Eles foram vítimas de abusos sexuais e querem dar voz aos sobreviventes
Eles foram vítimas de abusos sexuais e querem dar voz aos sobreviventes
Ana, Liv e Christian têm a vida marcada pelas sequelas emocionais deixadas pela violência que sofreram e acabam de fundar uma associação para dar voz às vítimas e sobreviventes da violência sexual, doméstica, psicológica ou de qualquer género.
A portuguesa Ana Pinto viveu 11 anos de um inferno de agressões físicas e emocionais às mãos do marido, do qual fugiu com o filho então de três anos, só com a roupa que tinham no corpo.
Aos 14 anos, Liv Jeitz-Wampach foi violada, várias vezes, pelo dirigente musical da banda onde tocava. Foi a tribunal com outras três vítimas mas o agressor foi condenado com pena suspensa, continuando em liberdade, porque não tinha antecedentes criminais.
Desde os seis aos 12 anos, Christian Faber foi abusado por um padre de um internato religioso no Luxemburgo onde vivia, carregando durante décadas a dor do silêncio. Em 2010, denuncia os abusos sofridos à Igreja e ao Ministério Público, é reconhecido como vítima.
Perseguidos pelos traumas
Ainda hoje, décadas ou anos depois, os traumas dos abusos os "perseguem". “Ainda hoje tenho medo de sair à rua e de o ver. Por exemplo, quando vou ao mercado olho bem para ver se o carro dele está lá. Já o vi duas vezes e isso deixa-me bastante perturbada”, contou Liv, 20 anos, recentemente ao Contacto. Isto mesmo contou a jovem aos deputados, quando foi ao parlamento debater uma petição pública que pede penas mais pesadas para os agressores sexuais.
Ana Pinto, que fugiu do então marido, em 2011, após mais uma vez ser espancada e ter acabado numa cama de hospital. Noutra vez, fechou-a na cave de casa um fim de semana, sem comida, nem bebida. Ainda hoje, 11 anos após a fuga, continua a ter pesadelos e continua em disputas legais com o ex-marido. E dá um exemplo. “Quando fugi do meu marido, com o meu filho, de três anos, deixando a nossa casa não trouxe comigo documentos importantes, nem posteriormente apresentei as devidas queixas ou fiz determinadas diligências, que hoje já prescreveram o prazo e me estão a dar muito trabalho e a não conseguir recuperar o que tenho direito”.
Só mais de 40 anos depois dos abusos sofridos em criança cometidos pelo clérigo do internato religioso, Christian Faber tomou coragem para revelar o sucedido, reivindicar justiça e indeminização. Depois de uma longa luta, a Igreja do Luxemburgo assumiu-o como vítima e indemnizou-o com o valor máximo de cinco mil euros, em 2013. Mas este valor não é suficiente nem para todos os gastos terapêuticos, nem para “devolver a honra das vítimas” de tais atrocidades cometidas por clérigos ao longo de tantos anos, como vincou numa entrevista ao Contacto.
Desde 2010 que se lançou numa cruzada contra os abusos sexuais da igreja, pedindo justiça para as vítimas, com audiências várias com representantes da Igreja no Luxemburgo. "Até agora, estava nesta cruzada sozinho, agora sinto que juntos nesta associação vamos ser mais fortes para apoiar as vítimas de violência, no Luxemburgo, de todo o género".
Ana Pinto e Christian Faber foram durante anos seguidos por psicólogos e Liv ainda continua a receber este apoio que como não tem comparticipação, os custos têm de ser pagos pelas próprias vítimas.
Juntos pelas vítimas
Corajosos, estes sobreviventes começaram a sua busca por justiça e alerta revelando publicamente as suas histórias na imprensa, escolas e participando em campanhas. Agora, juntaram-se para ajudar todas as vítimas de violência, seja qual for o género, prevenir esta violência e alertar o Luxemburgo para este drama que ainda é visto como “um tabu”.
Agora Ana Pinto, 46 anos, conseguiu realizar o seu sonho: fundar uma associação de apoio às vítimas “para que possam ter justiça, apoio especializado e não passem anos a sofrer em silêncio”. Consigo estão Liv e Christian e Patz, o núcleo central da associação “A Voz dos Sobreviventes”.
“Nós, como ex-vítimas compreendemos melhor do que ninguém o pesadelo de quem sofre abusos sexuais ou de outro género. O nosso objetivo é ouvir e encaminhar as vítimas e sobreviventes para os apoios certos, sejam legais, psicológicos ou de outra natureza. O objetivo é concentrar num só local todas as informações e ajuda que necessitem”, explica Ana Pinto.
Por isso, a dirigente lança o apelo público a especialistas das mais variadas áreas ligadas ao flagelo da violência que possam juntar-se à associação e dar apoio gratuito a estes casos. "Já temos um advogado que se juntou a nós disponibilizando-se para ajudar quem precise e várias pessoas já ofereceram também a sua ajuda", conta Faber.
O primeiro passo da nova associação foi a criação de uma página do Facebook e um endereço de email, onde as vítimas podem entrar em contacto com a associação. Em apenas sete dias 55 pessoas quiseram tornar-se membros da associação, anunciou Faber entusiasmado.
“Inauguramos a página do Facebook há uma semana e já recebemos inúmeras mensagens de apoio e de especialistas e antigas vítimas que se querem juntar a nós. Esta recetividade deixa-me emocionada e ao mesmo tempo revela realmente que a violência é um verdadeiro problema no Luxemburgo que se agrava por ainda ser silenciado e um tabu”, frisa a portuguesa que também tem nacionalidade luxemburguesa.
A “Voz dos Sobreviventes” quer, por isso, “ser a voz de todas as vítimas de violência física e psicológica, sexual, doméstica, bullying, mobbing, assédio sexual ou qualquer outra.
Muitas batalhas
São muitas as batalhas que a associação quer ganhar, desde a reivindicação de penas mais pesadas para os violadores e agressores, nomeadamente que não seja possível a abusadores, como o da então menor Liv, serem condenados a oito anos de prisão, mas passando em liberdade, com pena suspensa, por ser primo-delinquente.
Como vincam Ana e Liv, “o agressor da jovem abusou de quatro adolescentes, violou-as várias vezes e mesmo assim pode viver em liberdade porque não tinha antecedentes criminais”. “Que justiça é esta?”, interroga-se a portuguesa. Como adiantou a jovem luxemburguesa “a justiça devia funcionar melhor e prender efetivamente estes agressores para dar confiança às vítimas e dissuadir outros de cometerem o mesmo crime, sabendo que vão ficar presos na cadeia”, diz.
Outra das lutas é a comparticipação dos tratamentos psicológicos e de psicoterapia fundamentais para as vítimas poderem seguir com a sua vida, lidar com os abusos e recuperar a autoestima perdida. “Muitas vítimas não têm dinheiro para pagar estes longos tratamentos. O que queremos é que sejam os agressores a pagar este apoio às vítimas, ou quando não puder ser, que seja o Estado”.
A “Voz dos Sobreviventes” nasce para lutar “por uma sociedade mais justa e sensível para as vítimas e sobreviventes”. Para que, as vítimas “falem e denunciem logo os abusos, para que não tenham vergonha ou se sintam culpadas. As vítimas não têm culpa, a culpa é dos agressores e são estes que se devem sentir culpados”, lembra Ana Pinto.
"La Voix des Survivant(e)s Asbl" é uma associação sem fins lucrativos que ajuda vítimas de abuso sexual ou violência de qualquer tipo (registo comercial nº F13657). A estrutura ainda está a ser criada mas vários contactos já estão disponíveis (ver caixa acima).
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