Escolha as suas informações

"Fontes anónimas" sem escrutínio
Opinião Sociedade 5 min. 09.03.2023
Media

"Fontes anónimas" sem escrutínio

Opinião Sociedade 5 min. 09.03.2023
Media

"Fontes anónimas" sem escrutínio

Raquel RIBEIRO
Raquel RIBEIRO
Um ano depois de a UE suspender canais russos, parecemos todos mais livres: mas absolutamente dependentes de fontes da “inteligência” do Ministério da Defesa britânico.

A revista norte-americana Newsweek publicou um artigo sobre 2022, a que chamou: "O ano em que Putin não morreu." Isto porque a potencial morte de Putin foi amplamente divulgada: tem cancro na tiróide, tem cancro nos intestinos, tem Parkinson. Tudo terminal.

A Newsweek conclui: eram "fake news". "Putin está 'a morrer em agonia com cancro terminal' (dizem fontes [Pentágono])" (Daily Star Março 2022). "Enfermeira especula que Putin tem sintomas de Parkinson em vídeo viral" (Newsweek Março 2022). O Presidente russo "em tratamento contra o cancro" (Newsweek Abril 2022). Ex-agente da inteligência britânica diz que Putin "está a receber tratamento médico" entre sessões do Conselho de Segurança (Newsweek Maio 2022).

Aos 70 anos, Putin está em idade de risco para todas as doenças oncológicas. Pode, efectivamente, morrer a qualquer momento. Quanto mais tempo passa mais perto estará da morte. Facto é que depois de Maio de 2022, já vimos Putin caminhar, discursar, conversar, viajar, ameaçar, e sempre em sólida performance para alegado doente terminal.

Notícias assim não ficaram em 2022. Em Janeiro deste ano, dizia o Expresso: "'Está doente há muito tempo (…). Pensamos que é cancro', afiançou o responsável dos serviços de informação da Ucrânia numa entrevista à ABC News. Apesar de não ter sustentado a sua teoria – dizendo apenas que a informação lhe chegou aos ouvidos –, Kyrylo Budanov acrescentou que Putin falecerá em breve. (…) Também esta semana, os serviços secretos militares dinamarqueses avançaram que Putin padece de dores crónicas agudas."

Notícias sobre cancro já não pegam, dores crónicas agudas é mais verosímil. O importante é que sofra, muito, para perceber bem a dor que inflige a milhões de pessoas. É o wishful thinking da cobertura da guerra. Se Zelensky é o "novo herói mundial da liberdade", no seu oposto está a caricatura de Putin, "a epítome de todas as qualidades vis e degeneradas", diz o jornalista Stephen Kinzer, na revista espanhola Contexto y Acción: "Ele satisfaz a nossa necessidade de centrar o ódio não num país, um movimento ou uma ideia – isso é muito difuso – mas num indivíduo. Durante anos, deleitámo-nos com a nossa superioridade moral sobre inimigos pitorescos como Castro, Khadafi e Saddam Hussein. Putin encaixa-se perfeitamente nessa constelação. Ter um inimigo caricaturalmente maligno é quase tão reconfortante quanto ter o santo Zelensky como aliado."

Curioso na Newsweek é a forma como faz "fact check" aos seus próprios artigos sobre a doença mortal "grandemente exagerada" de Putin. Artigos que a revista publicou sem escrutínio, notícias lançadas por "chefes" de "secretas" ou "serviços de inteligência", "fontes anónimas" que agora nenhum jornal tem qualquer pejo em publicar sem verificação ou contraditório.

Os serviços secretos e o Ministério da Defesa (MoD) britânicos têm, contudo, sido as fontes mais impressionantes desta guerra. Não há nenhum órgão de comunicação sério que não os tenha citado para encher páginas ou minutos, obter likes e visualizações, partilhas e engagements

Mesmo quando é spin por vezes a roçar o absurdo. Foi para termos a "narrativa dominante" dominada pelo MoD que a UE suspendeu os canais russos RT e afins? Suspensão unilateral e ilegal, impondo-se até a leis de liberdade de imprensa e de direito à informação em vários Estados-membros, inclusive, leis constitucionais, como é o caso português.

Estamos todos aparentemente mais livres por não podermos assistir àqueles vídeos da RT com generais russos, em pose de pau e voz monocórdica, a debitar números de tanques e aviões, diante de um mapa com soldadinhos de chumbo na frente de combate e a anunciar vitória. 

Estamos todos aparentemente mais livres, portanto, porque podemos assistir àquele par de jarras na SIC, Rogeiro e Milhazes, em pose de pau e voz monocórdica, a debitar números de tanques e aviões, diante de um mapa com soldadinhos de chumbo na frente de combate e a anunciar vitória. A liberdade de escolher.

Basta sair deste jardim da liberdade de imprensa, que é a Europa, para ligar as televisões de todo o mundo e ver o "santo e o pecador" (como dizia Kinzer) em contraditório: um em pose superman e voz de Hollywood; o outro, pose de pau e voz monocórdica (mais vivo do que morto). Aí percebemos logo porque, como dizia Boaventura Sousa Santos no DN, "o mundo está dividido entre uma pequena minoria da população que tem uma opinião positiva sobre os EUA e uma atitude negativa sobre a China e a Rússia (1,2 mil milhões de pessoas), e uma grande maioria em que o inverso ocorre (6,3 mil milhões)."

Infelizmente não escolhemos as fontes que os media nos oferecem como verdade, como o MoD britânico. Além de nos dizerem que Putin praticamente já morreu, informam-nos diariamente de que a economia, o exército, a diplomacia russas estão no osso: "Ucrânia diz que forças russas só têm munições, combustíveis e alimentos para três dias" (Lusa 03/2022). "Exército russo chega a beco sem saída após 150 dias de guerra na Ucrânia" (Le Monde 07/2022). "Rússia está a ficar sem munições, e certamente sem amigos" (Renascença 09/2022). "Forças russas prestes a ficar sem combustível após ataque à ponte de Kerch" (Sky News 10/2022).

Ainda esta semana, MoD oblige: os russos "não têm munições e estão a atacar com pistolas e pás" (SIC). Isto mostra-nos o absurdo a que chegámos: a "inteligência" do MoD não tem qualquer intenção de difundir informação fundamentada, como não tem intenção discutir a paz ou como a Europa vai de facto sair desta guerra. E os media, que a continuam a citar como "fonte fidedigna" e a promover esta propaganda para encher papel, também não. Já todos percebemos que a ideia não foi ficarmos "mais livres", mas mais isolados, mais ignorantes, mais estupidificados a "cuidar" de um "jardim" de "verdades" para apaziguar a nossa superioridade moral.

(Autora escreve de acordo com a antiga ortografia.)

O Contacto tem uma nova aplicação móvel de notícias. Descarregue aqui para Android e iOS. Siga-nos no Facebook, Twitter e receba as nossas newsletters diárias.