Liv. O rosto da coragem contra os abusos sexuais
Liv. O rosto da coragem contra os abusos sexuais
A jovem luxemburguesa Liv é um dos rostos da luta contra os abusos sexuais a adolescentes e mulheres no Luxemburgo, e segunda-feira foi à Câmara dos Deputados pedir mais justiça e proteção para todas as vítimas deste crime.
Aos 14 anos, a estudante sofreu abusos por parte de um dirigente musical e hoje, aos 20 anos, transforma os traumas que ainda persistem numa cruzada pela maior sensibilização para estes crimes e na defesa de penas mais pesadas para os seus autores.
Uma reivindicação que fez à ministra da Justiça, Sam Tanson, e aos deputados, juntamente com Diane Schaefers, a autora de uma petição com o mesmo objetivo que conseguiu angariar 4637 assinaturas, e foi objeto de debate público no Parlamento. Foi, aliás, a história de Liv e a pena suspensa do seu agressor publicada no Luxemburger Wort que motivou a psicóloga especializada em traumas, a lançar esta petição, como conta ao Contacto.
Liv não foi a única a ser abusada pelo dirigente musical da sua terra, e ela, a irmã e mais duas colegas ganharam coragem e levaram o autor dos crimes a tribunal. O agressor foi condenado a oito anos de prisão, mas com pena suspensa, em 2020. Condenação possível por ser “primo-delinquente”, ou seja, sem antecedentes criminais.
O testemunho de Liv na campanha "I'm Possible", da Zonta Club Luxembourg Multiculturel
Medo de encontrar o agressor
“Ainda hoje tenho medo de sair à rua e de o ver. Por exemplo, quando vou ao mercado olho bem para ver se o carro dele está lá. Já o vi duas vezes e isso deixa-me bastante perturbada. Eu contei isso mesmo na comissão parlamentar e pareceu-me que eles entenderam”, confessa Liv.
“Os agressores sexuais não podem ser condenados e viver em liberdade”, defende a jovem. “A justiça devia funcionar melhor e prender efetivamente estes agressores para dar confiança às vítimas e dissuadir outros de cometerem o mesmo crime, sabendo que vão ficar presos na cadeia”, diz.
Esta foi uma das principais reivindicações que a jovem e Diane Schaefers fizeram no parlamento. “Os agressores sexuais, mesmo sem antecedentes criminais, não devem beneficiar de penas suspensas”.
Embora se mostrasse “sensível” ao apelo das peticionárias, a ministra Sam Tanson explicou que “não poderá mudar esta parte da lei, o que me deixou desiludida, pois para mim e todas as vítimas nesta situação é muito importante”, frisou Liv. “Fiquei com a impressão de que todos os presentes estavam de acordo comigo. Deixou-me feliz ver que estavam presentes muitos deputados, o que significa que é um tema que preocupa os políticos e a população”.
Sam Tanson adiantou mesmo que “irá ter em conta a nossa audiência na elaboração da nova lei” que prevê o reforço de meios na luta contra os abusos sexuais e exploração sexual e que visa o agravamento das penas para estes crimes.
“Para mim foi muito importante falar sobre as vítimas na Câmara dos Deputados, constitui um grande avanço e sinto que posso mudar alguma coisa. Tem havido progressos nesta matéria e acredito que poderão haver ainda mais, o que me deixa feliz”, confessa Liv.
A maior sensibilização para as vítimas e endurecimento das penas é uma batalha que Liv trava publicamente há mais de meio ano, desde que aceitou contar a sua história na campanha “I’m possible”, da associação Zonta inserida na “Orange Week”, em novembro passado.
Liv é também um dos membros principais de uma nova associação de apoio às vítimas de abusos sexuais que está a ser fundada por uma portuguesa, Ana Pinto.
"Sinto-me mais forte"
Liv tem o apoio da família e amigos nesta sua luta que visa também derrubar o tabu “que ainda existe sobre os abusos sexuais”. Nos últimos meses, a luxemburguesa tem sido convidada para vários eventos e palestras onde pode passar a sua “mensagem de alerta a jovens e mulheres e sensibilizar a população” para a sua luta.
“Sinto-me mais forte e já fui contactada por várias jovens e mulheres também vítimas, de várias idades, que me disseram que depois de me ouvirem ganharam coragem e foram fazer queixa à polícia. É a prova de que valeu a pena eu falar”, declara, com um sorriso tímido. Sempre que for preciso, Liv diz-se disposta a contar a sua história de sobrevivência para “alertar as jovens e dar força às vítimas”.
Apoio psicológico
O olhar doce e a voz aparentemente calma desta jovem não conseguem ainda esconder totalmente a dor que continua a sentir por ter sido vítima indefesa de um homem em quem, aos 14 anos, tinha toda a confiança e respeito. “Ainda continuo a ir às consultas de psiquiatria e psicologia”, conta a estudante que é excelente aluna e quer entrar para o curso de Medicina.
Da primeira vez que foi abusada pelo “dirigente musical”, Liv não compreendeu bem o “que se passara naquele encontro noturno às escondidas”, mas sabia “que não devia ter acontecido”. Na manhã seguinte, contou à sua irmã mais velha, Zoe, e foi quando percebeu “a gravidade da situação” e que não tinha sido a única vítima.
“Também a minha irmã tinha sido abusada pelo mesmo homem, tal como outras duas colegas da banda, como mais tarde viemos a descobrir”, salienta a jovem. Liv e a irmã guardaram segredo e continuaram a dar-se com o agressor, por “medo de represálias” dele e de se “exporem às outras pessoas”.
Liv admite que naquela altura e com aquela idade “não tinha coragem para o enfrentar”. Só quatro meses mais tarde é que as irmãs contaram aos pais que lhes deram todo o apoio para avançar com uma queixa. “Mas nós não tínhamos ainda coragem para a denúncia, tínhamos muito medo e vergonha. Só dois anos mais tarde fomos à polícia”, explica Liv, que sofre de stress pós-traumático devido aos abusos.
"Ao primeiro sinal de abuso, falem!"
Para que outras adolescentes não passem pelo seu pesadelo, Liv não se cansa de alertar: “Ao primeiro sinal de abuso falem com alguém, com amigas ou pais. Não guardem segredo, falem, denunciem. Vão sentir-se melhor porque há um peso que sai de cima de nós e os traumas serão menores”.
Liv sente-se entusiasmada com a nova associação e com “apoio que podemos dar a todas as vítimas, mulheres e homens que estejam a sofrer”. “Queremos mostrar que é possível reconquistarmos a nossa confiança e autoestima e, como eu, termos uma relação amorosa feliz”.
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