá dentro. Passávamos os dias na Biblioteca Nacional e, quando esta fechava, mudávamo-nos para a biblioteca do Centro Pompidou. A ideia de que ali podíamos aceder a livros que cá não havia era o nosso ópio.
Quando voltei, no ano seguinte, o meu amigo Luís Bernardo, que ali vivia desde os dezoito anos, sempre a trabalhar em diferentes empresas, mas que se licenciara em literatura na Sorbonne, mostrou-me uma outra Paris. Foi com ele que jantei tantas vezes fora e comecei a sair à noite, nos sítios que estavam a dar. Aos domingos, corríamos pelos parques e almoçávamos. Ao arroz de refogado, por mim cozinhado, chamávamos-lhe a memória da nação...
Na meia dúzia de anos que se seguiram, dependi do acolhimento de tanta gente, cada um com a sua Paris para me mostrar. Entre muitos, destaco Jorge da Glória, o conhecido investigador de psicologia social do Centro Nacional de Investigação Científica francês, que me mostrou o seu Marais. Sempre viveu do desperdício da sua inteligência e enorme cultura, concentrando-se tanto na lógica da sua argumentação, quanto na extravagância das suas referências e personagens inventadas. Estar com ele, sempre foi e continua a ser melhor do que ler um livro de ficção.
Décadas passadas, na entrada deste Outono da vida, sentado numa esplanada do Boulevard Saint-Michel, claro que lamento o fecho de tantas livrarias, bem como o notório declínio do mundo intelectual e académico parisiense, em benefício de uma cada vez maior dependência dos grandes centros anglo-americanos e alemães. Também me horroriza que a sombra dos confrontos entre Valéry Giscard d’Estaing, François Miterrand, Jacques Chirac e Raymond Barre, dessas décadas longínquas, possa ter dado lugar ao recente e pobre debate entre Macron e Marine Le Pen.
Em mais de três décadas, também muita coisa mudou em Portugal. Não escondo que, desde então, sempre em conjunto com outros colegas, ajudei a publicar duas colecções de livros de história e ciências sociais, primeiro na Difel, depois nas Edições 70. No total, conto quase sessenta títulos. Um esforço colectivo impressionante, contra ventos e marés, os silêncios da imprensa e as invejas da parte mais mesquinha do mundo académico. Sobretudo, as traduções de livros oriundos de centros mais avançados e escritos por investigadores de diferentes áreas, com grande capacidade de inovar, acabaram por se constituir em referências, neste quadro bastante atrasado em que continuamos a viver.
Ora, esse foi um legado que, em parte, dependeu da ajuda inicial de alguns investigadores franceses, tais como Pierre Bourdieu, Roger Chartier, Jacques Revel e outros. Oxalá as novas gerações, muito mais bem preparadas e cosmopolitas que a minha, saibam intensificar e alargar esse testemunho, feito tantas vezes em esforço e com a falta de meios adequados. Reconhecer as condições e as razões do nosso atraso, centrando-nos nos caminhos da investigação e do conhecimento científico inovador, continuará a ser a melhor forma de continuar a progredir. No fundo, trata-se, uma vez mais, de insistir na necessidade de apelar ao ideal iluminista, francês e não só, das luzes da razão. Contrapondo esse mesmo ideal a tantas formas de barbárie e descivilização com as quais nos confrontamos, hoje, devido à guerra causada pela invasão da Ucrânia pela Rússia.
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