Gary Lineker e o dissenso autorizado
Gary Lineker e o dissenso autorizado
O governo britânico anunciou a nova Lei da Imigração Ilegal que define que se uma pessoa chegar ao Reino Unido "ilegalmente" (i.e. travessia em barcos no Canal da Mancha) não terá permissão para pedir asilo, não poderá alegar violações de direitos humanos no país de origem, não poderá permanecer em solo britânico, será removido para país terceiro e não poderá "beneficiar das protecções" do Estado contra a Escravatura Moderna.
A Lei da Escravatura Moderna foi criada em 2015 e reconhece como escravatura moderna violações de direitos humanos, entre outras, tráfico humano, exploração sexual, trabalho forçado e escravo, trabalho infantil ou outras formas de servidão. É função do Estado e das empresas o seu dever na denúncia de casos de pessoas que sejam ou tenham sido vítimas de escravidão moderna, mas também no escrutínio de parceiros económicos com quem se fazem negócios.
O antigo futebolista e capitão da selecção inglesa, Gary Lineker, apresentador do programa de desporto da BBC Match of the Day, comentou no Twitter as declarações da ministra do Interior, Suella Braverman, sobre a nova lei: "Recebemos muito menos refugiados do que outros grandes países europeus. Esta é apenas uma política incomensuravelmente cruel dirigida às pessoas mais vulneráveis, numa linguagem que não é diferente da usada pela Alemanha nos anos 30."
A BBC instou o apresentador a pedir desculpas, Lineker recusou, e a estação pública de rádio e televisão decidiu suspendê-lo, invocando a sua política de "imparcialidade" e opinião nas redes sociais. Os comentadores residentes do Match of the Day (também ex-futebolistas, Ian Wright e Alan Shearer) recusaram-se a participar no programa.
Choveu solidariedade de jornalistas e personalidades do futebol nas redes. O programa foi para o ar só com 20 minutos de golos da jornada. Esta semana a BBC reabilitou Lineker.
Interessa pouco o clamor das redes mediáticas de solidariedade com Lineker, que recebe 1 milhão e 350 mil libras/ano para apresentar um dos programas mais populares da BBC. Também interessa pouco a ideia de que "finalmente" o "desporto" se uniu por uma "causa" – por oposição à queixa de que o "desporto" nunca se une por nenhuma "causa".
Será talvez a necessidade contemporânea que temos de encontrar um influencer ou celebridade que diga algo que podemos retweetar, dar like e comentar "é isso mesmo", "assino por baixo", sem comprometermos o quentinho do nosso sofá ou questionar a política que subjaz às decisões. Lineker faz muito bem esse papel de "influencer".
Nós, no sofá, é que não fazemos nada contra a Lei da Imigração. Repare-se como neste caso o assunto foi desviado para a questão da "(im)parcialidade" e liberdade de expressão na BBC enquanto serviço público – se Lineker tivesse sido suspenso da SkyNews teríamos ouvido o mesmo bruá? –, de forma a tornar-se absolutamente ausente a discussão sobre a cruel e desumana lei.
Como sempre em cima de um qualquer muro para nunca sujar as mãos, o Labour saiu em defesa do dever da imparcialidade da BBC e, simultaneamente, da liberdade de expressão de Lineker. Sol na eira, chuva no nabal.
A ministra-sombra da Cultura do Labour disse à Sky que o caso Lineker "era algo típico da Rússia de Putin". Irónico porque não há melhor exemplo da Britannia de Boris e Sunak (e futuramente Starmer) do que uma estação de rádio e televisão pública gerida por um governo de "oligarcas".
Na ITV, o ministro-sombra do Trabalho e Pensões do Labour disse que o caso Lineker era mais sobre a forma (liberdade de expressão) do que sobre o conteúdo do tweet do apresentador: "Definitivamente, eu não teria apoiado a linguagem que Gary Lineker usou naquele tweet, e não acho que alguém esteja a defender o tweet."
A ministra-sombra do Interior do Labour, Yvette Cooper, também criticou a linguagem de Lineker e corroborou à BBC o que enfim há muito se suspeitava: "[Se formos governo] não revogaríamos a legislação."
Ou seja, o Labour parece então concordar com as medidas violentas do actual Governo dos Conservadores que excluem um refugiado de beneficiar da lei da Escravatura Moderna britânica, empurrando-o para a escravatura moderna em alguma parte do globo, provavelmente onde o Governo britânico continua a ter negócios "parciais".
Com uma Lei de Imigração escrita numa linguagem que não difere muito da usada pela Alemanha nos anos 30, vão ser precisos milhares de Gary Lineker para quebrar o "dever de imparcialidade" de muito mais do que a mera BBC.
O problema, contudo, não parece ter sido a lei em si. Enquanto discutíamos influencers, tweets, suspensões com tau-tau seguidas de reabilitações, após a "pressão" das "redes sociais" ou de "solidariedade", estávamos a aceitar uma espécie de dissenso autorizado de um influencer (ou produto mercantilizado), Lineker, que o mercado da "liberdade de expressão" autorizou a criticar o governo de uma forma, enfim, mais rebelde.
Absolutamente ninguém perdeu tempo a discutir uma das leis mais violentas da Europa ocidental sobre imigração. Silêncio absoluto sobre a condenação de milhares de pessoas à escravatura moderna. Até o Labour conseguiu passar pelos pingos da chuva do escrutínio do que faria se fosse governo. E que esperar de um Governo como o britânico que tem como plano enviar refugiados para campos de concentração no Ruanda?
Continuamos no reduto da "liberdade de expressão" e ignoramos a política que determina a liberdade de toda a discussão. Sabemos quem é Lineker e o establishment que serve, sabemos quem é/está (n)o Governo e o establishment que serve. A BBC ficou mais "resiliente" com este caso, sem dúvida, uma vitória simbólica do serviço público de televisão, enfim, os imigrantes que se danem.
(Autora escreve de acordo com a antiga ortografia.)
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