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Ódio mortal. As vítimas lusófonas da extrema-direita alemã

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Ódio mortal. As vítimas lusófonas da extrema-direita alemã

Ódio mortal. As vítimas lusófonas da extrema-direita alemã
Investigação

Ódio mortal. As vítimas lusófonas da extrema-direita alemã


por Tiago Carrasco/ 20.01.2022

Foto: Shutterstock

Uma violenta onda de ataques neonazis varreu a Alemanha nos anos que se seguiram à queda do Muro de Berlim. O ódio racial fez mais de 200 mortos desde então. Entre eles, moçambicanos, angolanos e um português que perderam a vida apenas por serem estrangeiros. A justiça falhou quase sempre no julgamento dos crimes enquanto actos racistas.

(Correspondente em Berlim)

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Quando a cor da pele é sentença de morte
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Esperança Bunga passou a infância a ouvir que a sua mãe, Mónica, estava no céu. “E eu pensava: ’Se está no céu, quando é que ela volta?’. Durante muito tempo, pensei que tinha ido lá acima de férias e que um dia regressaria”, recorda a angolana, hoje com 27 anos. “Só quando comecei a perceber as coisas, que as pessoas morrem, é que entendi que teria de viver sem ela”.

Esperança Bunga perdeu a mãe e a irmã, num incêndio que se suspeita ter sido iniciado por neonazis, no norte da Alemanha.
Esperança Bunga perdeu a mãe e a irmã, num incêndio que se suspeita ter sido iniciado por neonazis, no norte da Alemanha.
Foto: Tiago Carrasco

Sem ela e sem uma das suas irmãs mais velhas, Nsuzana, ambas falecidas durante um incêndio no edifício para requerentes de asilo em que a família residia no nº52 da Hafenstrasse, em Lübeck, 60km a norte de Hamburgo, na madrugada de 18 de Janeiro de 1996. Esperança tinha dois anos e, juntamente com o seu pai, João, e a sua irmã mais velha, Juliana, então com nove anos, sobreviveu a uma catástrofe que vitimou dez pessoas (incluíndo sete menores) e provocou dezenas de feridos. A história passou a ser outra: “Contaram-me que o fogo tinha sido posto por uns racistas que tinham sido apanhados e condenados a prisão perpétua”, diz Esperança. Era apenas um fragmento da verdade. Apesar de vários indícios apontarem para que o incêndio tenha sido causado por quatro indivíduos ligados à extrema-direita, a justiça nunca conseguiu reunir provas suficientes para julgar os suspeitos: 26 anos depois, as mortes de Hafenstrasse continuam por justificar.

As nossas mulheres eram humilhadas e as crianças negras que estavam na creche sofriam intimidações.

Jone Munjunga, vítima da extrema-direita alemã

Naquela noite, quatro homens – René B., Heiko P., Dirk T. e Maik W. -, com idades entre os 19 e os 28 anos, saíram por volta da meia-noite de Gravesmühlen (na antiga Alemanha de Leste) para percorrerem 48km até Lübeck ao volante de um velho Wartburg creme. Segundo depoimentos prestados pelos próprios às autoridades, o seu objectivo era roubarem um carro, algo que concretizaram: furtaram um VW Golf GTI por volta da 1h da manhã e foram vistos com os dois veículos em vários pontos da cidade nas horas seguintes. Às 3h55m, a polícia interceptou o Wartburg com três ocupantes (Dirk T. tinha desaparecido com o Golf) nas imediações do edifício já em chamas. Ainda regressaram a casa, mas ao longo desse mesmo dia os quatro homens, com ligações à cena neonazi, foram detidos pelas autoridades como principais suspeitos do crime. À época, os ataques incendiários da extrema-direita a albergues de imigrantes ou refugiados eram comuns, com incidências recentes nas localidades próximas de Mölln, Rostock e Hoyeswerda, também com vítimas mortais.

As evidências pareciam incriminar cabalmente o grupo. As suas convicções racistas eram claras – Dirk T. tinha estado presente no atentado incendiário em Rostock e Maik W. era conhecido na região como “Pequeno Hitler” -, e um deles tinha três bidões de gasóleo no porta-bagagens. Além disso, a polícia detectou em três deles vestígios de cabelo e sobrancelhas queimados com toda a certeza nas 24h anteriores à detenção (uma pista estranhamente esquecida e só transmitida aos investigadores sete meses mais tarde, em Julho).

Também causou suspeita à polícia o facto de dois dos suspeitos referirem ter avistado “um corpo a arder” quando passaram pela Hafenstrasse, uma vez que aquando da sua presença no local ainda era impossível saber se havia cadáveres incinerados (havia um, o de Sylvio Amassou, togolês de 27 anos, previamente ameaçado pelos neonazis, acorrentado à mesa no rés-do-chão, mas só foi retirado depois de o incêndio ter sido extinto). No entanto, o gangue de Gravesmühlen acabou por ser libertado no dia seguinte, 19 de Janeiro, com dois álibis poderosos: o primeiro exame pericial indicou que o fogo tinha começado no 1º andar, onde eles não poderiam ter entrado, e o dono de uma gasolineira testemunhou tê-los visto numa estação de serviço a uma hora que os afastava do local do crime. Nunca mais seriam detidos pela suspeita de autoria do ataque.

