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O Luxemburgo tropical que existe no Brasil

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O Luxemburgo tropical que existe no Brasil

O Luxemburgo tropical que existe no Brasil
Reportagem

O Luxemburgo tropical que existe no Brasil


por Ricardo J. RODRIGUES/ 17.03.2022

Fotos de Felix Schaaf/C2DH

Num vale esquecido do estado brasileiro de Minas Gerais, há uma pequena cidade que foi fundada por luxemburgueses há cem anos. As terras de Monlevade foram ocupadas por milhares de famílias vindas do Grão-Ducado no advento da indústria do aço. Mergulho na selva para perceber como foi forjada a versão tropical de um pequeno país do centro da Europa.

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Uma cidade luxemburguesa na selva
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A siderurgia de João Monlevade pertencia à Companhia Belgo-Mineira, fundada pela luxemburguesa ARBED.
A siderurgia de João Monlevade pertencia à Companhia Belgo-Mineira, fundada pela luxemburguesa ARBED.
Foto: Felix Schaaf/CD2H

Virado de pernas para o ar, o mapa da América do Sul é bastante parecido com o do Luxemburgo. Há umas noites, um homem chegou a uma das muitas esplanadas que enchem o centro de Belo Horizonte vestindo uma camisola onde estava estampado esse continente invertido. Na mesa ao lado estava um grupo de luxemburgueses de passagem pela terceira maior cidade brasileira. Alguém lhe perguntou por que raio trazia no peito geografia tão longínqua. Então ele riu-se, esclareceu a imagem e explicou que era uma crítica a um grupo de países que parecem sempre ser governados de pernas para o ar. Depois rematou: “Mas sabem uma coisa? Eu vivo no Luxemburgo. No Luxemburgo brasileiro.”

No Brasil cabem 3,293 Grão-Ducados inteirinhos. Mas, no meio de tanto território tropical, também há uma parte onde se sente um impressionante legado luxemburguês. O melhor lugar para observar isso é João Monlevade – uma cidade de 85 mil almas, localizada 120 quilómetros a leste de Belo Horizonte. É ali que mora o homem que trazia uma América invertida ao peito. A sua terra fica no coração do que os locais chamam de Vale do Aço, e isso explica a influência de um pequeno país centro-europeu na região.

Chegar a Monlevade significa três horas de estrada por um caminho de contracurvas apertadas. À medida que se avança para dentro da selva, a paisagem vai-se tornando luxuriante. Bananeiras e coqueiros, macacos empoleirados nas ramadas, alguns ribeiros que se enchem sem anúncio nos dias de chuva e provocam inundações tão dramáticas que as notícias de tragédia correm o globo inteiro. Tudo aqui parece excessivo: o calor, a humidade, a paisagem. A própria terra cumpre essa regra de abundância, tornando cada vez mais vermelha à medida que se avança no alcatrão. Tem na verdade o mesmo tom garrido das Terre Rouge do Minett, a região mineira do sul do Luxemburgo.

Quando a estrada fica pior, eis Monlevade. A cidade cresceu em redor da indústria siderúrgica e isso nota-se assim que se entra na povoação. O coração deste lugar é uma enorme siderurgia, a maior da América do Sul, hoje nas mãos da Arcelor Mittal. Há um século, foi aqui estabelecida a Companhia Siderúrgia Belgo-Mineira, filial brasileira da ARBED (Siderurgias Reunidas de Burbach, Esch e Dudelange). Foram os luxemburgueses que a construíram e foram eles que fizeram de Monlevade uma cidade. Os traços da sua presença estão por toda a parte.

Os pioneiros chegaram em 1920. “No fim da Primeira Guerra Mundial houve uma necessidade de expansão da indústria do aço e um grupo de especialistas da ARBED viajou até esta região para perceber onde se poderia estabelecer”, conta a historiadora brasileira-luxemburguesa Dominique Santana, que passou os últimos anos a estudar a presença luxemburguesa em Minas Gerais e com isso criou um documentário interativo chamado A Colônia Luxemburguesa, produzido pela Samsa Films. Está disponível em quatro línguas e pode ser navegado no site colonia.lu.

