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Manicómios de loucos, laboterapia e neurociência
Opinião Sociedade 12 min. 17.03.2023
História

Manicómios de loucos, laboterapia e neurociência

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Manicómios de loucos, laboterapia e neurociência

Foto:DR
Opinião Sociedade 12 min. 17.03.2023
História

Manicómios de loucos, laboterapia e neurociência

Diogo RAMADA CURTO
Diogo RAMADA CURTO
Revisitar um dossier de 1933, no qual se opuseram opiniões contrárias acerca do tratamento dos loucos na região de Coimbra, pode ajudar a compreender como foi construído o Estado Novo e quais as suas implicações à escala das instituições médicas e académicas.

A 20 de Março de 1933, na Secção de Obras dos Hospitais da Universidade de Coimbra, reuniu, pela primeira vez, a Comissão Administrativa das Obras do Manicómio António Maria de Sena. Integravam-na os professores doutores Elísio de Moura e Bissaya Barreto, médicos conhecidos, o engenheiro civil Pedro Cavalleri Rodrigues Martinho e o Arquitecto Luís Benavente (ANTT, Arquivo Salazar, IN-1A, cx. 318, capilha 7). No despacho de nomeação assinado pelo ministro das Obras Públicas e Comunicações, Duarte Pacheco estipulou que competiria ao primeiro o encargo de orientar a mesma Comissão, tendo em vista gizar um plano de construção “de harmonia com as exigências da psiquiatria contemporânea” (fls. 244-245)

Quatro dias depois da tomada de posse da referida Comissão, já o professor Elísio de Moura, após visita às obras, reconhecia que era necessário começar, desde logo, a proceder ao aproveitamento dos pavilhões que estavam prontos, tendo em vista o internamento dos doentes. Mais informou que era da competência dos técnicos estudar as obras a fazer numa próxima fase. Quanto à assunção de que era necessário fazer-se uma colónia agrícola, Elísio de Moura reconhecia que a área do manicómio era suficiente. Porém, a criação de uma colónia agrícola era-lhe indiferente, uma vez que não lhe interessava tal forma de assistência aos alienados. Neste último ponto, encontrava-se a base da sua discórdia com o seu colega, o médico Bissaya Barreto (fl. 249).  


A partir daqui, Elísio de Moura foi sendo colocado numa posição de cada vez maior isolamento, tendo os restantes membros reforçado os seus laços e levado as suas ideias avante. Nas sessões de Abril, Bissaya Barreto insistiu na ideia de que a construção dos pavilhões do Manicómio Sena não respeitara disposições e princípios indispensáveis ao seu funcionamento moderno. Mais concretamente: “as dimensões das enfermarias, o tipo de janelas (...), o sistema de portas, o modelo do WC, dos lavatórios e da sua disposição, a posição das casas de banho, o pé direito dos compartimentos, a extensão dos vários corredores, a falta de alguns anexos aos serviços, a ausência de boas ligações entre os que existem mostram-nos claramente que não é possível fazer daquelas instalações não digo já um bom manicómio, mas sim um manicómio sofrível” (fls. 252-253). 

Os serviços de agitados deveriam estar instalados em enfermarias onde fosse fácil fazer uma vigilância permanente, para além de se afigurar necessário disporem de salas de balneoterapia, de a localização das enfermarias ser feita para não perturbar a vida e sossego dos outros doentes e de o local para a instalação das próprias retretes ter de corresponder a zonas de fácil vigilância. Ora, nada disto acontecera. Pelo contrário, as enfermarias tinham sido colocadas a uma curta distância da via pública, quando em toda a parte eram atiradas para lugares retirados. Até no pormenor de utilização de uma grade, delimitando um pequeno corredor de terreno, se acabou por criar uma espécie de “jaula de feras do jardim zoológico” a que se convencionou impropriamente por chamar recreio de agitados” (fls. 253-254). 

Faltavam, igualmente, salas de estar e leitura, jardins e recreios, bem como qualquer noção de conforto ou de beleza que adornasse o manicómio, que não podia ser confundido com a construção de um manicómio-penitenciária. Mas, pior do que tudo o resto, surpreendia a falta de casas de trabalho e de oficinas quando, segundo Ladame e Damay, assim como para Pinel, o trabalho era, respectivamente, o factor essencial de toda a organização de assistência aos alienados ou a lei fundamental de todo o asilo de alienados. Por sua vez, a falta de terreno à volta impedia o crescimento de novos pavilhões. Em suma, aquelas instalações, tal como estavam, ainda por cima requerendo obras, revelavam-se totalmente inadequadas e sairia, com certeza, mais barato construir de novo do que continuar a gastar com obras uma quantia diária muito elevada (fls. 254-259). 