As atenções viraram-se então para os moradores. A polícia acabou por deter o libanês Safwan E., com base numa alegada confissão transmitida a um bombeiro na noite da tragédia. Embora tenham sido reveladas ligações dessa testemunha à extrema-direita, Safwan foi levado a julgamento duas vezes, acabando absolvido por falta de provas e de motivação para o crime. “No início, a imprensa e a opinião pública estavam seguras de que se tratava de um atentado da extrema-direita. Mas depois da libertação dos suspeitos e da detenção do morador, começou a dizer-se que o fogo tinha sido provocado por desentendimentos entre os refugiados”, comenta Andreas Juhnke, autor do livro Brandherd, sobre o incidente da Hafenstrasse. “Como aconteceu tantas vezes, a opinião pública transformou as vítimas em responsáveis. Foram acusados de mania da perseguição e usou-se o caso para dizer que a discussão sobre o racismo na Alemanha era exagerada, que esse problema não era tão grave”.

Um dos quatro suspeitos, Maik W., confessou numa entrevista a Juhnke ter incendidado o edifício, desmentindo mais tarde a sua própria versão. Nos anos seguintes, o “Pequeno Hitler” admitiu a autoria do incêndio por mais três ocasiões, uma delas à própria polícia, contradizendo posteriormente o depoimento. 

Também Heiko P. reconheceu a participação no crime a um amigo. Os álibis do gangue foram postos em causa: perícias posteriores indicaram o rés-do-chão como local de ignição do fogo e foi revelada a simpatia da testemunha da bomba de gasolina pelo nacional-socialismo. “Este caso não é um mistério”, disse à imprensa Gabriele Heinecke, advogada de defesa de Safwan E., após a absolvição do seu cliente “É um crime com autores identificados a que falta apenas o carimbo de um juíz”. Contudo, o caso nunca foi reaberto e os suspeitos continuam em liberdade.

Esperança Bunga julgava-os presos até há pouco tempo. Também somente há dois anos ficou a conhecer as circunstâncias da morte da sua mãe e irmã: “Subimos todos para o telhado para escapar ao fumo. A minha mãe, obviamente em pânico, pensou que podia saltar dali para um riacho. Pegou na minha irmã e saltou, para se salvarem. Mas caíram no chão, não na água. A minha mãe teve morte imediata e a minha irmã morreu no hospital”.

Os Bunga partilhavam o último andar com a família Mokodila, do Congo: morreu a mãe e os seus cinco filhos menores numa noite em que o pai, um político exilado, estava em viagem de trabalho. Esperança só sobreviveu porque o seu pai conseguiu carregá-la às costas pelas calhas do telhado até ao lado do edifício que não estava a arder.

Após a tragédia, o pai, sabendo-se infectado por uma doença então incurável, viveu os seus derradeiros cinco anos angustiado por deixar orfãs as suas duas filhas. “Fez questão de me educar como um rapaz porque ele queria muito ter tido um filho. Penteava-me à menino e dizia-me que eu tinha de me aprender a defender, para eu nunca ter medo”, lembra Esperança que, com um sorriso rebelde e uma postura confiante, parece ter retido os ensinamentos do homem que lhe salvou a vida.

Eu só falo sobre o fogo aos amigos que acredito serem para toda a vida. E só lhes conto uma vez. Depois, acabou. Detesto que me tratem como vítima.

Esperança Bunga

Quando João morreu, em 2001, as irmãs Bunga foram adoptadas por uma prima do pai, residente em Nuremberga. A angolana optou por arrumar o traumático passado num local inacessível do cérebro: “Sei que não é bom ignorar o que aconteceu, mas será melhor viver permanentemente com essa mágoa?”, questiona. “Eu só falo sobre o fogo aos amigos que acredito serem para toda a vida. E só lhes conto uma vez. Depois, acabou. Detesto que me tratem como vítima”. Nem os professores sabiam o que lhe tinha acontecido. E nunca mais se aproximou da Hafenstrasse, nem mesmo quando visitava Lübeck. 


Projeto vai criar plataforma sobre trabalhadores forçados portugueses na Alemanha nazi
Estima-se que um milhar de portugueses tenha caído às mãos do III Reich. Muitos eram emigrantes em França, outros alinharam pelos republicanos na Guerra Civil de Espanha.

O incêndio surge listado como um crime de extrema-direita por dezenas de instituições independentes e ONG’s de luta contra o racismo. Está longe de ser um caso isolado. Desde a queda do Muro de Berlim e consequente reunificação da Alemanha houve centenas de estrangeiros perseguidos por hordas de neonazis, principalmente na ex-República Democrática Alemã (RDA), no leste. 217, pelo menos, perderam a vida. Logo nos primeiros anos da Alemanha unificada, trabalhadores moçambicanos e angolanos chegados à RDA através de um acordo laboral entre as repúblicas socialistas estiveram entre os primeiros mártires de um preconceito racial que a maioria dos alemães julgava enterrado desde o fim do nazismo.

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Vendaval de violência
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Amadeu António queria ser mecânico de aviões. Foi para concretizar esse sonho que em 1987 o angolano, com 25 anos, chegou à RDA no âmbito de um acordo entre o governo do seu país e o da Alemanha comunista. Mas os germânicos tinham outros planos: “Disseram-nos que íamos estudar para voltarmos a Angola com a formação adequada para nos tornarmos altos quadros no desenvolvimento do nosso país”, diz John Munjunga, 57 anos, que viajou com Amadeu na primeira leva de trabalhadores contratados. Porém, transmitiram-lhes à chegada que iam trabalhar numa fábrica em Eberswalde, Brandemburgo, a 50km de Berlim. “Vieram buscar-nos às 4h da manhã e levaram-nos para um matadouro. Ao longe, já ouvia os guinchos dos porcos. Íamos ficar numa fábrica de processamento de carne”.