Até os luxemburgueses chegarem, Monlevade não era mais do que uma fazenda. As terras tinham sido compradas em 1817 por um francês chamado Jean-Antoine Monlevade, que ali instalou uma usina para produzir utensílios agrícolas em ferro a pedido do governo português. O trabalho era cumprido por escravos e, anos mais tarde, o nome do fundador foi aportuguesado para nomear o que se acabaria por tornar na capital brasileira do aço. “Daqui saiu uma grande parte das bases com que construiu por exemplo Brasília”, explicava há dias em Belo Horizonte o embaixador luxemburguês no país, Carlo Krieger. "O impacto desta comunidade é muito maior do que eu próprio imaginava à partida." 

A historiadora brasileira-luxemburguesa Dominique Santana.
A historiadora brasileira-luxemburguesa Dominique Santana.
Foto: Felix Schaaf/CD2H

A quinta foi comprada pela ARBED em 1921 e as obras de construção duraram 14 anos. À medida que se levantava a maior fábrica que aquele vale alguma vez tinha visto, edificavam-se bairros inteiros para acolher os milhares de emigrantes luxemburgueses que chegavam do sul do país. Engenheiros, agrónomos, geólogos, arquitetos, trabalhadores especializados ocupariam durante décadas a terra e transformariam uma fazenda de escravos num dos mais pujantes centros industriais do Brasil. Naquele vale tropical perdido no meio do mato, nascia um admirável mundo novo.

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Kniddelen nos trópicos
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Corine Grosch-Diederich serve o almoço em Belo Horizonte. Há fleeschbäll e kniddelen mat speck.
Corine Grosch-Diederich serve o almoço em Belo Horizonte. Há fleeschbäll e kniddelen mat speck.
Foto: Felix Schaaf/CD2H

Corina Grosch-Diederich, 63 anos, anda numa roda viva. Já de manhã cozinhou um tacho cheio de fleeschbäll, almôndegas que a sua mãe chamava de boulettes. Agora anda a juntar farinha, ovos e leite para fazer kniddelen mat speck, um dos mais tradicionais pratos luxemburgueses. São dumplings de farinha de trigo com molho de manteiga e bacon. “Talvez seja um pouco pesado para estes dias de calor”, conta a mulher na sua casa em Belo Horizonte, onde vai servir o almoço. Os termómetros marcam 34 graus. “Mas, bem, foi isto que comi toda a vida e é isto que eu sei cozinhar.”

Apesar de possuir nacionalidade luxemburguesa, Corina nunca pôs os pés no Grão-Ducado. “Tinha planeado ir pela primeira vez em 2020, mas depois veio a pandemia e tive de anular”, conta. Sente-se, no entanto, produto do outro lado do Atlântico. “Mesmo que já não consiga falar, ainda entendo luxemburguês porque era a língua de casa. E há aquelas coisas que podem ser pequenos sinais, mas explicam tudo: enquanto os brasileiros acompanham tudo com feijão e arroz, eu cresci a comer batatas e charcutaria.” Pela boca se percebe o legado de um país.

O seu avô chamava-se Charles Diederich e foi um dos pioneiros que fundaram Monlevade. “Ele veio cá várias vezes nos anos 1920 mas foi em 1935 que se instalou definitivamente. Antes de partir para o Brasil, foi a Esch-sur-Alzette e desafiou a minha avó, na altura uma mulher casada, para vir com ele. Ela abandonou tudo, deixou uma carta ao marido a despedir-se, e veio também. Já imaginou a loucura”, pergunta no meio de uma gargalhada.