Os resultados do parecer de Bissaya Barreto, acompanhado dos dois referidos engenheiro e arquitecto, não se fizeram esperar. Assim, a 17 de Abril do mesmo ano de 1933, o ministro das Obras Públicas mandou suspender as obras no Manicómio Sena (fl. 270). Entretanto, o médico e professor Elísio de Moura, que deixara de participar nas reuniões por se ter ausentado para o estrangeiro, considerara que os pavilhões construídos e em construção do Manicómio Sena deveriam ser utilizados para instalar uma clínica psiquiátrica para o ensino dos alunos da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (fl. 273). De qualquer modo, o mesmo professor admitia não haver condições para ali se instalar “um manicómio moderno, com a orientação de colónia agrícola” (fl. 276).

Em finais de Abril, já a Comissão se pretendia justificar acerca da suspensão das obras. Paralelamente e a expensas privadas, Bissaya Barreto procurou inteirar-se do modo de organização de serviços de psiquiatria. Para isso, efectuou uma visita de estudo pela França, Alemanha e Áustria, além de tomar em linha de conta o que tinha sido planeado em Barcelona. Com base nessa missão, Bissaya concebeu um plano composto por diversos elementos destinados a levar a cabo a profilaxia e o tratamento das doenças mentais. O mesmo plano foi apresentado à Comissão em inícios de Julho.

As principais peças ou armas desse plano, ao qual se atribuía a força de um arsenal, eram: uma Liga de Higiene Mental (para amparar os curados e convalescentes); um dispensário(que, entre outras coisas, deveria vigiar e acompanhar os psicopatas);  uma clínica psiquiátrica (que receberia doentes em regime aberto, sem ter de os internar no manicómio, mesmo aqueles que manifestavam tendências suicidárias, crises de alcoolismo, perturbações confusionais e uma agitação delirante); um serviço aberto para pequenos psicopatas (que receberia os chamados nervosos que não pudessem trabalhar); um asilo colónia-agrícola (que seria composto por hospital, asilo para inválidos e inúteis para o trabalho e uma colónia para trabalhadores); um asilo-colónia especial para epilépticos, alienados difíceis e anormais; um manicómio judiciário junto da penitenciária; um serviço para crianças anormais (que hoje provoca indignação ao ser colocado ao lado de um manicómio de loucos) e assistência familiar. O essencial era proceder-se à construção de um asilo-colónia, baseado num terreno extenso adequado à cultura de cereais e a pastagens, pois não existia nenhum em Portugal e era “enorme o número de loucos no nosso país” a necessitar de assistência (fls. 288-295).

A 17 de Julho, Bissaya Barreto voltava à carga para considerar que os estabelecimentos de assistência aos loucos tinham de ser implantados em grandes áreas que seriam utilizadas em explorações agrícolas, oficinas, parques, matas, jardins, etc. (fl. 296). Neste sentido, considerava que a maior transformação registada no último meio século tinha sido levada a cabo pelos próprios psiquiatras, que foram capazes de modificar e humanizar o sistema de assistência asilar dos incuráveis. Foram eles que favoreceram a transformação do clássico asilo de alienados, que funcionara – na opinião citada do psiquiatra Sobral Cid – como uma autêntica “casa de reclusão de estrutura prisional, fácies carcerário, com os seus altos muros de vedação, sem pátios interiores desprovidos de horizonte, quartos fortes e repartições celulares – quartiers de force – , onde os alienados viviam abandonados aos seus próprios hábitos mórbidos e na mais funesta ociosidade, para o moderno asilo de tipo colónia-agrícola, verdadeiro falanstério, onde grandes massas de enfermos e psicopatas, repartidos por diversos pavilhões, rodeados de jardins e campos de cultura, se mostram aptos a viverem em liberdade e, como membros de uma sociedade disciplinada, uma existência laboriosa e ordeira” (fls. 297-298). 

Sobral Cid surgia, então, como a grande autoridade, que justificava as opções tomadas por Bissaya Barreto. É que, segundo este último, o Manicómio Sena afigurava-se pior do que uma penitenciária. Sem espaço para pátios, mesmo que fossem interiores, nem lugares para oficinas ou salas onde os doentes se pudessem encontrar, condenava o doente a permanecer agarrado ao leito da enfermaria. Concluindo Bissaya: “Seria um asilo de clausura, misto de caserna e prisão, verdadeiro depósito de doentes” (fl. 298).

Na Alemanha, encontrava-se um dos modelos por excelência a adoptar. O asilo-colónia de Wiesloch, próximo de Heidelberg, era formado por 60 pavilhões com capacidade para 1400 doentes. Ocupava 100 hectares, dos quais 60 estavam cultivados. “O trabalho, sob diversas formas, é executado em larga escala o que representa um enorme benefício não só sob o ponto de vista de tratamento, mas até sob o ponto de vista económico” (fl. 305). Por sua vez, 200 doentes do Asilo de Emmendingen tinham colaborado na construção dos pavilhões, notando-se, ainda, que as oficinas davam mais rendimento do que a exploração agrícola. Bem feitas as contas, a contribuição do Estado para o asilo era pequena, pois a maior parte das despesas eram cobertas pelas receitas da agricultura, das oficinas e da mensalidade dos doentes. Por esta razão o asilo era muito visitado por psiquiatras europeus e norte-americanos. 