Amadeu António chegou à Alemanha de Leste com 25 anos com o sonho de se tornar mecânico de aviões, mas acabou por ser colocado a trabalhar num matadouro.
Amadeu António chegou à Alemanha de Leste com 25 anos com o sonho de se tornar mecânico de aviões, mas acabou por ser colocado a trabalhar num matadouro.
Foto: Amadeu António

Ficaram decepcionados com o trabalho. Além disso, aperceberam-se de que iam viver segregados: “O racismo já existia na RDA mas estava abafado”, diz o angolano de Luena, Moxico, que antes de viajar trabalhava como contabilista no Ministério da Habitação. “Percebemos no refeitório da fábrica que havia mesas para alemães e outras para nós. Estávamos proibidos de nos misturarmos com eles e vivíamos num dormitório isolado da povoação. Não podíamos entrar na maioria dos restaurantes e bares e ninguém nos deixava sentar ao seu lado no autocarro. Caso soubessem que um de nós ia ter um filho com uma alemã, ela era obrigada a abortar”. Munjunga ficou surpreendido com o nível de ignorância dos seus colegas europeus, subjugados a um bloqueio informativo de notícias do ocidente: “Eles não sabiam nada da História da Alemanha, nem nazismo, nem guerra, nada. E ficavam muito surpreendidos por nós a conhecermos. Nós tinhamos sido doutrinados de que não havia racismo em nações socialistas mas descobrimos que existia na RDA uma ignorância bruta e a crença enraízada de que os alemães eram um povo superior”.

Foi neste contexto que Amadeu viveu os seus primeiros anos na Alemanha – que, sem ele saber, seriam também os últimos da sua vida. Em Novembro de 1989, o Muro de Berlim caíu e a Alemanha de Leste entrou em convulsão: as estruturas comunistas ruíram, muitos milhares de habitantes migraram para cidades ocidentais, centenas de empresas fecharam e outras despediram funcionários para se ajustarem aos padrões de produtividade capitalista. O desemprego disparou e, com ele, o medo de que os poucos estrangeiros presentes no Leste se apoderassem de postos de trabalho. “Foi como um vendaval que entrou e virou tudo do avesso”, comenta Munjunga.

Não tardou a que o racismo saísse do armário. Muitos jovens alemães que se sentiam alienados e abandonados agregaram-se em grupos de extrema-direita que rapidamente se disseminaram por pequenas cidades como Eberswalde. Ao longo de 1990, multiplicaram-se as perseguições e os espancamentos de forasteiros. “Vivíamos num cenário de guerra”, resume Munjunga. “Não podíamos sair à rua sem sermos ameaçados ou agredidos. As nossas mulheres eram humilhadas e até as crianças negras que estavam na creche sofriam intimidações”. Perante a ameaça e com o fim do acordo de trabalhadores contratados, a maioria dos moçambicanos e angolanos foi regressando a África. Amadeu não. Tinha-se apaixonado por uma mulher alemã, Gabi Schimanski, de quem esperava um filho. “Os que tinham família na Alemanha eram autorizados a permanecer”, lembra Munjunga, cuja namorada estava igualmente grávida. 

Homenagem ao angolano Amadeu António no local onde foi espancado mortalmente por dez neonazis, a norte de Berlim.
Homenagem ao angolano Amadeu António no local onde foi espancado mortalmente por dez neonazis, a norte de Berlim.
Foto: Tiago Carrasco

Na noite de 24 de Novembro de 1990, o angolano foi a uma festa de despedida de colegas moçambicanos que iam voltar a Maputo no Hüttengasthau, um dos poucos bares da cidade que permitia a entrada de negros. O casal que dirigia o negócio era tão querido aos africanos que foi apelidado de Papa Schulz e Mamã di Funge. Ao mesmo tempo, houve uma concentração de neonazis em Eberswalde: 50 extremistas deambulavam pela cidade em busca de negros para lincharem quando receberam a dica de que decorria a festa no bar. 

Tivemos de pedir emprestada uma arca frigorífica para preservar o cadáver porque o hospital não se quis encarregar do corpo.

Amigo de uma das vítimas mortais pelos nazis

Alertados, os donos pediram aos clientes para saírem. Tarde demais. Os agressores interceptaram Amadeu e dez deles agrediram-no selvaticamente com socos, tacos de basebol e pontapés com botas de biqueira de aço; já com a vítima inconsciente, um deles saltou a pés juntos sobre o seu crânio. Três polícias à paisana assistiram impavidamente ao homicídio sem actuarem. O angolano foi transportado para o hospital, onde faleceria a 6 de Dezembro em consequência das lesões sofridas. “Tivemos de pedir emprestada uma arca frigorífica para preservar o cadáver porque o hospital não se quis encarregar do corpo”, relembra Munjunga.


Os portugueses que lutaram para libertar o Luxemburgo dos nazis
Há 75 anos começava a escrever-se o derradeiro capítulo da II Guerra Mundial. Entre os soldados norte-americanos que enfrentaram a última investida do III Reich nas Ardenas havia milhares de soldados com nomes como Botelho, Encarnação, Gomes, Santos ou Silva. Rapazes de origem portuguesa, que deram o corpo e a vida pela libertação da região – e que a História foi votando ao esquecimento. Esta é a história deles.

