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Crianças em perigo por trás dos ecrãs
Sociedade 11 min. 13.01.2022 Do nosso arquivo online
Internet

Crianças em perigo por trás dos ecrãs

Um dos principais problemas dos jovens é o da viciação nos jogos online e nas redes sociais.
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Crianças em perigo por trás dos ecrãs

Um dos principais problemas dos jovens é o da viciação nos jogos online e nas redes sociais.
Foto: Arne Dedert/dpa
Sociedade 11 min. 13.01.2022 Do nosso arquivo online
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Crianças em perigo por trás dos ecrãs

Madalena QUEIRÓS
Madalena QUEIRÓS
Com o confinamento cresceram os casos de cyberbullying. No Luxemburgo, 1 em cada 10 jovens já foi vítima deste problema.

Sem que ninguém se aperceba acontece onde menos se espera. "Muitas vezes na nossa casa, no quarto, os nosso filhos podem estar a ser abusados sexualmente sem que os pais o saibam", sublinha Marta Ventura Correia, presidente do The Insight Project, uma organização não-governamental do Luxemburgo que luta contra o tráfico sexual. Os números são assustadores. Há estudos que revelam que "do primeiro contacto com as crianças, via WhatsApp ou através de outras plataformas, até que haja um efetivo abuso sexual, que pode passar por partilha de fotografias ou vídeos das crianças, passam apenas 28 a 72 horas", revela Marta Ventura Correia.

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Com a pandemia e o confinamento os riscos cresceram exponencialmente. O encerramento forçado das escolas, fez com que as crianças tivessem que recorrer ainda mais às novas tecnologias para terem aulas e conectar-se com o mundo exterior, muitas vezes, sem estarem preparadas. "Foi como colocá–las a conduzir numa autoestrada, sem cinto de segurança quando nem sequer sabem conduzir nas estradas secundárias", descreve. "Sem saber o que fazer quando alguém tenta um encontro ou insiste em obter vídeos ou fotografias que muitas vezes acabam em sites de pornografia infantil ou na dark web", acrescente Marta Ventura Correia.

Muitas vezes o primeiro contacto pode acontecer através de um jogo, como o Fortnite, do Tik Tok ou do WhatsApp. Recentemente "um homem de 56 anos foi detido porque tinha aliciado um jovem a enviar-lhe um vídeo em troca do acesso a uma ferramenta que lhe permitia passar de nível no Fortnite. Em vez de serem os pais a comprar são estes predadores que facultam estas ferramentas", sublinha.

Há pais que dão mais atenção ao Facebook do que aos filhos.

Filipe Moreira, professor

Também o professor Filipe Moreira, relata um caso de um aluno de uma escola pública que foi vítima de extorsão, através de um jogo online. "Os dados que existem mostram que riscos se agravaram, há mais crianças que reportam ser vítimas de cyberbullying", sublinha o professor especialista em Tecnologias para a Educação.

Marta Ventura Correia recebeu "recentemente uma denúncia de uma mãe do caso da filha a quem foi pedido por um colega que enviasse um vídeo a masturbar–se. As imagens acabaram por correr a escola toda. O autor diz que o vídeo foi apagado mas quem é que garante que não esteja ainda na internet".

"Muitos destes casos levam os jovens à depressão e temos visto um aumento dos casos de suicídio", sublinha.

Casos de sextortion

Tudo começou com uma brincadeira. Joana, 13 anos, enviou imagens de si própria nua a um colega da escola que considerava namorado. Um caso de sexting, uma expressão criada para designar o envio de imagens, fotos ou vídeos sexualmente explícitos. O colega fez chantagem e ameaçou divulgar as fotografias. O caso acabou num crime de sextortion que foi denunciado à polícia. Foi instaurado um processo disciplinar e o aluno acabou por sair da escola. Joana teve que ter acompanhamento psicológico para conseguir ultrapassar a situação.

Mas há casos de terminam de forma dramática. Como a história de Jessica Logan, uma finalista do 18 anos do Liceu de Sycamore, nos Estados Unidos que se suicidou depois de ser vítima de sexting. Tudo começou porque enviou uma foto sua nua ao seu namorado. Segundo o Cincinnati Enquirer, a fotografia foi enviada a centenas de adolescentes em pelo menos sete escolas secundárias da região depois de o casal se ter separado.

