Dinheiro não dá felicidade... mas compra vacinas
Dinheiro não dá felicidade... mas compra vacinas
O segundo avião, no entanto, não era esperado. Este voo privado trazia a bordo o multimilionário Rod Baker, dono de casinos, e a sua mulher Ekaterina, aspirante a atriz. Alegando que o nevoeiro os forçou a aterrar ali no meio do nada, apanharam uma boleia desde o improvisado aeroporto até à pequena aldeia, onde há uma bomba de gasolina, um restaurante e dois motéis em madeira, tudo gelado e deserto, a desolação de uma existência difícil ali à vista de todos.
Nem isso foi suficiente para demover o jovem casal do seu propósito: fingir que eram empregados de um motel local, e assim receber a vacina, ultrapassando na fila, em minutos, pessoas que ali vivem há oito décadas. Mal o líquido da Pfizer lhes entrou nas veias, os milionários correram de volta à avioneta que os levaria de volta ao condomínio de luxo em Vancouver, a 3000 km de distância – só que a pressa dos Baker levantou suspeitas e a polícia apanhou-os. Justiça para quem quebra a lei?
Nem por isso: a multa ficou em 1500 euros, menos do que custou a viagem e meros amendoins para quem tem uma fortuna de 40 milhões. Compensa colocar em causa a saúde de toda uma comunidade que, pelo seu isolamento, não tinha até aí registado nenhuma infecção.
Onde há vacinas, há uso de poder, influência e dinheiro para saltar a fila.
Pelo absurdo, pelo desplante dos personagens que pensam (ou sabem?) estar acima de tudo e todos, esta história tornou-se célebre. Até porque certamente o casal Baker é um caso isolado a nível mundial, uma excepção à regra nestes planos de vacinação sempre eficazes, ordeiros e éticos, em que todos esperam pacientemente a sua vez e entendem que importa definir as diferentes fases não olhando as posses materiais, mas sim para o papel que cada um desempenha na sociedade.
O parágrafo anterior era a brincar. Os Baker só se destacam por serem incompetentes em usar os seus privilégios: em toda a parte onde há (algumas) vacinas multiplicam-se os casos de pessoas que usam o seu dinheiro, a sua influência ou (à velha maneira portuguesa) as suas "cunhas" para saltarem à frente de todos e receberem a sua dose de líquido imunológico. Na lista de escândalos há generais espanhóis, governantes polacos, autarcas austríacos, filhas de milionários brasileiros e etc., mas a verdadeira vergonha é sabermos que isto não passa de uma minúscula ponta visível de um gigantesco icebergue encoberto.
Neste mundo de cada-um-por-si-e-ninguém-por-todos em que vivemos – uma situação ironicamente agravada pela própria pandemia – sabemos que não há ninguém com verdadeiro poder que não esteja já vacinado neste momento. E os nossos lamentáveis líderes políticos, em vez de assegurarem a justiça e eficácia da distribuição de vacinas, continuam entretidos a inventar novas formas de intensificar a repressão sobre as populações exaustas. Assim fica muito difícil de manter acesa a esperança.
(Este autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico).
Siga-nos no Facebook, Twitter e receba as nossas newsletters diárias.