Amadeu foi a segunda vítima mortal de ataques racistas na Alemanha reunificada. O homicídio chocou o país, que ainda rejeitava a existência de tão veemente ódio xenófobo nas regiões da ex-RDA. O julgamento culminou com a atribuição de penas ligeiras, a maior das quais de apenas quatro anos de prisão. Os três polícias acusados de cumplicidade por omissão foram absolvidos. “A polícia e a procuradoria investigaram o caso lenta e inadequadamente”, diz Ronald Reimann, o advogado da mulher e do filho recém-nascido de Amadeu António. “Houve pouco interesse em actuar contra os mais de 60 jovens suspeitos. As suas convicções neonazis foram ocultadas. 

Durante o julgamento, o tribunal mostrou muita compreensão pelos suspeitos e pelas testemunhas do círculo skinhead. Os factos foram desvalorizados e a atitude xenófoba não esteve em foco”. António Cascais, jornalista luso-alemão que cobriu profundamente o caso, refere-se ao julgamento como “vergonhoso”: “A Alemanha levou tempo a organizar-se após a reunificação. A polícia estava muito mal preparada e o sistema de justiça era caótico. Não havia juízes nem procuradores suficientes. Como os comunistas foram saneados, tiveram de recrutar profissionais da Alemanha Ocidental para irem para leste. Mas quem queria ir para lá? Quase ninguém. Por isso, foram transferidos os piores e mais inexperientes, a quem era prometida uma rápida progressão na carreira”, diz. 

Mais: muitos dos polícias, políticos e juízes mostravam empatia pela frustração sentida pelos alemães da RDA, quando não partilhavam mesmo as suas convicções misantrópicas. “Não era uma minoria”, explica o jornalista. “Os cidadãos aplaudiam e os políticos locais defendiam os agressores. Numa pequena cidade da Saxónia, os próprios políticos da Câmara contrataram um skinhead para pôr fogo a um lar de refugiados. A bitola era esta”.

Os homicidas do angolano nunca mostraram remorsos. Nos seus testemunhos em tribunal, abusaram da palavra neger (“preto”), sem objecções do magistrado. Reimann sublinha que a mulher de Amadeu precisou de protecção policial: o carrinho de bebé de Amadeu António Jr., entretanto nascido, chegou a ser vandalizado com pinturas de cruzes suásticas. Já Cascais, recorda a célebre entrevista que realizou ao agressor Sven M., em liberdade poucos meses após o julgamento: “Quando lhe perguntei se sentia peso na consciência, respondeu-me que “a culpa tinha sido do ’preto’ por ter saído do bar sabendo que eles estavam lá”. O corpo de Amadeu foi transladado para Angola sem qualquer apoio do Estado nem acompanhamento de representantes alemães. Os parentes em Angola não receberam quaisquer explicações nem indemnização.

O moçambicano Jorge Gomondai estava quase a regressar a Moçambique quando, aos 28 anos, foi assassinado por três neonazis num comboio em Dresden.
O moçambicano Jorge Gomondai estava quase a regressar a Moçambique quando, aos 28 anos, foi assassinado por três neonazis num comboio em Dresden.
Foto: Pita Paulo Gomondai

Uma realidade semelhante à vivida pela família de Jorge João Gomondai, moçambicano assassinado por três neonazis num comboio em Dresden, a 30 de Março de 1991, então com 28 anos. “Soube da morte do meu irmão uns dias depois pela rádio”, conta Pita Paulo Gomondai, 60 anos, irmão mais velho da vítima, desde Manica, em Moçambique. “Fui à Direcção-Geral de Trabalho e não tinham a informação oficial. Uns vinte dias depois, voltei a ouvir na rádio que o Jorge iria ser enterrado na Alemanha. Não podia ser, queríamos enterrar o meu irmão de acordo com as nossas tradições. Consegui a transladação, mas tive de pagar o transporte e fazer tudo sozinho. Nunca recebi qualquer contacto dos alemães nem da Embaixada de Moçambique”.

Os verdugos de Gomondai também escaparam com sentenças irrisórias: o principal responsável foi condenado a dois anos e meio por homicídio por negligência e os dois cúmplices a apenas um ano e meio de pena suspensa. Os familiares não puderam acompanhar o julgamento e só souberam dos factos através de jornalistas alemães que os visitaram em Manica dois anos depois. “Tanto a Alemanha como Moçambique estavam a atravessar momentos de crise política e quiseram abafar este tipo de casos”, opina Pita Paulo. “Mas dói muito. Não apenas por ter perdido um bom irmão, que estava prestes a regressar a Moçambique, como também pela forma desrespeituosa como fomos tratados”.

Emiliano Chaimite, outro trabalhador moçambicano contratado, tinha chegado a Dresden há 12 dias quando o corpo de Gomondai apareceu junto aos caminhos-de-ferro. Ficou assustado. “O clima era demasiado hostil. Não nos podíamos sentar nos assentos traseiros dos transportes porque era aí que nos apanhavam sem chamar a atenção dos motoristas. Também não era seguro andar na rua quando o Dínamo de Dresden jogava em casa, porque os ultras andavam pela cidade à caça de negros”, diz o actual político do SPD, de 55 anos. “Um dia esqueci-me de que o Dínamo jogava em casa e fui correr à noite. Cruzei-me com os nazis numa ponte e vieram atrás de mim. Tive de lutar pela vida, mas acertei um soco num e consegui fugir. Nos dias seguintes a estes episódios, tinhamos de ficar sempre vigilantes porque podiam fazer-nos esperas em casa ou retaliar contra as nossas famílias”.

