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O antropólogo que lê nos ossos a nossa evolução
Sociedade 3 7 min. 04.12.2022
Perfil

O antropólogo que lê nos ossos a nossa evolução

O trabalho de Dany Coutinho Nogueira pode ser comparado a uma mistura entre o que acontece nos filmes de Indiana Jones e as séries CSI e Bones.
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O antropólogo que lê nos ossos a nossa evolução

O trabalho de Dany Coutinho Nogueira pode ser comparado a uma mistura entre o que acontece nos filmes de Indiana Jones e as séries CSI e Bones.
Foto: Rodrigo Cabrita
Sociedade 3 7 min. 04.12.2022
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O antropólogo que lê nos ossos a nossa evolução

Ana TOMÁS
Ana TOMÁS
Dany Coutinho Nogueira, luso-francês, natural de Bordéus e investigador em Coimbra, descobriu um dos casos mais antigos de surdez humana.

Se os ossos podem contar histórias milenares, Dany Coutinho Nogueira é um dos poucos que as consegue decifrar. O antropólogo luso-francês descobriu um dos casos mais antigos de surdez na espécie humana, num fóssil com cerca de 100 mil anos, encontrado há quase meio século, em Marrocos, mas analisado agora sob um novo prisma. 

Os resultados da pesquisa, divulgados para o grande público este verão, são mais um passo no estudo da evolução humana e no conhecimento de como viviam os antigos homo sapiens. São também mais uma nota no palmarés científico da Universidade de Coimbra, onde Dany Coutinho Nogueira exerce atualmente o seu trabalho. Nascido e criado perto da cidade de Bordéus, França, foi aí que se formou, em biologia e geologia, curso que lhe viria a despertar o interesse sobre o passado e a evolução humana. “Aí realmente comecei a interessar-me sobre de onde vínhamos e quais os processos que fizeram com que chegássemos até aqui”, refere ao Contacto. Seguiu-se então um mestrado em antropologia biológica, ainda em Bordéus, e a partir daí a especialização na evolução humana e na análise dos fósseis cronologicamente mais próximos da fase atual da espécie humana. “Cem mil anos parece muito antigo mas na nossa evolução é a parte mais recente.”

A descoberta de um caso de surdez com essa longevidade permitiu perceber o impacto que um problema de saúde desse tipo teve não só na vida daquele indivíduo, um caçador recoletor, mas também na organização social destes homo sapiens que já prestavam auxílio aos seus pares. “Com a incapacidade de caçar, provavelmente, se não tivesse recebido nenhuma ajuda, teria morrido ainda mais depressa.” O antropólogo explica que, para o número de meses que esse indivíduo terá sobrevivido, foi necessário haver “um acompanhamento do resto do grupo e não só para a aquisição de alimentação, mas também para o orientar, porque, tendo problemas de equilíbrio, estaria mais sujeito a quedas ou a perder-se dos outros”.

Dany Coutinho Nogueira, na Universidade de Coimbra, onde é investigador.
Dany Coutinho Nogueira, na Universidade de Coimbra, onde é investigador.
Foto: Rodrigo Cabrita

Prestar cuidados e não marginalizar os elementos mais frágeis não era exclusivo deste grupo de caçadores recoletores. “Noutros locais, mais ou menos na mesma época, sabemos que já havia essa forma de acompanhamento. No sítio onde fiz a minha tese, em Qafzeh, havia um indivíduo que tinha sofrido um traumatismo craniano em criança e que terá perdido a capacidade de falar, mas que sobreviveu vários anos. E quando foi morreu teve direito a uma sepultura particular, mais trabalhada, tendo sido sepultado com mais objetos.” Ou seja, resume o investigador, “há 100 mil anos, na nossa espécie, já havia um acompanhamento de indivíduos com deficiências e na sua morte também havia um cuidado especial”.

Do imaginário da ficção para a realidade

O trabalho de Dany Coutinho Nogueira pode ser comparado a uma mistura entre o que acontece nos filmes de Indiana Jones e as séries CSI e Bones. Excluindo o lado mais fantasioso, o lusodescendente admite que eles se cruzam naquilo que faz. 

“É um pouco de Indiana Jones porque tem a parte da arqueologia, da escavação dos fósseis, vai-se ao terreno, faz-se lá a investigação e recolhem-se muitas informações”, explica, acrescentando que depois há, naturalmente, “a vertente da análise do esqueleto, de procurar aí os detalhes que nos podem dar informações sobre o que é que aconteceu”, e que se assemelha ao que se vê na série Bones. “No caso da Bones o que se procura é sempre mais a identificação, a causa da morte. Nós também fazemos isso e procuramos saber a idade, o sexo da pessoa, atribuir uma identidade ao indivíduo e tentar perceber o que lhe aconteceu”. Por fim, são também algumas as semelhanças com a ciência forense de CSI, porque são usados métodos e contributos diferentes nas investigações. “Não sou especialista em ADN, mas há pessoas que vão estudar o ADN, usamos a imagiologia, isótopos que nos vão dar informações sobre o que é que o indivíduo comeu, se era local ou se era de outro sítio.”

