Juntos não terão um abraço, mas uma orquídea
Juntos não terão um abraço, mas uma orquídea
É inegável que, com o passar do tempo, o discurso científico ganhou relevância social; porém, não conheço nenhum poema proscrito (apenas censurado). Já em relação às teorias científicas não se poderá dizer o mesmo, voláteis ao longo dos anos.
A pandemia acelerou a competição entre laboratórios, a meta é a tão desejada vacina. Há várias, que concorrem em eficácia, uma até com um nome sugestivo reminiscente da corrida espacial. Enquanto não somos salvos pela vacina, tendemos a sobreviver com os poemas. Tenho-me cruzado com alguns:
Hoje, em bancos diferentes de jardim, um rapaz e uma rapariga trocavam sorrisos sob as máscaras e olhavam enciumados os respetivos cães, que brincavam um com o outro na relva. À varanda, a mulher esticava o regador, refrescando o vaso moribundo do vizinho. Juntos não terão um abraço, mas uma orquídea.
Na hora de recolher, as janelas nos prédios da frente revelavam uma mensagem secreta em código morse – traço, ponto, traço, ponto. Diziam: estamos habitados. Há quem mantenha os braços em posição de dança, perfumando-se para uma reunião online.
As luzes de Natal nas avenidas desertas são aquele tio que conta piadas porcas nos funerais e põe as viúvas a rirem entre lágrimas. Reguei a planta da janela antes de as folhas caírem de sede. As crianças acenam e gritam a quem passa como se lançassem pombas. A vida está perfilada e só lhe vemos a lombada, mas os livros nas prateleiras fazem companhia.
Há meses que falamos a língua dos gestos repetidos. Um dialeto que calcinou os músculos na articulação da rotina, como uma prece. Somos todos crentes porque na repetição ritualizada conjuramos uma fuga. Dizem que é uma guerra ao tentarem a literatura. Apoiado! Preferimos ser soldados a osgas vigilantes e imóveis na parede do tédio.
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