Não apenas os africanos eram alvo de violência: como prova a lista de crimes de extrema-direita, o ódio alargava-se a eslavos, latinos, asiáticos, árabes, judeus, enfim, todos os estrangeiros. Também ao transmontano Nuno Lourenço Fontinha. Num período em que várias firmas portuguesas foram chamadas a trabalhar na construção de estruturas em cidades do leste alemão, Fontinha estava contratado pela Soares da Mota para uma obra nos arredores de Leipzig. Na noite de 4 de Julho de 1998, data do seu 49º aniversário, entrou numa cabine telefónica para falar com a sua esposa, Noémia, na mesma altura em que, em França, a selecção alemã de futebol perdia por 3-0 contra a Croácia no Mundial’98. 

Um grupo de oito neonazis, com idades entre os 15 e os 21 anos, decidiu então descarregar a frustração pela derrota espancando estrangeiros. O primeiro que encontraram foi o português. “Ouvi o auscultador a cair e depois gritos e os horríveis sons do meu marido a ser morto à pancada”, relembra, emocionada, a viúva Noémia Fontinha. Os pontapés na cabeça e os golpes com barras de ferro deixaram o português à beira da morte. A polícia apanhou os responsáveis poucos minutos depois.

O que se passou nos meses seguintes foi mais uma vez lamentável. 27 dias de hospitalização depois, Fontinha foi entregue às hospedeiras e transportado num voo para o Porto: “A empresa dizia-me que estava tudo bem mas quando o fui buscar ele estava cheio de feridas e hematomas, irreconhecível. Tinha perdido a memória, não conhecia ninguém. Tentámos tratar dele durante seis meses mas as lesões cerebrais eram irreversíveis”, diz Noémia. Acabaria por falecer a 28 de Dezembro do mesmo ano. “Morreu com a cabeça encostada ao peito do meu filho mais novo, que nunca recuperou desse trauma”, lamenta a viúva. “E eu nunca mais tive alegria na vida”.

Dominava aquela mentalidade muito portuguesa de não querer levantar ondas contra a Alemanha, que estava a pagar às empresas para trabalharem ali. Os adidos da Embaixada também escobriam as ocorrências, não fossem os alemães contratar outros. Metiam os trabalhadores agredidos numa furgoneta de regresso a Portugal com olhos à Belenenses e cabeças abertas, e o trabalho continuava.

Jornalista e defensor das vítimas dos neonazis, António Cascais

Noémia queria que se fizesse justiça. Foi 17 vezes a Leipzig e gastou quase 20 mil euros no julgamento dos homicidas do seu marido. Embora tenham sido detidos ainda com vestígios do couro cabeludo do transmontano nas botas, admitido que tinham intenção de matar e revelado que Andreas Schulz, principal responsável pela morte, comentou “que se tivesse uma faca tinha cortado a garganta” à vítima, a pena mais pesada (para Schulz) foi de quatro anos de prisão. “Foi decidido que os criminosos tinham de me pagar 55 mil euros e até hoje deles não vi nem um cêntimo”, diz Noémia. Nenhum dos réus lhe pediu perdão.

Houve dezenas de portugueses agredidos por neonazis neste período. “Dominava aquela mentalidade muito portuguesa de não querer levantar ondas contra a Alemanha, que estava a pagar às empresas para trabalharem ali. Os adidos da Embaixada também escobriam as ocorrências, não fossem os alemães contratar outros. Metiam os trabalhadores agredidos numa furgoneta de regresso a Portugal com olhos à Belenenses e cabeças abertas, e o trabalho continuava”, diz o repórter, que denunciou vários casos nesse período. “Recordo-me de trabalhadores me dizerem que tinham estado em obras na Venezuela, Brasil, Egipto, Zimbabué, e que nunca tinham estado num sítio tão perigoso como o Leste da Alemanha”.

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Racismo escondido pelo Muro
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De acordo com a narrativa dominante na Alemanha, esse perigo racista nas zonas da antiga RDA teria eclodido após a queda do Muro, resultante do descontentamento popular em relação ao processo de reunificação do novo governo federal liderado por Helmut Kohl, que desfavorecia os trabalhadores do Leste. O regime socialista que governou austeramente a RDA durante mais de 40 anos orgulhava-se de ter erradicado o nazismo e o racismo dos seus domínios. O investigador Harry Waibel, 75 anos, provou que esta ideia é falsa: “A RDA não só não conseguiu erradicar o racismo como, em muitos casos, permitiu que ele florescesse”, diz. 

Apesar de passar a imagem de que não tinha racistas, a RDA contava com mais de 400 grupos de extrema-direita activos aquando do seu colapso, em 1990.
Apesar de passar a imagem de que não tinha racistas, a RDA contava com mais de 400 grupos de extrema-direita activos aquando do seu colapso, em 1990.
Foto: Harry Waibel

Após anos de consulta dos arquivos da Stasi, a polícia de segurança do Estado da RDA, Waibel chegou a números desarmantes: cerca de 7 mil acções neonazis, 725 ataques xenófobos em mais de 400 localidades, mais de 200 pogroms (perseguições de grupos violentos a imigrantes) que afectaram estrangeiros de 30 países e 10 mortos em ataques racistas. Entre eles, Waibel identificou duas vidas lusófonas apagadas: a de Carlos Conceição, 19 anos, e de João Manuel Diogo, 23, os dois primeiros formandos contratados a Moçambique assassinados por nacionalistas. Conceição foi atirado ao rio Bode, em Staßfurt, por seis neonazis, tendo morrido afogado perante a passividade de 60 testemunhas, que não acudiram aos seus pedidos de socorro. “No processo, está descrito o comentário de um dos presentes: ’É só um pedaço de carvão a boiar’”, relata o autor de Die Baune Saat, uma investigação sobre a história do racismo na RDA. Nem assim as autoridades socialistas catalogaram o crime como xenófobo, até porque oficialmente a xenofobia não existia na RDA: o principal perpetrador foi condenado a cinco anos de prisão por “ofensa física agravada”.

