Entrevista com investigador. Fronteiras da covid-19 "têm mais a ver com interpretações políticas dos factos científicos"
Entrevista com investigador. Fronteiras da covid-19 "têm mais a ver com interpretações políticas dos factos científicos"
O impacto das medidas de limitação de circulação entre países tem sido penalizador para a economia, mas até que ponto elas são cientificamente fundamentadas? A resposta é mais complexa que um sim ou um não, como explica Tiago Correia, investigador e professor de Saúde Pública Internacional e Bioestatística do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, da Universidade Nova de Lisboa. Ao Contacto, o especialista defende que a conjugação de vários indicadores permitiria uma avaliação mais rigorosa do real estado dos países, ao mesmo tempo que lembra que com a covid-19 tudo pode mudar rapidamente. O investigador deixa ainda algumas recomendações aos emigrantes que pretendam viajar para Portugal nestas férias.
Apesar de entre Luxemburgo e Portugal a circulação entre cidadãos se fazer sem restrição ou constrangimento, muitos outros países europeus têm colocado os dois estados nas listas de zonas de risco, em alguns casos pedindo testes e obrigando a quarentena a quem para eles e de eles se deslocar, e noutros casos impedindo mesmo a entrada. Considerando que estes países foram elogiados pelos resultados obtidos contra a pandemia, até que ponto estas decisões têm fundamento científico?
A resposta é um pouco mais difícil do que simplesmente se é científico ou não, porque depende dos indicadores para os quais olhamos. Podemos olhar para vários indicadores científicos, a questão é quais é que nós escolhemos e porquê. Começa a ser cada vez mais consensual e comum, mesmo entre a comunidade científica europeia, que estes critérios são muito pouco transparentes e que as decisões dos países são difíceis de compreender.
Vou dar um exemplo, para concretizar: o Reino Unido não usa apenas o número de casos, pondera o número de casos com a taxa de letalidade, a resposta dos serviços de saúde e a disseminação dos surtos. Se olharmos para esse indicador e as restrições que foram colocadas, por exemplo, a Portugal ainda são mais estranhas de justificar. Os indicadores podem ser científicos, a sua escolha é uma escolha política e nem sempre é clara. É um facto que Portugal, por mil habitantes, tem um número relativamente alto de casos, isso é verdade.
Agora, há países que barram totalmente, há países que colocam restrições e há outros que não fazem nada. Se fosse uma questão científica completamente consensual, o critério seria igual para todos. Noto uma maior desconfiança quanto maior é a distância geográfica entre países.
Os países onde há comunidades emigrantes, apesar de tudo, tendem a ter um diálogo político mais próximo e aqui sublinho o que a Bélgica está a fazer, e que me parece a medida mais inteligente, nesta fase, para todo os países. A Bélgica não está a olhar para Portugal como um todo, mas a tentar perceber se os contágios são localizados ou não são, se são baixos, se há testagem ou não há testagem.
Mas no caso do Luxemburgo, que também foi colocado na "zona laranja", pela Bélgica (a mesma em que estão o Alentejo e o Algarve), há uma proximidade geográfica, são países vizinhos. Aqui parece ter sido a proximidade a ditar uma análise mais restritiva.
Bom, diria, em função do que me está dizer, que a proximidade geográfica pode servir um duplo sentido.Tanto pode permitir um maior diálogo, uma maior diplomacia e uma maior atenção para que as medidas não sejam muito restritiva – os governos de Portugal e Espanha têm dialogado bastante e Espanha foi severamente atacada pelo vírus-, como pode, pelos vistos, servir para uma restrição mais severa e um controlo maior em relação aos cidadãos do país vizinho. No fundo, isto tem muito mais a ver com interpretações políticas dos factos científicos, de números objetivos. Portanto, devemos tentar perceber a qualidade dos números.
As decisões dos países são difíceis de compreender.