Os passaportes dos seus antepassados, que Corine guarda como tesouro, mostram que a travessia do Atlântico se cumpriu de Antuérpia ao Rio de Janeiro a bordo de um navio chamado Capitão Arcona. “A viagem durava um mês e era por isso que as famílias luxemburguesas só tiravam férias a cada três anos. Precisavam de três meses para ir à Europa: um para ir, outro para estar e outro para voltar,” conta. Com a fuga que a avó empreendeu de um casamento infeliz, os Diederich decidiram nunca mais voltar. “Era aqui que eles eram felizes”, diz.

Os documentos originais de Charles Diederich.
Os documentos originais de Charles Diederich.
Foto: Felix Schaaf/CD2H

Instalaram-se primeiro em Sabará, onde funcionavam as instalações da Belgo-Mineira até Monlevade estar pronta a habitar. Meses depois, mudaram-se para a Rua dos Contratados, onde Corina nasceu e cresceu. “A minha mãe veio adolescente do Luxemburgo, conheceu o meu pai que já era daqui, e, tal como os meus avós, trabalhavam para a siderurgia. Nessa altura não havia praticamente brasileiros aqui, esses moravam nas aldeias em volta e vinham a pé todos os dias.” Monlevade era por isso um pequeno enclave europeu no meio da selva.

A zona mais antiga da cidade conserva os traços dessa ocupação. No cume do monte está a fábrica, no vale que o rio Piracicaba abriu ergueu-se um conjunto de pequenas casas onde se cumpria a vida europeia no Brasil. “A maioria eram luxemburgueses, sim, mas também havia muitos franceses, belgas, alemães, italianos, polacos”, recorda Grosch-Diederich. A diversidade cultural que hoje é estrutural no Luxemburgo também se afirmava, há muitos anos, no hemisfério sul. 

Pedro Meyers à porta da casa onde cresceu em Monlevade.
Pedro Meyers à porta da casa onde cresceu em Monlevade.
Foto: Felix Schaaf/CD2H

A vida social cumpria-se numa série de clubes que eram o ponto de encontro dos europeus. Estas instalações ainda existem em Monlevade. Há por exemplo o Floresta Clube Dr. Henri Meyers, que na altura se chamava clube de Caça e Pesca. O fundador da coletividade foi um dos diretores da Companhia Belgo-Mineira e o seu filho, Pedro Meyers, hoje com 74 anos, explica como o lazer seguia as regras do Velho Continente.

Iam para ali quase todos os fins de tarde e depois aos fins de semana. Havia uma espécie de jardim zoológico com animais dos trópicos em jaulas, um lago cheio de peixes e uma mata que foi conservada natural para que se pudesse praticar caça. Os homens bebiam e discutiam os problemas da Europa, as mulheres jogavam canasta e desfilavam os vestidos. “Lembro-me de os meus amigos me perguntarem se a minha mãe vinha da Quinta Avenida, em Nova Iorque, porque ela fazia questão de se preparar com toda a elegância”, conta Pedro Meyers com uma gargalhada. “A verdade é que a minha família materna tinha estado nos Estados Unidos, e daí a confusão. Mas imagine como este lugar era cosmopolita”, reflete o homem.

William Ferreira, presidente do Social Clube de Monlevade, a lançar uma bola no único Jeu de Quilles da América Latina.
William Ferreira, presidente do Social Clube de Monlevade, a lançar uma bola no único Jeu de Quilles da América Latina.
Foto: Felix Schaaf/CD2H

Havia clubes para engenheiros, técnicos e operários. O mais elegante de todos era o Social Clube, porque tinha uma enorme piscina, salão de baile decorado ao estilo art déco, onde se organizavam festas e se celebrava em junho o aniversário do Grão-Duque. William Ferreira, atual presidente da associação, vai percorrendo as salas e mostrando as intalações. Há uma improvável sauna no piso térreo. “Um calor desses e abrirem uma sauna só podia ser coisa de europeu mesmo”, diz com um sorriso. Depois roda a chave a uma porta trancada e mostra uma surpresa que está escondida da maioria dos olhos.