Ainda assim, o crime foi reconhecido. Tal não aconteceu na investigação à morte de João Manuel Diogo, 23, cujo corpo apareceu desmembrado perto de Dessau, junto à linha de comboio, na noite de 30 de Junho de 1986. Três dias mais tarde, a polícia concluiu que o moçambicano, embriagado, tinha saído em andamento, acabando atropelado pela locomotiva. “Pareceu-me logo estranho que o dossiê de um caso acidental estivesse classificado como “estritamente confidencial”. Depois, o antigo Embaixador de Moçambique reconheceu que as autoridades germânicas lhe tinham transmitido, à época, que Diogo tinha sido assassinado por neonazis, aceitando as desculpas e promessa de sigilo”, relata Waibel.

Os novos elementos levaram a Procuradoria de Potsdam a ponderar a reabertura do caso, mas em Março de 2021 foi anunciado que não tinham sido encontradas razões para tal. Waibel não se conforma: “Houve muitos incidentes racistas como este de Diogo em que pessoas morreram ou ficaram gravemente feridas e que foram deliberadamente encobertas e silenciadas, porque perseguições e ataques a estrangeiros não se adequavam à imagem que a RDA queria passar ao mundo”, diz.


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Waibel apurou que, em 1990, aquando do colapso, existiam na RDA aproximadamente 400 células neonazis. Os seus membros estavam infiltrados em claques de clubes de futebol, na cena do heavy-metal de direita, mas também em escolas, nas fábricas, no exército e na polícia. Este fenómeno aconteceu, segundo o investigador, porque a ideologia autoritária, militarista e ultranacionalista que imperava na RDA tinha intersecções com o regime nazi anterior, agravado pela rejeição de noções como neofascimo ou anti-semitismo, que não entravam no léxico comunista. “Houve um enorme falhanço na ’desnazificação’ da RDA, uma vez que aqueles que apoiavam os nazis transitaram para a elite governativa comunista”, explica o académico.

O percurso de Ingo Hasselbach, líder neonazi em Berlim no início da década de 90, vai ao encontro da tese de Waibel. Filho de comunistas, Hasselbach tornou-se punk aos 13 anos: ”Cedo percebi que ser punk irritava a Stasi e, mais tarde, que ser skinhead os irritava muito mais”, diz Hasselbach, dissidente da extrema-direita há 25 anos. “Como a Stasi não nos deixava fazer nada, irritá-los era um passatempo. Em 1986, estava tão farto que tentei saltar o Muro para ocidente e, claro, fui preso”. Foi encarcerado com nazis acusados de crimes de guerra, como Heinz Barth, o assassino de Oradour, sentenciado a prisão perpétua, e Henry Schmidt, chefe da Gestapo em Dresden e responsável pela deportação dos judeus da cidade para Auschwitz. “Eles, com 70 ou 80 anos, estavam orgulhosos do que tinham feito e viam-no como uma necessidade em tempo de guerra”, conta Hasselbach. “Perceberam rapidamente que os jovens que ali estavam tinham uma raiva enorme contra o sistema e contra a ideologia comunista. E usaram-na habilmente para nos radicalizarem. Se tivesse ido parar à cela de Hare Krishnas, tinha ficado como eles. Infelizmente, saíram-me nazis”.

Foi muito complicado. Bateram nos meus irmãos e enviaram uma carta-bomba à minha mãe que, felizmente, não detonou. Sair da cena neonazi é como abandonar uma seita.

Ingo Hasselbach, antigo líder neonazi em Berlim

Assim que o Muro caíu, o skin, então com 23 anos, foi para Hamburgo com os amigos e conheceu o líder dos nacionalistas locais, Michael Kühnen: “Ele sabia que a juventude do Leste da Alemanha estava revoltada e desorientada e que havia ali terreno fértil para o crescimento da ideologia neonazi”, explica Hasselbach, que assumiu o papel de führer (líder, em alemão) em Berlim Oriental. Ocupou uma casa com 10 amigos e duas semanas mais tarde já eram mais de 100. Recebiam financiamento e material propagandístico de células nacionalistas da Holanda e, no início, até tinham boa imprensa. Formaram um partido, a Alternativa Nacional, distanciando-se da imagem de Hitler – “que para o povo só representava genocídio” -, e adoptaram o slogan “Alemanha para os alemães”.

Ainda em 1990, começou uma guerra nas ruas contra os Antifa, militantes de extrema-esquerda que também tinham ocupado edifícios abandonados em Berlim. Hasselbach já não conseguia sair à rua sem ser rodeado por dezenas de camaradas, ao mesmo tempo que se disseminavam pelo país ataques da extrema-direita a estrangeiros. Ele não gostava: “Sempre me considerei um ideólogo e nunca agredi um imigrante”, diz. Quando, em 1992, neonazis incendiaram um asilo de refugiados em Möhll, matando dois cidadãos turcos, o führer decidiu sair de cena. “Foi muito complicado. Bateram nos meus irmãos e enviaram uma carta-bomba à minha mãe que, felizmente, não detonou. Sair da cena neonazi é como abandonar uma seita”, afirma. Hasselbach passou a dedicar-se a ajudar neonazis a abandonarem o movimento.