Há 100 mil anos, na nossa espécie, já havia um acompanhamento de indivíduos com deficiências e na sua morte também havia um cuidado especial”

Dany Coutinho Nogueira, antropólogo.

Foi numa das técnicas de “CSI”, a imagiologia, que detetou o caso de surdez com 100 mil anos, quando estava a estudar o ouvido do fóssil do caçador recoletor encontrado em Marrocos, para comparar com os fósseis de Qafzeh, que estudara antes para a sua tese e que são praticamente da mesma altura. “Queria perceber se eram indivíduos próximos morfologicamente ou se eram grupos diferentes. E ao estudar as imagens de micro ct [semelhante a radiografias] observei que havia osso num espaço onde não devia haver. Interessei-me sobre o que poderia ter acontecido e aí vi que se tratava de uma patologia”, explica Dany Coutinho Nogueira.

Os ossos podem revelar detalhes preciosos e o fóssil que estudou é exemplo disso. “A região anatómica, chamada labirinto, que é a parte interna do ouvido, é muito interessante em termos de evolução humana, porque está dentro do osso mais denso do corpo humano, ou seja, conserva-se, por vezes, melhor do que os outros ossos, e a morfologia dessa estrutura é diferente consoante os grupos humanos.”

O trabalho do investigador passa, muitas vezes, pelo laboratório e pela análise de imagens de micro CT dos fósseis, semelhantes às radiografias.
O trabalho do investigador passa, muitas vezes, pelo laboratório e pela análise de imagens de micro CT dos fósseis, semelhantes às radiografias.
Foto: Rodrigo Cabrita

Sobre os dias de hoje, os ossos de há 100 mil anos ensinam-nos que, em termos morfológicos, não mudámos assim tanto enquanto espécie. “Já eram homo sapiens como nós”, explica o antropólogo, que sublinha que “às vezes são os detalhes mais pequenos que dão mais informações”.

Menos frequente que o trabalho de laboratório são as expedições no espírito da saga Indiana Jones. A participação em escavações é rara, mas o projeto que fez Dany Coutinho Nogueira ir para Coimbra permitiu ao investigador voltar ao terreno, quase 10 anos depois. “Este ano fiz uma escavação durante três semanas, em Portugal”.

Foi a primeira que fez em território luso e está relacionada com a investigação que tem em curso atualmente sobre fósseis de indivíduos com oito mil a cinco mil anos, descobertos em Muge, concelho de Salvaterra de Magos. Ali, diz, há vários vestígios arqueológicos “importantes”. “São os últimos caçadores recoletores de Portugal, porque depois começaram a chegar os indivíduos neolíticos, que já eram agricultores e viviam mais de forma sedentária.”

Ficar onde estão os fósseis

A zona de Muge, assim como a do estuário do Sado, concentra “muitas sepulturas” daquelas últimas populações. Estima-se que existam vestígios de 300 indivíduos na localidade do concelho de Salvaterra de Magos. “Os locais foram encontrados em 1863, há cerca de 160 anos, os indivíduos foram enterrados dentro dos concheiros, mas o peso das conchas deformou os esqueletos.” Por isso, explica Dany Coutinho Nogueira, as imagens de TAC serão novamente aliadas preciosas na investigação, permitindo ver o que há “dentro do osso e assim analisar os fósseis”. Para já, o que se sabe é que um evento climático, ocorrido há cerca de 8200 anos, levou a um arrefecimento da temperatura e também da subida do nível do mar, obrigando as populações de caçadores recoletores a migrarem para o interior em busca de recursos.

Francês, filho de pais portugueses, Dany Coutinho Nogueira cresceu na zona de Bordéus. O projeto sobre os fósseis de Muge levou-o a fazer a sua carreira de investigador em Portugal.
Francês, filho de pais portugueses, Dany Coutinho Nogueira cresceu na zona de Bordéus. O projeto sobre os fósseis de Muge levou-o a fazer a sua carreira de investigador em Portugal.
Foto: Rodrigo Cabrita

E se a migração faz parte da evolução humana ao longo dos tempos, definindo as suas diferentes fases, ela também está inscrita no ADN de Dany Coutinho Nogueira, de uma maneira mais pessoal.

Filho de portugueses naturais de Trás-os-Montes, que emigraram com 18 anos para França, onde viveram mais de 30 antes de regressarem a Portugal, o investigador cresceu a ver os pais a trabalharem na importação de fruta. Em criança ainda sonhou ser veterinário, mas com os anos outros interesses surgiram levando-o aos caminhos da antropologia. Mesmo se esta não foi a opção mais óbvia, contou sempre com a confiança dos progenitores, que “vêm com curiosidade” a sua profissão. “Todos queremos saber um pouco sobre de onde viemos. Cada vez que eu trabalho num fóssil, eles perguntam: ’então, o que podes dizer, o que é que aconteceu?’”

Dany Coutinho Nogueira é membro da Sociedade de Antropologia de Paris e mantém a ligação ao meio de investigação francês, onde também iniciou projetos. Mas os planos para os próximos anos passam por continuar em Coimbra, onde está o maior laboratório de antropologia português, até porque há ainda muito por descobrir em Muge. “Gostava de ficar, gosto muito de trabalhar neste laboratório e os fósseis estão em Portugal.”

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