Escolha as suas informações

E quando nos morre um amigo?
Opinião Sociedade 4 min. 16.03.2022 Do nosso arquivo online
Andamos todos ao mesmo

E quando nos morre um amigo?

Andamos todos ao mesmo

E quando nos morre um amigo?

Foto: Unsplash / Jack Sharp
Opinião Sociedade 4 min. 16.03.2022 Do nosso arquivo online
Andamos todos ao mesmo

E quando nos morre um amigo?

"Qualquer dia combinamos um jantar. O que achas?", "Boa, trata lá disso." Isto soa familiar? Quando foi a última vez que chutaram para canto uma combinação destas? Cheia de boa vontade mas vazia de intenção. Não por maldade ou falta de interesse. Mas apenas porque não é prioritário. Prioridade são as outras coisas. É a vida.

(Paulo Farinha)

Nós até queremos o jantar. Até queremos combinar. E fazemos muita força e convencemo-nos com muita certeza de que esta não pode ser daquelas coisas que dizemos da boca para fora, como quem fala da consulta que está para ser marcada há mais de um ano e de que só vamos tratar quando apanharmos um susto. Nós queremos, mas... é a vida.

O raio do dia a dia é uma desculpa extraordinária para adiar o que achamos que não é urgente. O trabalho, os filhos, o cansaço, as agendas que é preciso conciliar, o dia que não estica e as noites que pedem cama. Tudo é motivo para deixar para depois.

Estamos anos sem vermos aquelas pessoas de quem gostamos tanto, vamos sabendo uns dos outros pelas redes sociais e de vez em quando lá comentamos alguma coisa quando surge uma fotografia que nos puxa o fio da memória e da reação. E escrevemos que “o teu filho está enorme”, “como assim, a tua filha já vai para a faculdade?”, “o teu pai continua com óptimo aspecto” ou “que saudades desses tempos”. Dizemos mal do Zuckerberg mas são as marcas dele que nos vão permitindo este contacto, ainda que à distância.

É uma hipocrisia dos diabos. Tanto tempo sem nos vermos, sem sabermos uns dos outros, anos desde a última vez que nos abraçámos, e agora dizemos que falta que faz a pessoa que morreu – e para quem não telefonávamos há anos.

Depois passamos para os meses largos em que dizemos que “temos de combinar alguma coisa”. E em que adiamos essa coisa. Até ao dia... Até ao dia em que a vidinha que serve de pretexto para adiar tudo se transforma na puta da vida que nos aterra em cheio em cima da cabeça. E dos remorsos. Aquele dia em que nos falta um amigo. Em que ele vai embora. Para sempre. Porque tinha cancro e não sabíamos. Porque teve um acidente de carro e foi instantâneo. Porque sofreu um enfarte. Porque se suicidou. Até aquele dia em que toca o telefone e, sem estarmos à espera, o mundo fica incompleto.

É uma hipocrisia dos diabos. Tanto tempo sem nos vermos, sem sabermos uns dos outros, anos desde a última vez que nos abraçámos, e agora dizemos que falta que faz a pessoa que morreu – e para quem não telefonávamos há anos. Não somos más pessoas nem somos desligados nem somos insensíveis. Foi só o quotidiano a meter-se pelo meio e nós atarefados, apressados, metidos com as nossas coisas que são tão importantes, tão absorventes, tão prioritárias. Fomos só nós que não cuidámos de manter a presença.

E agora? Agora lidamos com a porra do arrependimento. E procuramos um sítio onde o guardar. Ali ao lado da vergonha, do embaraço e da culpa porque deixámos a tal vidinha ocupar o espaço que devia ser dos afetos e dos abraços.

Suponho que a morte do ator William Hurt e a quantidade de excertos de Os Amigos de Alex (The Big Chill) que vi nos últimos dias tenham despertado ainda mais estas ideias. Ninguém com o coração no sítio certo e amizades antigas que não foram sendo alimentadas presencialmente consegue ver o clássico de 1983 realizado por Lawrence Kasdan sem se emocionar. À medida que aquelas pessoas viajam, a partir da morte de um amigo, entre o que já foram como grupo e o que são obrigadas a ser como indivíduos – tudo por causa do tal dia a dia que se intrometeu–, somos nós ali também. A nossa história, os nossos amigos, a nossa vidinha.

Podemos ser parecidos com o Nick Carlton interpretado por Hurt ou rever-nos mais no Sam do Tom Berenger, no Harold do Kevin Kline ou no Michael do Jeff Goldblum. Ou sentir que a Sarah da Glenn Close é a nossa cara, mais do que a Meg ou a Chloe.

E, claro, haverá também quem se sinta uma fotocópia de Karen (JoBeth Williams), tão infeliz naquele casamento com o Richard (Don Galloway). E tão poderosa na cena do cortejo fúnebre, em que ele diz à mulher, depois de conhecer os amigos dela, que aquelas pessoas de que Karen falou toda a vida não são nada como ela sempre as descreveu. Nada bate o olhar dela, vazio e seco, a fitar o exterior enquanto suspira, depois de o marido rematar: “Gostava de saber como é que me descreverias a eles.”

Podíamos ser nós ali, naquele carro. A pensar em todos os pretextos que demos para adiar o que não devia ser adiado. A pensar na nossa vida. E na vidinha que se mete pelo meio e nos faz adiar tanta coisa essencial. Sejam os passos decisivos para nos fazer felizes ou os jantares com os amigos antes que eles se vão embora.

O Contacto tem uma nova aplicação móvel de notícias. Descarregue aqui para Android e iOS. Siga-nos no Facebook, Twitter e receba as nossas newsletters diárias.


Notícias relacionadas

Partilhar tarefas é bom. Mas não ter de discutir por causa do tubo da pasta de dentes aberto ou das meias no chão é melhor. Depois dos 40, se voltamos (ou começamos) a viver sozinhos, dificilmente voltamos atrás.
Paulo Farinha
@Rodrigo Cabrita
Andamos todos ao mesmo
O teu corpo vai fraquejar e quanto mais preparado estiveres para isso, menos sofrimento terás a partir dos 40 e tal.
Paulo Farinha
@Rodrigo Cabrita
Para muitos é motivo de festa. Para tantos é apenas motivo de preocupação e irritação. Seja qual for a razão que tenham, o Natal não é igual para todos. Alguns só querem que passe depressa.
Paulo Farinha
@Rodrigo Cabrita