O moçambicano Ibraimo Alberto, à esquerda, tornou-se pugilista para se defender de ataques racistas e proteger os amigos. "Entrava com tanta raiva que muitas vezes ganhava por KO ao primeiro assalto", diz.
O moçambicano Ibraimo Alberto, à esquerda, tornou-se pugilista para se defender de ataques racistas e proteger os amigos. "Entrava com tanta raiva que muitas vezes ganhava por KO ao primeiro assalto", diz.
Foto: Ibraimo Alberto

O moçambicano Ibraimo Alberto também conheceu bem estes confrontos urbanos. Aterrou em Berlim em Junho de 1981, ao abrigo do acordo bilateral de trabalho, e tal como Amadeu António foi empregado num matadouro: “De nada me serviu dizer-lhes que era muçulmano e que não podia tocar em carne de porco”, afirma. Ibraimo, que afirma nunca ter gostado de ver os mais fracos sofrer, percebeu que tanto ele como os seus patrícios eram os mais débeis naquela sociedade; então, pediu à sua professora de alemão para o levar a um treino de boxe. “Essa decisão salvou a minha vida”, afirma hoje, aos 58 anos.

O moçambicano tornou-se num pugilista respeitado. Em 211 combates, só perdeu 17 e venceu mais de 40 por KO. “Quando combatia em pequenas cidades em redor de Berlim, o ambiente era terrível. Subia ao ringue e chamavam-me macaco, faziam troça por ser negro. Quando o combate começava, estava tão nervoso que muitas vezes arrumava os adversários por KO ao primeiro assalto”, lembra. À saída, tinha de ser protegido por amigos pugilistas porque o público queria matá-lo. “Esta foi a minha realidade em quase 20 anos de pugilismo no leste da Alemanha”, afirma.

Perdeu a conta à quantidade de vezes que teve de usar o seu dom fora dos ringues. “Vinham provocar-me nos transportes ou na rua e eu avisava-os primeiro. Quando não me largavam, tinha de lhes dar um murro. As pessoas gritavam: ’Ai, morreu, morreu’. E eu dizia: ’Não morreu nada. Já acorda e com sorte não se vai lembrar que é racista’”. Ibraimo era amigo de infância de João Manuel Diogo. Quando este morreu, Ibraimo diz ter sabido imediatamente que tinha sido assassinado por neonazis. Em 1990, pensou regressar a Moçambique com o sonho de treinar a selecção nacional de boxe. “Mas meti na cabeça que o racismo não me podia impedir de ficar na Alemanha. Tinha de vingar aqui”, diz.

Não lamenta a decisão. Ibraimo impôs-se como treinador de boxe e assistente social. No entanto, em 2010, o ódio racial voltaria a bater-lhe à porta. Um bando de nacionalistas invadiu um jogo de futebol da equipa do seu filho, então com 17 anos, anunciando que o iam matar. Ibraimo estava nas bancadas e gritou aos desordeiros que tinham de o matar primeiro. A polícia conseguiu acalmar os ânimos mas, semanas depois, os nacionalistas juntaram-se para atacar o apartamento da família em Schwedt/Oder. Embora os vizinhos e as autoridades tivessem prevenido o linchamento, Ibraimo não teve outra opção que não mudar-se com a mulher e os dois filhos para Karlruhe, no extremo contrário do país. “Não podia bater em tantos. Esta era a única solução para proteger a minha família”, afirma.

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Esperança em pessoa
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Três décadas após a reunificação, a Alemanha ainda não conseguiu expurgar a ameaça racista. Não obstante, paulatinamente, a situação foi-se tornando mais favorável para as minorias étnicas. Logo em 2000 houve indicadores positivos. Quando o moçambicano Alberto Adriano, pai de três filhos, foi espancado até à morte por três neonazis num parque em Dessau, o principal responsável foi acusado por homicídio com motivações racistas e recebeu ordem de prisão perpétua. Ronald Reimann, que foi advogado da família de Adriano, marca bem as diferenças para o caso de Amadeu António, que defendeu dez anos antes: “Este caso foi assumido pelo Gabinete da Procuradoria Pública a nível federal como uma ’ameaça à segurança nacional’ e trabalhado como sendo de ’máxima importância’. Tudo foi feito rapidamente e as sentenças foram exemplares”, diz.


Embora o Estado tenha financiado plataformas de apoio a imigrantes e fundos de compensação para vítimas de racismo, foi a sociedade civil, nomeadamente pessoas cujas vidas foram directamente abaladas pelo preconceito racial, que mais lutaram para apaziguar o ódio. Em Eberswalde, John Munjunga fundou a associação Palanca para manter viva a memória de Amadeu António e para dar a conhecer a cultura africana. “A seguir à morte do Amadeu, íamos às escolas e as crianças alemãs nunca tinham visto um negro. Tocavam-nos na pele para ver se estava suja e perguntavam-nos se vivíamos nas árvores como os macacos”, lembra Munjunga. “Depois de muitas visitas, já nos abraçavam e diziam bem de nós aos professores”. Munjunga continua a organizar homenagens a Amadeu António no aniversário da sua morte e trabalha como assistente social para refugiados de outros pontos de África, como a Eritreia, a Somália ou o Sudão.