Num salão estreito e comprido está ainda marcado um Jeu de Quilles, a versão europeia de bowling de que o Luxemburgo se orgulha de ser campeão mundial. “É o único que existe me toda a América Latina”, diz Ferreira. Dúvidas houvesse de que os luxemburgueses tinham inventado o seu próprio país nos trópicos e elas ficavam definitivamente esclarecidas aqui.

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O génio luxemburguês
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Afonso Torres da Silva no seu atelier com a pintura que ele mesmo fez de Louis Ensch.
Afonso Torres da Silva no seu atelier com a pintura que ele mesmo fez de Louis Ensch.
Foto: Felix Schaaf/CD2H

Afonso Torres da Silva, 70 anos, terminou a obra há dois meses. Andava obcecado em fazer um quadro de Louis Ensch e, quando o terminou, ficou francamente satisfeito consigo próprio. “Peguei numa fotografia dele e reproduzi-a a carvão”, diz agora no seu atelier em Monlevade. “Para mim é o mais excecional de todos os monlevadenses. Chegou do Luxemburgo com uma visão única e construiu a cidade com que tinha sonhado à sua exata medida. Foi o maior génio a viver neste vale, e um dos maiores que passou pelo Brasil.”

Em cidades do interior de Minas Gerais, como Monlevade, Sabará ou Coronel Fabriciano, e até na capital do estado, Belo Horizonte, há nomes de ruas, escolas e estádios que prestam homenagem ao engenheiro luxemburguês. Ensch chegou ao Brasil em 1927 para dirigir a Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira a partir de Sabará, e mudá-la para João Monlevade a partir de 1935. Apesar de ter morrido durante uma viagem ao Luxemburgo, o seu corpo foi transladado para o cemitério histórico de Monlevade. Está sepultado debaixo de uma grande placa de aço onde foi esculpido o brasão de armas do Grão-Ducado.

“Ele criou os bairros operários, abriu três escolas, criou três clubes desportivos e fundou a igreja de São José Operário”, conta Silva, uma espécie de historiador amador da cidade. As estantes do seu atelier estão cheias de livros, recortes de jornal, cartas onde o homem consegue ir pesquisando a história da sua terra. “Quase todos os que aqui nasceram vieram ao mundo no Hospital Margaritte, que ele construiu em homenagem à mãe. Então veja, num sítio onde não havia nada, ele teve a visão de criar um mundo nunca antes visto. E isso foi de uma inteligência notável.”

Neli Cekiera, hoje com 95 anos, lembra-se bem de Ensch. “Uma coisa que aquele homem tinha de incrível é que ele conhecia toda a gente”, diz. “Passávamos por ele e ele perguntava sempre a mesma coisa: isso vai? E toda a gente respondia: Vai indo. Era um homem elegante, vestia sempre fato e gravata, e nunca perdia a compostura. Tirando uma única exceção: quando chegou a guerra.”

As mãos de dona Neli desfiam as memórias de Monlevade nos tempos da guerra.
As mãos de dona Neli desfiam as memórias de Monlevade nos tempos da guerra.
Foto: Felix Schaaf/CD2H

Neli é brasileira, veio em 1937. A sua família foi uma das primeiras da região a instalar-se nos morros em redor de Monlevade, quando o núcleo habitacional estava ainda reservado aos europeus. Casou com um trabalhador da usina, um polaco chamado Wladislaw, e passou toda a sua vida aqui. “Vi a cidade crescer, vi os luxemburgueses chegarem e partirem e vi esses dias muito complicados na guerra. É que, para os brasileiros, os gringos eram gringos. E quase todos aqui eram loiros, de olhos azuis, iguaizinhos aos soldados de Hitler.”

