Boicotar o Qatar
Boicotar o Qatar
A Dinamarca é a primeira selecção de futebol apurada para o Mundial da FIFA no Qatar, em 2022, que decidiu boicotar uma série de iniciativas comerciais em protesto contra a violação de direitos humanos no país do Golfo. Não boicotou a participação no mundial, apenas os compromissos comerciais e tomou medidas para substituir símbolos dos patrocinadores nos equipamentos por mensagens críticas do país anfitrião.
A Dinamarca quer reduzir a ida ao Qatar a uma mera participação desportiva sem o show mediático que envolve o Mundial da FIFA. "A Federação da Dinamarca sempre foi muito crítica da realização do Mundial no Qatar, mas agora estamos a intensificar os nossos esforços e o diálogo crítico, para aproveitarmos o facto de nos termos qualificado para trabalharmos mais para a mudança do país", disse Jakob Jensen, diretor da Federação.
No início do ano, a Holanda juntou-se à Alemanha e à Noruega em mensagens nas tshirts dos atletas nos jogos das qualificações: "Direitos humanos, dentro e fora do campo", dizia a camisola holandesa. Também a selecção inglesa revelou que os jogadores vão conversar sobre a sua postura em relação ao Qatar. "Não somos robots. Vemos as coisas todos os dias, vemos as notícias, lemos os jornais", disse o capitão Conor Coady.
Num mundo poderoso como o futebol profissional, cheio milionários com causas e caridade abnegada, e em que a filantropia vai desde refeições escolares (Marcus Rashford, Inglaterra) a embaixadores da UNICEF (Cristiano Ronaldo), é impressionante como ainda não houve um movimento sério de protesto ou de boicote ao Mundial do Qatar.
Pergunto-me se a causa dos direitos laborais não terá tanto impacto mediático como os protestos anti-racistas ou contra a homofobia, que se multiplicam em campanhas internacionais, do joelho no chão aos estádios iluminados anti-Hungria do Euro 2020. Isto porque quando as maiores estrelas do futebol mundial pisarem os estádios do Qatar em 2022, estarão literalmente a fazê-lo por cima de corpos de trabalhadores que morreram para os construir.
Mais de dois milhões de trabalhadores migraram de África e do sudoeste asiático para que o Qatar construísse sete estádios, aeroporto, hotéis, auto-estradas e lavasse a cara com dinheiro do petróleo, numa demonstração de força para os vizinhos no Golfo. Cerca de 12 trabalhadores morreram por semana desde que o Qatar foi escolhido pela FIFA: ao todo 6700 homens. Valores apurados oficialmente, após queixas de familiares, denúncias de condições laborais, pressão internacional de países como o Paquistão, Sri Lanka, Índia, Nepal e Bangladesh. Serão muitos mais, porque países como as Filipinas e o Quénia não revelaram números.
Centenas trabalharam durante meses sem salário, muitos ainda não foram pagos. Muitos morreram electrocutados nos seus 'quartos' (contentores) porque não havia segurança.
Outros morreram de "golpes de calor". Não são só homens: 173 mil mulheres migrantes do sudoeste asiático foram para o Qatar trabalhar como domésticas. Denúncias à Amnistia Internacional revelaram jornadas de trabalho de mais de 16 horas, sem dia de descanso, passaportes confiscados, presas em casa, sem direitos, sem voz, invisíveis.
Da selecção portuguesa ou da Federação ainda não se ouviu um pio sobre direitos dos trabalhadores no Qatar. Não admira, a FIFA, confortavelmente sentada sobre a sua pilha de corrupção, também está calada. A cerimónia de abertura em 2022, com balões e coreografias, 40ºC à sombra, e muita água contra a desidratação, será transmitida em directo para todo o mundo, num acordo de direitos de transmissão também ele milionário.
Tudo para que o futebol chegasse aos Emirados, num "projecto que será benéfico para o futuro do desporto", como disse Zinedine Zidane durante a candidatura de apoio ao Qatar: "Além da vitória do Qatar, esta é especialmente uma vitória para o mundo Árabe e o Médio Oriente. É o que mais me tocou. É bom termos algo de novo. E foi bom demonstrarmos que o futebol é de todos."
(Autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.)
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