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Heidi Martins. "A forma de integração que nos é proposta é a assimilação"
Sociedade 12 min. 26.11.2020 Do nosso arquivo online

Heidi Martins. "A forma de integração que nos é proposta é a assimilação"

Heidi Martins é investigadora no CDMH – Centre de Documentation sur les Migrations Humaines (Dudelange, Luxembourg) e autora da tese: "Dinâmicas de (des)pertença no curso da vida: o caso dos portugueses de 'segunda geração' no Grão-Ducado".

Heidi Martins. "A forma de integração que nos é proposta é a assimilação"

Heidi Martins é investigadora no CDMH – Centre de Documentation sur les Migrations Humaines (Dudelange, Luxembourg) e autora da tese: "Dinâmicas de (des)pertença no curso da vida: o caso dos portugueses de 'segunda geração' no Grão-Ducado".
Foto: António Pires.
Sociedade 12 min. 26.11.2020 Do nosso arquivo online

Heidi Martins. "A forma de integração que nos é proposta é a assimilação"

Nuno RAMOS DE ALMEIDA
Nuno RAMOS DE ALMEIDA
A investigadora é autora de uma tese sobre os filhos dos imigrantes portugueses no Luxemburgo. A conversa surgiu a partir de um debate organizado a propósito dos 40 anos da ASTI.

Quanto do tema da sua tese e da escolha dele é ditada pela sua biografia?

É uma grande parte apenas no sentido que há uma reflexividade minha. Não é uma autobiografia: está muito longe disso. Mas a minha experiência de vida fez com que eu fosse uma parte integrante de toda a análise. Desde o questionamento, passando pela análise e conclusões. Eu digo que entre- vistei 25 pessoas mais uma: essa pessoa sou eu. É como se tivesse entrevistado 25 pessoas e sido, ao mesmo tempo, entrevistada 25 vezes. Sendo filha de emigrantes, o que eu encontrei foi muita experiência partilhada em relação ao que eu vivi.

Isso não dificulta o existir de uma certa distância em relação ao objeto de estudo? Não está demasiado envolvida?

Dificulta no sentido que exige mais trabalho de reflexividade, mas acho que não prejudica de forma nenhuma. Até acho benéfico neste tipo de trabalho qualitativo.

O que faziam os seus pais na Suíça?

A minha mãe era doméstica e cuidava de crianças em casa, o que é uma situação que também se vê muito no Luxemburgo, em filhos de imigrantes. E o meu pai trabalhou na agricultura e depois numa fábrica de peças elétricas.

No debate na Associação de Apoio aos Trabalhadores Imigrados (ASTI), sobre a segunda geração, filhos de imigrantes portugueses, a certa altura comenta que todas as pessoas que entrevistou tinham a mãe a trabalhar como mulheres da limpeza. Não há um certo de enviesamento social no seu grupo de entrevistados eles não estão todos no mesmo grupo social?

Não existe enviesamento, no sentido que esse grupo corresponde à situação social dos imigrantes portugueses no Luxemburgo na época em que são analisados. Os pais dos jovens que eu entrevistei são de uma geração que maioritariamente ocupava os lugares mais subalternos da escala social. Isso faz com que em relação às pessoas que eu entrevisto, as mães, algumas já estão reformadas, eram todas empregadas de limpeza e os pais trabalhavam quase todos na construção civil. Isto não é um enviesamento, mas um reflexo daquilo que se observa estatisticamente.

Isso não se foi alterando com as épocas? De há uns tempos para cá, os portugueses não vieram para outros empregos, como as instituições europeias?

Só nas últimas vagas de emigração é que se verifica a existência de um grande número de pessoas qualificadas. Mas no meu estudo optei por falar com jovens de segunda geração e deixei de fora os adolescentes que poderiam ser os filhos dessa última vaga de imigrantes portugueses no Luxemburgo mais qualificados. O meu participante e entrevistado mais jovem tem 19 anos, os pais chegaram nos finais de 80: ou seja não entrevisto aqueles que são filhos dessa nova vaga de imigrantes portugueses no Grão-Ducado.

A ideia de uma comunidade portuguesa única não é uma espécie de abstração dado que é muito diferente a vida de um operário da construção civil da dos novos trabalhadores no setor financeiro ou nas instituições europeias?

É facto. Uma das pessoas que estava a prestar o seu testemunho no debate da ASTI, Frederica Cardoso, é um desses casos: os pais são ambos licenciados e biólogos. Eram professores em Portugal e resolveram emigrar.

No entanto, ela dá um testemunho de muita discriminação no ensino. A sua origem nacional não foi apagada por não ser filha de uma classe social na base da pirâmide.

Não, o que é muito interessante. Daí eu sentir necessidade de saber mais em relação à nova geração. Estou convencida que estes jovens lidam também com muitas dificuldades.