É verdade que a comparação dos países leva a estas posições, a estas restrições ou não restrições, mas sabemos muito bem que os países fazem contabilizações muito diferentes e a Bélgica, por exemplo, é um país que adotou uma malha muito larga para contar o número de mortes e também aparece destacado nas estatísticas europeias pelo número de mortes covid-19 porque inclui muitos mais casos que outros países. Nós percebemos que os critérios não são exatamente os mesmos para contar mortos, neste caso, mas também a política de testagem não é a mesma.
Vários estudos internacionais que têm sido feitos dizem que Portugal está próximo da capacidade de detetar 100% dos casos reais. É dos países europeus que está mais próximo deste número, quase nos 80%. A questão da testagem, da monitorização faz parte das políticas internas de cada país e faz com que depois a comparação internacional seja muito difícil.
Havendo essas diferenças na estratégia de testagem, por exemplo, países que apresentem, nesta altura, números de contágio por população inferiores aos do Luxemburgo e de Portugal, podem ser vistos como mais seguros, os seus cidadão não sofrem as mesmas restrições de circulação...Mas como pode não haver o mesmo nível de testagem, não se está a passar uma falsa imagem de segurança e não se estarão a abrir canais de circulação sem controlo?
Sim, porque uma baixa incidência de doença pode significar uma de duas coisas: ou que efetivamente o vírus não está em transmissão naquela zona, ou então não estão a ser feitos testes. É por isso que precisamos de saber, perante um número baixo [de casos], numa zona, o número de testes que é feito. Só assim é que se pode ter um melhor conhecimento sobre o que é que está a acontecer. Como é que eu resolvo isto? É não olhar apenas para um indicador, é olhar, por exemplo, para o número de novos casos nos últimos 14 dias, é olhar para o famoso R – o índice de transmissibilidade -, ou seja, não só olhar para o número de casos mas também, em termos médios, quantas pessoas secundárias é que uma pessoa infeta, quantos casos é que decorrem de um caso.
Outro [indicador] tem a ver com a localização dos surtos. Portugal não me preocupa enquanto país, sabemos mais ou menos onde é que os surtos estão e no Norte do país o índice de transmissibilidade está relativamente controlado, que não é o que está a acontecer na Área Metropolitana de Lisboa. Os novos casos, o índice de transmissibilidade, a localização dos surtos e a percentagem de população testada são quatro indicadores que olharia de forma conjunta para tomar uma primeira decisão.
A segunda decisão seria tentar apurar esses indicadores a diferentes escalas, tentar que as medidas não fossem à escala nacional para não ser tão penalizador. E uma terceira decisão, que é mais uma consciência e que é a de que tudo isto é variável. Nós hoje estamos a dizer que é Portugal que está a ser penalizado, mas nada garante que daqui a 15 dias a situação noutros países não seja diferente.
Olhando ao contrário, a estratégia que Portugal está a ter em relação à entrada de pessoas vindas de outros países – as restrições são para fora do espaço europeu, com algumas condicionantes para países de expressão portuguesa ou países não europeus com grandes comunidades de emigrantes – parece-lhe acertada?
Não sei, só poderia tomar uma decisão depois de conhecer ou à escala nacional ou a escalas regionais, nos vários países, aqueles quatro indicadores que referi. Tomaria sempre a minha decisão com base nessa informação. Acho que, por definição, tomar a decisão de não tomar nenhuma medida não me parece acertada. Gostaria de primeiro ter os números para tomar essa decisão.
Alguns especialistas da área da saúde consideram que devemos, cada um de nós, pensar que podemos estar infetados e agirmos com os cuidados necessários com base nesse pressuposto. Partilha dessa visão?
Eu partilho dessa visão, acho que devemos sempre assumir que somos casos suspeitos. Agora, acho que essa consciência não anula aquilo de que falava, que é de, alguma forma, os países tentarem ter mecanismos institucionais para perceber o que é que se passa, porque a abertura de fronteiras coloca este desafio. Uma coisa é conhecermos uma freguesia, uma comunidade, uma rua, um bairro e percebermos como as cadeias de transmissão funcionam.