O jornalista António Cascais considera "vergonhosos" os julgamentos dos assassinos de Amadeu António e Nuno Fontinha. O repórter angariou fundos para ajudar as famílias das vítimas.
O jornalista António Cascais considera "vergonhosos" os julgamentos dos assassinos de Amadeu António e Nuno Fontinha. O repórter angariou fundos para ajudar as famílias das vítimas.
Foto: António Cascais

Através da iniciativa "Light Me Amadeu", o jornalista António Cascais conseguiu angariar fundos para que a mãe da vítima, Helena Afonso, moradora no musseque de Rocha Pinto, em Luanda, fizesse obras para impedir a chuva de entrar em casa. Cascais conseguiu também levá-la a Eberswalde para que pudesse ver o local da morte do seu filho: “Para a tradição africana, é muito importante a mãe saber onde o filho morreu. Assim que lá chegou, ajoelhou-se e começou a chorar”, recorda Cascais, que também juntou donativos para Noémia Fontinha custear as despesas do julgamento.

Emiliano Chaimite fundou associações como a Afroeuropa para que os moçambicanos passassem a ter um sítio para se organizarem. Pressionou o município para que, em 2007, Dresden desse o nome de Jorge Gomondai a uma praça. O irmão Pita Paulo e a mãe da vítima estiveram presentes na cerimónia.

Ibraimo Alberto regressou em 2017 a Berlim, onde dá treinos de boxe a jovens alemães e estrangeiros. Escreveu uma autobiografia, em que revelou que os trabalhadores moçambicanos contratados foram vítimas de burla: “Tinham-nos prometido que 60% do nosso salário mensal seria enviado para Moçambique para estar à nossa espera quando regressássemos a casa. Mas o dinheiro nunca chegou a Maputo”, denuncia. “O governo moçambicano aceitou que o dinheiro do nosso trabalho fosse usado para pagar as dívidas de armamento que tinham para a RDA. Fomos lesados em milhares de euros”. Ibraimo lançou uma petição para que o Parlamento aprove uma compensação aos moçambicanos lesados.

Em 2000, Ingo Hasselbach fundou a EXIT e desde então já ajudou centenas de pessoas a saírem de organizaçãos radicais, como células neonazis, máfias ou grupos islamistas. Ainda recebe protecção policial, tem identidade e morada falsas.

Apesar de todos os esforços, houve mais ataques racistas na Alemanha em 2020 do que em qualquer outro ano das duas décadas anteriores. O acolhimento de centenas de milhar de refugiados em 2015 inflamou os grupos nacionalistas que voltaram a incendiar albergues de refugiados e a cometer atentados contra imigrantes, como o atentado em Hanau, em 2020, ou os assassinatos em série cometidos pela NSU. As vítimas de hoje podem não ser angolanas ou moçambicanas, são sírias ou afegãs. Mas ódio é sempre ódio, independentemente de qual a bandeira manchada de sangue. “Os ataques hoje são muito direccionados contra muçulmanos. A AfD, o partido nacionalista que está sentado no Parlamento, tem contribuído com a proliferação do discurso de ódio contra eles”, diz Biblap Basu, co-fundador da ReachOut, uma associação de Berlim que presta apoio jurídico e psicológico às vítimas de racismo. “Outra grande diferença é que há 30 anos havia mais gente não-filiada em grupos neonazis envolvida nos ataques e tudo se passava mais à superfície. Hoje os grupos nacionalistas radicais são maiores, estão melhor organizados e planeiam os seus crimes na clandestinidade”. Basu acredita que actualmente as vítimas estão muito melhor informadas e apoiadas por redes associativas que os defendem.

Esperança Bunga estava fora dessas redes até Dezembro de 2020. Por altura do Natal, o seu telefone tocou. Era Jana Schneider, 31 anos, activista da iniciativa Hafenstrasse 96, que luta pelo apuramento da verdade no caso de Lübeck e pela memória das vítimas: “Queríamos trazer para a nossa luta uma nova geração de sobreviventes da tragédia mas não conseguíamos aceder à Esperança. Quando consegui o número, sabia que tinha de lhe explicar tudo da melhor forma, para ela voltar a Lübeck e dar voz à causa”, diz a activista. A angolana ouviu tudo com a máxima atenção e decidiu participar pela primeira vez na homenagem às vítimas, por ocasião do 25º aniversário da noite fatídica: “Estive estes anos todos calada enquanto estas pessoas estiveram sempre a lutar para que se faça justiça pela minha mãe e pela minha irmã’. Fui ter com a minha irmã Juliana e disse-lhe para fazer a mala porque tinhamos de ir para Lübeck”, recorda.

Quando chegou, o edifício atacado – entretanto demolido e substituído por uma fábrica de muesly – estava projectado numa parede em tamanho real. A angolana tremeu: ao longo daquele quarto de século tinha conseguido vencer as dificuldades, estudar, aprender idiomas, arranjar um emprego num hotel de cinco estrelas, seguir em frente evitando a vertigem que estava atrás. Naquele dia, voltou a enfrentar as chamas do desgosto: “Eu tinha dois anos, não me lembro do que aconteceu”, relata Esperança, a quem até hoje, apesar de nascida na Alemanha, as autoridades ainda não concederam nacionalidade. “Mas ao olhar para aquela imagem, vi as pessoas a passar no prédio, como viviam, como tentavam escapar à morte naquela noite”. 

O seu aparecimento ajudou a que o caso de Lübeck voltasse a ter projecção mediática: “Isso é muito importante porque o processo só poderá ser reaberto com o surgimento de novas provas ou testemunhas”, explica Jana, que acredita que foram cometidos erros crassos na investigação policial. A sobrevivente acredita ser possível. “Afinal, porque é que os meus pais me deram este nome? Esperança! Eu sou a esperança em pessoa. Como tal, sei que os culpados vão pagar pelo que fizeram. Pode não ser amanhã, no próximo ano, ou na próxima década. Mas nem que seja no meu último dia de vida, eles vão ter de enfrentar a verdade”.

(Autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.)

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