Seguiam-se notícias de outros asilos-colónias alemães tais como em Giessen e Francfort, onde o visitante apreciou os pátios bem cultivados e o trabalho feito nas oficinas e hortas, além de ter constatado a existência de uma secção para “crianças anormais” (fl. 307). No Reno, os serviços dos psicopatas estavam distribuídos por oito estabelecimentos, com uma capacidade total de 8 mil leitos, incluindo neles um “asilo de crianças psico-anormais” (fl. 307).   

A conclusão de toda a série de casos visitados era que “a melhor forma de assistência aos alienados sob o ponto de vista médico e sob o ponto de vista económico é a do asilo completo, o asilo total que compreende o hospital para os casos agudos, o asilo propriamente dito e a colónia para os trabalhadores, sem descurar o serviço aberto” (fl. 315). Uma vez que entre 50 a 80% da população do asilo se dedicava a trabalhos agrícolas, eram muitos os psiquiatras que defendiam a terapia pelo trabalho. Era o caso de Parchappe de Vinay e Hermann Simon. Este último, com a sua autoridade proclamada de director de um asilo na Vestefália, era referido como o “leader da terapêutica pelo trabalho nos alienados”. Para ele, o trabalho como método terapêutico de valor universal aplicava-se não só aos casos crónicos, mas também aos agudos e sub-agudos. Nesta mesma série de autoridades médicas, incluía-se também o parecer do mesmo teor de Sobral Cid. Parecia, pois, haver consenso em relação à “indicação médica do trabalho como agente bio-psico-terapêutico” (fl. 316).  

Num curto espaço de tempo, a comissão criada para resolver as questões do tratamento dos loucos na região Centro tinha-se cindido. De um lado, estava o médico psiquiatra e neurologista Elísio de Moura, preocupado com a instalação de uma Clínica Psiquiátrica, que funcionasse em articulação com a Universidade de Coimbra e pudesse ser posta ao serviço do ensino, mas também da neurologia. Do outro lado, estava o médico e também professor Bissaya Barreto, acompanhado pelo engenheiro Cavalleri e o arquitecto Benavente, que procurava instalar um novo Asilo-Colónia Agrícola – mais de acordo com preocupações sociológicas e concentracionárias – , numa área vasta que permitisse desenvolver uma exploração agrícola e a construção de oficinas, de modo a que terapêutica se centrasse no trabalho dos pacientes. No entanto, a posição destes últimos, à cabeça dos quais se encontrava Bissaya, era a de procurar chegar a uma base conciliatória com quem defendia, acima de tudo, o funcionamento de uma clínica psiquiátrica. Para isso, Bissaya recorria aos seus conhecimentos comparativos acerca dos manicómios existentes por essa Europa fora, argumentando serem muitos os casos onde as mesmas clínicas faziam parte de manicómios, que ficavam distantes das universidades “e no entanto o ensino da Psiquiatria faz-se e com aproveitamento de alunos, de médicos nacionais e estrangeiros” (fl. 320).

A Alemanha, modelo a adoptar, teria tratado e resolvido, em primeiro lugar, a questão da assistência aos alienados construindo hospitais-colónias-asilos, para só depois dispor de clínicas psiquiátricas. Além disso, estas últimas não dependiam do Estado, mas das próprias universidades que eram instituições dotadas de autonomia. A situação era, pois, diferente da que existia em Portugal, considerando Bissaya Barreto o seguinte, tendo em vista integrar a clínica psiquiátrica num asilo-colónia, que não ficasse muito afastado de Coimbra: 

 “Em Portugal, onde não há assistência aos loucos indigentes suficiente, onde passeiam livremente 8000 alienados, muitos perigosos para a sociedade, em Portugal onde com frequência se praticam graves crimes por alienados que andam à solta porque não há possibilidade do seu internamento, em Portugal onde não há onde recolher os afectados de enfermidade mental e instintos perversos, onde não há ligas de higiene mental, dispensários de profilaxia e tratamento de doenças mentais, em Portugal onde não há asilos para doentes, portadores de doenças crónicas e incuráveis, nem colónias-agrícolas para a laboterapia dos enfermos, susceptíveis de se entregar ao trabalho, deve o Estado cuidar, em primeiro lugar, da fundação das clínicas psiquiátricas para o ensino da Psiquiatria, em vez de fundar um hospital-asilo-colónia onde se possam  tratar os casos agudos e receber os crónicos e incuráveis? Entendo que não” (fls. 324-325). 

(Autor escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.)

 

 

 

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