Casos como estes multiplicam-se com jovens mas também com adultos. "Temos que ensinar as crianças a lidar com coisas que, muitas vezes, nem os adultos sabem como resolver", afirma Ana Cristina Barbosa, psicóloga da educação. Nas redes sociais podem acontecer todo o tipo de coisas. Como o caso de uma turma do 1° ciclo que criou um grupo no WhatsApp "Todos contra a Ana". O grupo integrava todos os alunos da classe, menos a Ana. Há também o caso do João, um adolescente que vivia obcecado por um jogo. Quando os pais lhe tiravam o acesso ao dispositivo que lhe permitia jogar tinha ataques violentos.

Viciados na rede

Os jovens e adolescentes passam, em média, seis horas por dia em frente aos ecrãs, mais de metade do seu tempo livre. Uma em cada três crianças e jovens já foram vítimas de cyberbullying, de acordo com os números divulgados pela Unicef.

"Há casos de alunos de 12, 13 anos que chegavam a passar doze horas por dia ligados à internet durante o fim de semana", revela o investigador Filipe Moreira. O professor do Instituto Politécnico da Guarda diz que um dos principais problemas dos jovens é o da viciação. "Os jogos e as redes sociais estão preparados para viciar, porque causam um prazer e satisfação imediata que não acontece na vida real", sublinha o docente. Como detetar se um jovem está viciado? "Se quando não está utilizar o dispositivo começa a ficar nervoso e ansioso e sempre à sua procura para o utilizar" esse é um sinal. Mas muitas vezes o fenómeno começa com os pais. "Há queixas de que os pais dão mais atenção ao Facebook do que aos filhos, o que acaba por se repercutir nas crianças que reproduzem esse comportamento."

Quando os predadores se fazem passar por crianças

Este é um dos principais riscos que as crianças e jovens correm na internet. Chama-se child grooming e "acontece quando um adulto entra em contacto com uma criança nas redes sociais fingindo que é um menor", explica Jeff Kaufmann, responsável pelo programa "Bee Secure" no Luxemburgo. Depois há o cyberbullying, em que jovens espalham a difamação, ódio, insulto ou fotografias íntimas de uma vítima nas redes sociais. Com a recente pandemia esta agressão começou a acontecer mesmo nos grupos do Teams (programa de vídeoconferências da Microsoft) onde decorriam as aulas.

Para o responsável do programa que pretende garantir uma utilização segura da internet e redes sociais no Luxemburgo existe ainda o risco dos "jovens serem muitas vezes confrontados com conteúdos que não são apropriados para a sua idade".

Com o confinamento "a escola, o tempo livre e os contactos sociais passaram a acontecer em casa, através dos media digitais,  revela um estudo da Comissão Europeia. O estudo que analisa 11 países europeus conclui que cerca de metade dos jovens foram vítimas de cyberbullying, pelo menos uma vez, durante o primeiro período de confinamento.

Jogos perigosos

E há jogos que podem chegar longe demais. Foram noticiados vários casos de crianças que morreram na sequência de desafios do TikTok. O mais recente aconteceu em Taiwan. Nyla Anderson morreu, de acordo com relatos de familiares, ao tentar participar no 'Desafio Blackout', que consiste em conter a respiração até desmaiar. Vários países limitaram o uso desta plataforma. Mesmo a China, o país onde nasceu o TikTok limitou o uso diário a 40 minutos a crianças com menos de 14 anos.

Depois de vários problemas a China limitou o uso do TikTok a 40 minutos por dia para os menores de 14 anos.
Depois de vários problemas a China limitou o uso do TikTok a 40 minutos por dia para os menores de 14 anos.
Foto: Jens Kalaene/dpa-Zentralbild/dpa

Proibir não é a solução

"O conselho que damos é nunca proibir", vinca Filipe Moreira. "O segredo passa pelo exemplo e nunca ter uma conversa agressiva, mas numa conversa natural ir explicando os riscos para que estejam atentos". Este professor é um dos autores de uma proposta curricular de desenvolvimento de aulas e sessões para alertar crianças e jovens para os riscos da utilização da internet. Um projeto que "envolvia os encarregados de educação que têm um papel fundamental".

Sempre que suspeitar que a criança está em risco "o encarregado da educação deve recorrer à psicóloga da escola, até para evitar problemas futuros. Porque o problema destes casos não é apenas o momento, mas as mazelas que deixam que podem ser muito graves para o futuro da autoestima. As crianças vítimas de cyberbullying têm uma maior percentagem de pensamentos suicidas", alerta o docente.

Mas o alerta para estes riscos deveria estar mais presente no sistema de ensino. "Temos o mundo físico e o mundo digital, muito alargado em constante crescimento que é um mundo paralelo, e os riscos duplicam". A frase de Umberto Eco é citada por Filipe Moreira que rejeita por completo o conceito de "nativos digitais". "Essa perceção errada que as crianças nascem a dominar tudo o que é digital. A realidade mostra o contrário, sabem utilizar a internet de uma forma lúdica, mas não sabem em concreto fazer uma pesquisa eficiente e muitas vezes não têm consciência que a informação que colocam na internet vai ficar armazenada num servidor para sempre", alerta este docente. 