Também se sente, como muito dos seus entrevistados, como estando numa espécie de terra de ninguém, não se sentindo nacional na terra de imigração, nem português igual em Portugal?

Há momentos assim. Quando eu falo dos sentimentos de pertença, observo isso nas entrevistas e comigo própria. Posso dizer-lhe que há momento assim, mas não posso responder como estando sempre com esse sentimento. É situacional e relacional, depende de onde é que estamos e com quem estamos a interagir. Já aconteceu não me sentir conectada com Portugal, porque vivi na Suíça até aos 11 anos e acho a infância uma fase importante que estrutura muito os referentes de pertença. Mas não é sempre dessa forma, por vezes sinto essa ligação com Portugal.

Faz um estudo que é um pouco em escala micro, aquilo que acaba por estudar são as estratégias que cada indivíduo adota em relação ao seu processo único.

É perceber os porquês e os como. Acaba por ter implicações a nível macro, porque os esquemas de ação e os processos individuais podem ser generalizáveis.

Mas ao dar prioridade, naquilo que chama variáveis socio-históricas, às questões de tecnologia, relacionadas por exemplo, com a língua dos canais de televisão que a família assiste; e o lugar onde habita, não acaba por descurar as variáveis sociais? Muitas das discriminações que são sujeitos os filhos dos imigrantes portugueses não se devem a eles serem identificados como sendo de classe desfavorecida?

O lugar é consequência disso, está diretamente relacionado com a condição socio-económica de base. O lugar da residência não é uma escolha livre, ele está con- dicionado pelas zonas em que os preços são mais baixos e onde os imigrantes acabam por se concentrar. Não é de todo uma coincidência. Essa variável não está ausente do estudo.

Não tem uma parte de azar uma pessoa ir parar a uma turma só com imigrantes ou numa turma com maioria de luxemburgueses?

No ensino pouco acontece por acaso. Quando ouço o ministro a dizer que propõe um sistema escolar alternativo que é a escola europeia, penso que não é um acaso: nem toda a gente vai poder ir para a escola europeia. Esse não é o sistema de ensino principal do país. Não é por acaso que as escolas primárias são como são, não é por azar que determinadas turmas têm uma certa composição de classes sociais. Estou a fazer um estudo sobre o bairro italiano em Dudelange, e o que se observa é que assim que a condição socio-económica melhora as pessoas saem do bairro. O movimento foi sempre assim: os italianos chegaram, melhoram as suas condições socio-económicas e saíram; chegaram os portugueses, melhoraram de vida, e começaram já a sair os portugueses e a chegar outros imigrantes. Isso acontece porque é o sítio mais barato em Dudelange.

No seu estudo fala-se que as pessoas veem a ascensão social com esperança mas ao mesmo tempo com receio, porque sentem estar a quebrar os laços sociais e nacionais com os seus. Mas vendo o sistema de ensino, há de facto uma ascensão social ou na maioria dos casos há uma reprodução de uma desigualdade social e nacional?

As duas coisas são verdade, há efetivamente uma ascensão social da segunda geração, porque a primeira geração estava na base da pirâmide social, mas isso não significa que a escola tenha o papel que devia ter como elevador social. Por exemplo, nos anos 60, por que é que os filhos dos imigrantes consideravam ir para o ensino técnico um luxo?

Provavelmente porque a maior parte era direcionado para o modelar.

Sim, essa sensação desse pequeno progresso, mostrava que se estava a ter uma ascensão social, mas abafa o que está ser o papel da escola, na generalidade, no sentido de reproduzir as desigualdades sociais: é uma autêntica máquina de triagem.

Vê-se no seu trabalho que por vezes, basta serem portugueses, se parecerem portugueses, terem nomes de portugueses para ver um certo enviesamento negativo nas classificações.

Isso é claro. Apoio-me sempre em estudos quantitativos, por exemplo há um de 2016, da autoria de Ineke Pit-ten Cate e Sabine Glock, que demonstra que os professores tendem a enviar os alunos portugueses para o ensino técnico, em vez de os enviarem para o “mais nobre” ensino clássico. O estudo mostra que os professores tomam uma decisão mais acertada em 90% dos casos, quando os alunos são luxemburgueses; e apenas uma decisão acertada em 67% dos casos, quando eles são portugueses. É escandalosa essa diferença de avaliação dos professores, relativamente às suas expectativas em relação a alunos portugueses, quando comparados com os luxemburgueses na mesma situação. Estamos a falar de jovens que falam corretamente as línguas todas do país e a dos parentes, cujos pais já vêm para cá com outros conhecimentos e de outro patamar social, e mesmo assim esses jovens têm que se justificar por que é que são bons. Confrontam-se todos os dias com essas expectativas baixas dos professores, o que vai afetar a motivação e reflete-se nos resultados.


