Corrida ao gás ameaça levar o planeta à catástrofe climática
Corrida ao gás ameaça levar o planeta à catástrofe climática
A expansão dos projetos de extração e distribuição do gás vai aumentar cinco vezes o gás russo que havia no mercado e condenar o mundo a aquecer mais 2,7 graus Celsius até ao fim do século. A análise devastadora é apresentada esta quinta-feira na COP 27, num relatório da Climate Action Tracker, mostra em detalhe como o caminho está a ser traçado.
Uma "autoestrada para o inferno climático", como disse Guterres. Desde o ano passado até à COP deste ano em Sharm-el-Sheikh, a pretexto da guerra, quase nada se fez para parar a subida implacável das emissões. E os países não fizeram revisão aos seus planos de corte de gases perigosos ao contrário do que prometeram.
O mundo exagerou na resposta à crise energética, ao ponto de as emissões das novas reservas de gás ameaçarem o limite de 1,5 graus Celsius.
Relatório da Climate Action Tracker
As emissões de CO2 de todos os projetos aprovados, em construção e planeados de terminais de gás natural liquefeito (LNG), gasodutos e plataformas de extração de gás entre 2021 e 2050 vão aumentar os atuais limites na atmosfera de gases com efeito de estufa, esmagando assim o objetivo de manter o aquecimento global a 1,5 graus.
A análise é da conceituada Climate Action Tracker, um consórcio de cientistas que mede as políticas e os compromissos dos países em termos de impacto na atmosfera e em futuros aquecimentos. "O mundo exagerou na resposta à crise energética, ao ponto de as emissões das novas reservas de gás ameaçarem o limite de 1,5 graus Celsius", pode ler-se no documento.
O relatório é apresentado esta quinta-feira na COP27 e vai ao encontro de outros estudos, incluindo o do IPCC, o painel de cientistas do clima das Nações Unidas, que considera que a atual trajetória lançará o mundo num clima 2,7 graus mais quente e não apenas 1,5, o valor considerado compatível com a vida na Terra.
O documento tem como título "A expansão massiva de gás ameaça reverter políticas climáticas positivas. Nova análise da CAT mostra que planos de expansão de GNL ameaça ultrapassar o limite de 1,5 graus".
Os Acordos de Paris, documento que rege as atuais políticas mundiais do clima, assinado em 2015, estabeleceu que o mundo não deveria ultrapassar o aumento de temperaturas para além de 1,5 graus ou no máximo de 2 graus Celsius. Para além deste valor, os cientistas do IPCC dizem que poderá haver um colapso dos sistemas de suporte de vida na Terra. No ano passado, na COP26 em Glasgow, 195 países assinaram a declaração final, a 13 de novembro, com a promessa de manter vivo o objetivo de 1, 5 graus.
Mas uns meses depois, com a invasão russa da Ucrânia e a fome de gás consequente, pode colocar esse objetivo fora do alcance, alerta o relatório da CAT.
"Em 2030, o excesso de LNG pode alcançar as 500 megatoneladas, equivalente a quase cinco vezes as importações de gás russo da União Europeia em 2021, e duplicar as exportações russas globais. Este excesso de fornecimento de gás fóssil poderá levar a um excesso de emissões de duas gigatoneladas de CO2 por ano em 2030, muito acima dos níveis consistentes com o cenário de emissões zero em 2050 da Agência Internacional de Energia".
Bill Hare, presidente da Climate Analytics, um dos dois institutos científicos que contribuem para a CAT, salientou que "a crise da energia esmagou a crise climática, e a nossa análise prova que os projetos propostos, aprovados e em construção de LNG excedem em muito o que é necessário para substituir o gás russo".
Açambarcamento europeu. De quanto gás precisará a Europa no futuro?
A mensagem comum expressa por líderes políticos - sobretudo os europeus – é que a corrida ao gás é temporária, para garantir a segurança energética nos dois próximos invernos, e que, ao mesmo tempo, estão a ser feitos esforços para acelerar o investimento nas renováveis para fugir à dependência russa.
Mas a análise da CAT revela o que se suspeitava: a guerra na Ucrânia é má para tudo, incluindo para a luta contra as alterações climáticas. E os governos estão a agir como os indivíduos que perante uma ameaça açambarcam, enchendo as despensas (como o que aconteceu com o papel higiénico nos primeiros dias da covid). Na sua fome exagerada de gás, como se não houvesse amanhã, os governos estão a esquecer os compromissos climáticos.