Pense antes de divulgar fotografias

Muitas vezes nem os pais têm consciência deste problema do respeito pela privacidade. "Muitas vezes os pais colocam fotos dos filhos nas redes sociais e esquecem-se que vão ficar para sempre na internet, o que lhes pode vir a provocar problemas no futuro" , sublinha Filipe Moreira.

Integrar as tecnologias na sala de aula

"Mas é cada vez mais importante integrar as tecnologias no ensino na sala de aula, até como forma de motivar os alunos", sublinha a professora Alexandra Brito, colunista do Contacto. O problema é saber como incorporar esses novos meios no processo de aprendizagem. "Até porque se a escola não ensina estas tecnologias eles vão aprender por eles próprios", sublinha a psicóloga, Ana Cristina Barbosa. 

Deve haver sempre uma conversa, não apenas prévia, mas também continuada, antes de dar um telemóvel ou outro dispositivo com acesso à internet a uma criança. Sobre os riscos que correm nomeadamente com as câmaras dos dispositivos e a utilização de hashtags. Importante é ter sempre algum controle sobre os dispositivos. Há que "explicar que não se devem criar perfis falsos nem agredir psicologicamente através das redes sociais, que pelo facto de não ser feito frente a frente é crime", acrescenta esta colunista do Contacto. Importante é "que a tecnologia tem coisas fabulosas, que permitem um sem número de possibilidades, como fazer programação".

Mas "recorrer aos ecrãs como forma de alienação da realidade é um mau caminho", sublinha a psicóloga. Até porque "há muitos miúdos viciados nos jogos o que interfere com o seu funcionamento normal, tornando o jogo a sua vida, ficando isolados. Acabam por ter amigos na Alemanha ou Coreia, mas são incapazes de sair e de falar com a pessoa ao lado, e isso está mal", acrescenta. 

Tudo o que demora mais tempo a processar gera irritação e instabilidade e numa sala de aula com um professor não se pode fazer forward.

Ana Cristina Barbosa, psicóloga

Viver a vida ao ritmo do TikToK

Para esta geração o tempo passou a ter uma outra cadência. E tudo tem que acontecer agora. "O cérebro habitua-se a receber nano-informação a um ritmo constante e acelerado e o que é altamente viciante", diz Ana Cristina Barbosa. No TikTok recebem "em poucos segundos informações curtas, pouco complexas e que não exigem esforço do cérebro, o que é altamente estupidificante". "Tudo o que demora mais tempo a processar gera irritação e instabilidade" e numa sala de aula "com um professor não se pode fazer forward". Ana Cristina Barbosa conclui que os estudos mostram "que esta é a primeira geração com índices de inteligência inferiores aos da geração interior". E ninguém sabe "qual será o real impacto a longo prazo".¨

A criação do "cretino digital"

No seu livro "La Fabrique du crétin digital", Michael Desmurget traça uma quadro negro sobre os efeitos nocivos do uso excessivo de tecnologias. Citando um estudo feito a 125 mil jovens dos 6 aos 19 anos conclui que "há uma forte associação entre a utilização de smartphones à hora de dormir e um número de horas reduzido de sono e a uma sonolência excessiva durante o dia".

Segundo um estudo americano, um adolescente de 18 anos tem atualmente o mesmo nível de atividade física de uma pessoa de 60 anos.
Segundo um estudo americano, um adolescente de 18 anos tem atualmente o mesmo nível de atividade física de uma pessoa de 60 anos.
Foto: Lusa

Outra das consequência é o défice de atividade física. "Um estudo revela que, atualmente, um adolescente de 18 anos tem o mesmo nível de atividade física de uma pessoa de 60 anos", afirma. Na sua opinião 2o consumo digital por lazer está completamente fora de controle. As vítimas desta orgia de tempo dedicada às tecnologias são muitas atividades essenciais ao desenvolvimento: o sono, a leitura, os contactos familiares, os trabalhos de casa, o desporto e atividades artísticas". 

Para ultrapassar este problema propõe uma lista de regras: a primeira é não deixar os menores de seis anos utilizar ecrãs. Depois dos seis anos propõe a utilização de até uma hora por dia. Outra das regras é evitar os ecrãs nos quartos e impedir os jovens de os utilizar uma hora e meia antes de ir para a escola e hora e meia antes de ire dormir. 

O livro termina com uma palavra de ordem: "Menos ecrãs é mais vida".

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