"Se não és bom a alemão e tens Pereira no apelido, vais diretamente para o técnico"
Um estudo científico mostra que apenas 67% das decisões dos docentes em relação aos portugueses foram corretas. A autora do estudo explica.

O escritor Boris Vian tinha uns livros em que assinava como Vernon Sullivan, um fictício escritor norte-americano, nessas obras um tema recorrente eram negros que conseguiu ascender socialmente porque conseguiam passar por brancos. Isso não se passa em parte com o portugueses no Grão-Ducado, a sua ascensão social não está dependente de se assimilarem como luxemburgueses?

Varia muito em função da cohort (um grupo geracional com a partilha de experiências em comum). Nos anos 60 havia um processo de "luxemburguização" mesmo sem as pessoas quererem; nos anos 70, dado o entorno em que viviam, o alemão que ganhou um ascendente na escola, passou a ser uma barreira e quase não conseguiam fazer essa ascensão. A partir dos anos 80, verifica-se que há uma estratégia e um esforço de “luxemburguização”, que passa muitas vezes por colocar o português de lado e colocar o alemão e o luxemburguês à frente. Há quase uma escolha que eles têm de fazer. Como fazem a escolha de trocarem os nomes no início da escolarização. Isso vem mostrar como as políticas e o sistema de ensino tem impacto no quotidiano. A forma de integração que nos é proposta é a assimilação.

Pode-se dizer que esta assimilação também mudou com a imigração? Nos anos 60, provavelmente o papel do francês era muito mais importante que o luxemburguês e hoje parece que isso se inverteu, pelo facto da primeira aparecer como a língua que falam os imigrantes?

Há questões ideológicas por detrás disso tudo. É interessante observar as dinâmicas de poder na língua. O francês que foi a língua das elites, e de alguma forma continua a ser, mas como é falado pelas pessoas que estão na parte de baixo da sociedade, os imigrantes. A partir dos anos 70, a língua de progressão passa a ser o alemão. A ideia que para subir socialmente é preciso aprender o alemão está muito ligada ao meio social que frequentam em que ele não é falado. Muitas vezes perdem a noção que o francês continua a ser fundamental. É preciso ultrapassar o alemão para chegar ao ensino clássico, mas neste, o francês continua a ter um papel determinante.

O luxemburguês não é o preço de entrada num clube social mais restrito?

Não observei isso. Para a segunda geração não há questões com o luxemburguês. Só é uma questão para a primeira. Há muito hábito de olhar a segunda com os filtros de como se olha para a primeira, e não são de todo iguais.

Mas se houver uma turma só de imigrantes no jardim de infância eles vão aprender o luxemburguês onde?

Está a apontar uma questão importante. Isso depende muito do lugar de residência e de onde fica a criança até chegar à escola primária. Se ficar em casa com os pais e com alguém português a tomar conta, o impacto quando chega à escola primária é maior; se estiver no infantário será menor e a adaptação será mais rápida.

Daí realçar seu estudo o papel fundamental do que chama "terceiras pessoas" na socialização dos jovens de segunda geração.

São fundamentais. Cada vez que eu falo com alguém da sua experiência de vida isso é notório. O Cristovão Marinho, que trabalha na Biblioteca Nacional, e esteve na debate da ASTI, é um exemplo disso. Aprendeu alemão e luxemburguês com uma vizinha, e é sempre assim. Sempre que converso com alguém sobre a sua experiência há uma vizinha, as patroas da mães ou um professor específico que teve um papel fundamental em dar uma orientação e uma ajuda para essa pessoa. O sistema faz a triagem, muitas vezes é preciso uma terceira pessoa, que pode ser um amigo a um professor, para dar o acompanhamento e fazer o esforço para que essa pessoa tenha uma avaliação justa.

Das histórias que escutou e das pessoas com que falou o que lhe deu mais esperança e o que lhe deu mais desespero?

Aquilo que me causa mais preocupação é o impacto que os problemas do sistema de ensino têm nos jovens: desmotivando-os e levando-os para baixo. Devia haver nas escolas apoio, psicólogos transculturais e formação para os professores nestas temáticas. Isso é decisivo. Aquilo que me dá esperança é haver, apesar de tudo isso, e graças à força de vontade e a terceiras pessoas, gente que ultrapassa todas essas barreiras e consegue ultrapassar a invisibilidade social a que foram muitas vezes votadas.

Um dia as identidades luxemburguesas serão a mistura de toda a gente que aqui vive, mais do que a ideia no lema do país, que queremos permanecer aquilo que somos?

Elas já são misturadas. Falta apenas assumir isso. E criar sistemas inclusivos. Precisamos de inclusão mais que integração. Não se pode querer que um sistema educativo que foi criado para excluir e ser uma máquina de triagem, não se pode querer que ele faça diferente. É preciso mudar o sistema de ensino.

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