Outra coisa é pensarmos que estamos de férias, andamos a passear, vamos a este e àquele restaurante, ao museu, à praia, vamos de uma cidade para a outra, e se nós estivermos a transmitir a doença de forma assintomática, que são os casos mais difíceis porque a pessoa não se sente doente, torna tudo mais difícil. Há uma consciência ao nível individual de que somos cadeias de transmissão potenciais e isso deve ser complementado com uma ação institucional por parte dos governos e do poder local para tentar manter a monitorização muito apertada e as regras preventivas que vamos sabendo que vão funcionando. Também me parece relativamente óbvio um grau de crescimento dos contágios que vai ter de acontecer de alguma forma.
É previsível um aumento com esta mobilidade?
Ah, sim. Claro que é previsível.
Mas a um ponto de poder ser incontrolável?
Não, se nós formos rápidos a fazer as monitorizações e as testagens, não. Temos de perceber qual é a abordagem que queremos seguir para esta doença, se é a erradicação das cadeias de transmissão ou se é a gestão das cadeias de transmissão. Dentro do espaço Schengen parece-me difícil seguir uma estratégia de erradicação das cadeias de transmissão, como países asiáticos e sobretudo ilhas podem fazer.
Embora não haja a obrigatoriedade de cidadãos de outros países europeus, do espaço Schengen, terem de fazer testes ou ficarem de quarentena se vierem para Portugal, recomendaria mesmo assim alguma precaução aos emigrantes mesmo não havendo essa obrigação, como fazer um teste à saída ou à chegada?
Cada caso é um caso, não posso dar uma resposta global para todas as situações. A mensagem que gostaria de passar é que cada pessoa individualmente devia fazer a reflexão, em primeiro lugar, se no seu dia a dia, no país onde trabalha e onde está a viver, é uma pessoa de risco ou não, tem contactos de risco ou não, tem cuidados ou não tem cuidados. E deveria, antes de vir para Portugal, tanto quanto possível, nos últimos 14 dias adotar o máximo de medidas de proteção no seu quotidiano, reduzir os seus contactos sociais, as saídas, além de usar máscara, desinfetar as mãos... E manter toda a sua rotina dentro do agregado familiar, se possível. Isto seria ideal para se ter a certeza que quando sai do país, pelo menos, minimizou os riscos de estar infecciosa.
Não desaconselho ninguém a vir, mas compete a cada um perceber se o facto de vir está a colocar risco acrescido a contrair a doença ou não, e isso não é desejável porque muitas vezes as pessoas vêm para estar com familiares mais velhos.
Depois, se puder, deve viajar na sua viatura própria. Quando chega deve também perceber, junto dos seus familiares, o que está a acontecer na zona onde vai passar as férias. E as pessoas que recebem, familiares e amigos que vão ter contacto com os emigrantes, também devem seguir uma lógica semelhante de reduzir fatores de risco e contactos sociais, de higienizar, para se garantir que as pessoas que vêm e as que as recebem de, alguma forma, estão o máximo possível preparadas para se contactar fisicamente. Não desaconselho ninguém a vir, mas compete a cada um perceber se o facto de vir está a colocar risco acrescido a contrair a doença ou não, e isso não é desejável porque muitas vezes as pessoas vêm para estar com familiares mais velhos.
É possível termos alguma normalidade sem esquecer de tudo aquilo que não podemos ignorar para que essa normalidade exista. Há cuidados a ter, mas acredito que se tivermos esses cuidados seja possível. Sobretudo se houver algum sintoma é importante que as pessoas não o desvalorizem mesmo. E se houver, o grupo mais próximo de contacto físico deve estar completamente em isolamento. Não devem facilitar.
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