"Estamos a assistir a um enorme empurrão para expandir a produção de LNG e a capacidade de importação em todo o mundo – na Europa, em África, na América do Norte, na Ásia, na Austrália – o que pode levar as emissões globais a ultrapassar níveis perigosos. Aumentar a nossa dependência do gás não pode ser a solução para a atual crise climática e energética em lado nenhum".
O relatório é especialmente incisivo em relação à resposta da UE. "A atitude frenética da UE internamente e no estrangeiro para assegurar o fornecimento de longo termo de gás coloca-nos a questão: de quanto gás precisará a Europa no futuro?".
E a resposta é de que não é preciso tanto gás como aquele com que a Europa se está a abastecer e a criar infraestruturas, incluindo os prometidos terminais de LNG e os novos gasodutos entre Portugal, Espanha e França, cujos contornos serão decididos no início de dezembro.
A União Europeia está a criar uma plataforma de compra de gás conjunta para conseguir negociar mais metros cúbicos a preços favoráveis para os próximos invernos e garantir aos cidadãos que não precisam de ter medo de passar frio. Para a CAT, o gás na Europa deveria estar completamente eliminado antes de 2045. Mas a atual gula por este combustível fóssil tornará o objetivo inatingível.
Assim, um cenário europeu compatível com o objetivo de limitar o aquecimento a 1,5 graus só pode ser alcançado com as infraestruturas existentes. Não com novas. "Novas infraestruturas de gás na Europa são uma solução falsa", escreve-se no relatório que esta quinta-feira é apresentado em Sharm-el-Sheikh, no Egito.
A vez de África explorar os seus combustíveis. Mais 905 novos projetos de gás
A COP27 decorre este ano no Egito para dar relevância ao continente africano como um dos mais afetados pelas alterações climáticas e cuja transição energética poderá ser a morte ou a salvação dos Acordos de Paris.
Mas muitos países africanos, como a Nigéria e a Tanzânia, não desistem de continuar as suas explorações de combustíveis, salientando que têm direito a explorar os seus próprios recursos, tal como o disseram nas suas declarações na COP27.
Segundo a análise da CAT, o atual investimento nos combustíveis fósseis em África parece ser 6 a 7 vezes maior do que nas renováveis, apesar das promessas dos países industrializados e dos bancos de desenvolvimento do norte global em promover o investimento nas renováveis no continente.
No contexto da crise energética, que também está a tornar a eletricidade demasiado cara para os africanos, há cerca de 75 milhões de pessoas que poderão deixar de ter acesso a ela. Por isso, no atual contexto geopolítico originado pela Rússia, "renasceu o desejo em muitos países africanos de se tornarem grandes atores no mercado global de combustíveis fósseis". Assim, países com grandes reservas de gás – como Nigéria, Egito, Senegal e Moçambique – estão a promover um grande aumento de extração de gás, incentivados por um aumento de cinco vezes dos preços do gás no mercado.
Conclusão surpreendente, para quem não acompanha muito de perto o que se está a passar no mundo dos combustíveis fósseis: "Há agora 905 novos projetos de exploração de gás planeados em África, representando 400 mil milhões de dólares de investimento". Em termos de escala, este valor "é o equivalente a 15% do Produto Interno Bruto de África em 2021". A conclusão do CAT é que os países mais ricos, incluindo a UE, deveriam parar o investimento em projetos de gás natural e LNG em África e "em vez disso, apoiar o investimento em larga escala em tecnologias de energias renováveis no continente".
As projeções anuais do aquecimento do planeta, que também são apresentadas no relatório da CAT mantêm-se iguais às do ano passado. Em 2021 as projeções dos cientistas apontava para o aumento global de mais 2,7 graus da Terra até ao fim deste século, e nos cálculos deste ano o número mantém-se.
As promessas assinadas no Compromisso de Glasgow (COP 26), "não fizeram o termómetro mexer nada, uma vez que poucos governos aumentaram os seus objetivos para 2030, fizeram novos compromissos para chegar a zero emissões, ou concretizaram promessas".
O relatório do CAT refere na urgência de "insistir em alguns desenvolvimentos positivos deste ano e ter provas de uma genuína implementação acelerada de políticas" , antes da próxima COP, em 2023.
"Não podemos dar-nos ao luxo de nada menos que isto", conclui.
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