O Novo Mundo onde os luxemburgueses nunca chegaram
O Novo Mundo onde os luxemburgueses nunca chegaram
A estrada para Grevels é um mergulho no Luxemburgo profundo. A estrada serpenteia as florestas do noroeste atravessando pouquíssimas aldeias. Alguns campos estão semeados de milho, há cavalos e vacas e ovelhas a pastar nos lameiros. Depois desagua-se aqui. Grevels é uma povoação de 196 almas localizada na comuna de Wahl. É o segundo município com menor população do país e aquele onde vivem menos estrangeiros. Mas é precisamente aqui que se pode perceber um período da História em que o país mais rico da Europa era pobre e os seus habitantes tiveram de fugir para se alimentar.
Até meados do século XX, Grevels chamava-se Nei Brésil, ou Novo Brasil. Os dois maiores edifícios públicos da povoação, aliás, ainda prestam homenagem a esse nome: o centro cultural e o campo desportivo da escola primária chamam-se assim. É fácil fazer uma piada: da Europa, consegue-se chegar ao Brasil por estrada. Mas a história que a nomenclatura esconde é de uma dureza surpreendente.
“Em 1828, dez famílias partiram destas terras rumo ao porto de Bremen. Eram cerca de cem almas que tinham vendido todas as suas posses para comprar as passagens de barco para o Novo Mundo”, conta Sylvère Welter, funcionário da comuna e dono de uma loja de antiguidades. Tem uma coleção de 1200 livros de história, e muito falam do que aconteceu a este grupo de luxemburgueses.
Treze anos antes, o Grão-Ducado tinha dado os primeiros passos em direção à independência. A invasão napoleónica terminara em 1815 e no Tratado de Versalhes garantira a afirmação autónoma do território, que se afirmaria definitivamente em 1839. Mas a guerra tinha deixado um território devastado e faminto. Milhares de luxemburgueses tiveram de abandonar o país e rumaram ao Novo Mundo. No continente americano estava a esperança de salvação de todos os males.
O sonho perdido
De Bremen ao Rio de Janeiro eram três semanas de viagem. Desde 1821, mercê de um acordo entre a Holanda (que ainda tinha o domínio administrativo do Grão-Ducado) e o Império do Brasil, milhares de luxemburgueses rumaram ao maior país da América do Sul e estabeleceram grandes comunidades nos estados do Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Curitiba e Minas Gerais. Nesse primeiro houve até em tempos uma povoação chamada Lussemburgo, ponto de estabelecimento dos novos colonos.
“Era gente que partia com uma mão à frente e outra atrás à procura de trabalho. Estabeleciam-se na agricultura, alguns montaram negócios, muitos prosperavam. Aconteceu a mesma coisa nos Estados Unidos, sobretudo no estado do Wisconsin”, diz Welter, o homem das antiguidades. Alguns cartazes antigos explicam o negócio. Não era raro que, incluindo na compra da passagem do Atlàntico, estivesse garantida a cada família o direito de exploração de 20.000 hectares de terreno. Era a solução para matar a fome. Bem vistas as coisas, um terço dos luxemburgueses emigraram do país no século XIX. Cinquenta mil para os Estados Unidos, 30 mil para o Brasil.
As dez famílias que saíram de Grevels eram algumas das mais aflitas do Grão-Ducado. Os terrenos em volta tinham sido palco de constantes campos de batalha entre as forças holandesas e as tropas de Napoleão. Terra queimada, onde nem uma arroba de batatas crescia. Partiram então no início de abril rumo a Bremen, mas quando chegou a hora de embarcar chegou uma notícia terrível. “O imperador do Brasil, D. Pedro I, tinha acabado de fechar todas as fronteiras à navegação”, diz Sylvère Welter. “Então estas famílias tiveram de voltar para trás, com ainda menos do que tinham partido.”
Alguns relatos da época, e um romance histórico escrito por Guy Helminger sobre este assunto, que se chama precisamente Neibresilien, explicam que a multidão de cem almas que aqui veio desaguar chegou em total angústia. “Alimentavam-se roubando as hortas de toda a gente porque não tinham dinheiro para comprar nada”, explica o livro. “E isso causou uma enorme tensão em todo o oeste do Luxemburgo.”
Welter e a sua geração cresceram com esta história. “O ano passado morreu o último descendente dos Neibresilien. Era um homem de noventa e muitos chamado Eugéne Moescher e odiava que se referissem aos seus avós assim”, lembra. “Porque dizer aqui a alguém que ele era um novo brasileiro era sinónimo de que ele era um ladrão. E um miserável.”
Sem soluções à vista para toda aquela gente, foi o governo do Grão-Ducado que resolveu investir. “Ofereceram-lhes uns terrenos para que pudessem refazer as suas vidas. Os primeiros anos foram difíceis, mas as coisas lá se foram compondo”, e depois Sylvère Welter lembra-se de uma história que o último descendente dos Neibresilien lhe tinha contado. “Esta gente instalou-se toda em barracas de madeira frias num caminho que ainda hoje se chama Kale Reis.” É luxemburguês para ‘Arroz Frio’, a única coisa que estes homens e mulheres tinham para comer. Nas casas que construíram improvisadas soprava um frio gélido, muitos destes Neibresilien acabariam por cair doentes e alguns não resistiram às pneumonias. O falhanço da emigração é sempre uma história danada.
Do Brasil à América do Norte
Trinta quilómetros separam o Novo Brasil da Pequena América. Descendo a Nacional 12 em direção à capital, acaba por se chegar a Dondelange, na comuna de Kehl. Depois toma-se uma pequena estrada que corre ao lado de um ribeiro em direção a Meispelt dá-se de caras com uma casa branca, bastante antiga, construída em madeira. Uma placa instalada pela autarquia assinala que estamos na Kleng Amerika.
A habitação foi construída em 1856 pelo governo luxemburguês para albergar uma família que tentou e falhou a passagem para os Estados Unidos. “Foram enganados pelo passador em Antuérpia, que desapareceu e nem sequer lhes deixou os bilhetes”, conta Cathy Fayot, a atual proprietária da habitação.
“Este lugar está na minha família há 100 anos, foi o meu avô que o comprou à tal família. Eles tinham animais e um moinho que agora já não existe”, conta a mulher. A dona da Pequena América já viajou diversas vezes para os Estados Unidos, mas não é particular apreciadora dos lugares que visitou: Florida e Nova Iorque.
O lugar onde vive, diz ela, é toda uma lição de humildade. “A história destas pessoas é a de milhares de refugiados e migrantes que tentam hoje chegar à Europa. Também falham, afogam-se, são enganados por passadores. É bom que nos lembremos que o Luxemburgo, onde tanta gente tenta hoje chegar, já viveu a história ao contrário.”
Do outro lado do Atlântico, chega então hoje o reverso da aventura. Os brasileiros são a comunidade estrangeira que mais pedidos de nacionalidade faz ao Luxemburgo. É também o quarto país de destino para onde se mudam os luxemburgueses – depois dos vizinhos França, Bélgica e Alemanha. A rota continua viva.
Num novo Brasil ou numa Pequena América encontra-se uma lição de tolerância e humildade. No país que cresceu e se fez rico há as marcas de um passado em que o povo tinha de fugir e procurar refúgio. Lugares para nos lembrar que as migrações humanas podem ser terríveis para quem se faz à estrada. E que a sobrevivência de quem foge não se faz sem humanidade.
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