As coisas estoiraram em 1942. O bombardeamento de vários cargueiros brasileiros pela esquadra de submarinos nazis fez com que o Brasil entrasse na guerra. Enquanto os soldados da Força Expedicionária do país sul-americano rumavam ao norte de Itália, os ânimos exaltavam-se em Monlevade. “Havia protestos e percebia-se que as coisas iam aquecer. O doutor Esch mandou os gringos todos irem para Belo Horizonte durante umas semanas e depois veio cá falar com os capatazes que já estavam a preparar uma revolta. Disse-lhes que a usina não era dos luxemburgueses, nem dos alemães, nem dos franceses. Era dos brasileiros”, conta a nonagenária. Com isso as coisas começaram a acalmar.

Neli Cekiera, 95 anos, na sua casa em Monlevade.
Neli Cekiera, 95 anos, na sua casa em Monlevade.
Foto: Felix Schaaf/CD2H

Nos anos seguintes, Monlevade veria crescer bairros operários para acolher a população brasileira. Os hospitais e as escolas abriam-se aos locais, as condições de trabalho melhorariam, havia clubes e instalações também para a população nativa, e festas populares para toda a gente. “Havia cinema, teatro, concertos onde vinham grandes nomes da música brasileira atuar. A cultura foi a forma de integrar toda a gente e resolver os conflitos, o que não deixa de ser extraordinário”, diz Nadja Lírio, vereadora da Cultura do município.

É isso que ela vê agora como potencial de desenvolvimento da região. “Até há muito pouco tempo, nós não sabíamos praticamente nada desta herança luxemburguesa na nossa região. Na escola aprendemos que isto era uma fazenda de escravos, que os gringos vieram depois para o vale construir uma siderurgia, e pouco mais se sabe”, diz. A investigação e o documentário de Dominique Santana, A Colônia, vieram mudar o paradigma. “Finalmente temos acesso à comprensão do nosso passado e das nossas raízes. E isso abre um novo mundo de possibilidades.” 

Nadja Lírio, vereadora da Cultura de Monlevade.
Nadja Lírio, vereadora da Cultura de Monlevade.
Foto: Felix Schaaf/CD2H

Por estes dias, está instalado no centro da cidade um quiosque multimédia onde é possível consultar a história de Monlevade, assistir e contribuir para o trabalho de investigação de Dominique Santana,  comunicar com outro quiosque igualzinho que existe em Esch-sur-Alzette, capital europeia da cultura em 2022. “Vamos assinar a geminação entre as duas cidades e isso é apenas o começo da conversa”, diz Nadja Lírio.

A vereadora quer organizar anualmente na cidade um Festival do Luxemburgo no Brasil. Está também a planear festivais de música e teatro onde se promovam intercâmbios com artistas de Esch, Dudelange ou Schifflange. Como Monlevade tem dezenas de artesãos, ela pensa desafiá-los a criarem novos modelos que reforcem a relação com o Grão-Ducado e com isso façam desenvolver o turismo.

“Por exemplo, há um doce tradicional daqui que nós chamamos bolinho de chuva e que é uma cópia dos verwurelter, os doces luxemburgueses do Carnaval. Podemos vendê-los, explicar a tradição, criar mais-valia turística com isso. Este laço que estamos agora a retomar com um país europeu vai mudar tudo. Tem de mudar tudo.”

A indústria do aço já não alimenta a cidade inteira, diz Nadja Lírio. “A partir dos anos 1980, os luxemburgueses começaram a voltar a casa porque a tecnologia fez com que fosse necessária menos mão de obra. Alguns ficaram, outros mudaram-se para Belo Horizonte, mas sabemos que nos últimos anos o setor do comércio e dos serviços tomou o lugar da indústria como fator de emprego da população.

Louis Ensch está sepultado em Monlevade, sob uma campa de aço onde foi esculpido o brasão de armas do Grão-Ducado.
Louis Ensch está sepultado em Monlevade, sob uma campa de aço onde foi esculpido o brasão de armas do Grão-Ducado.
Foto: Felix Schaaf/CD2H

Olha em redor antes de atirar: "Mesmo que a usina continue a ser a maior do Brasil, mesmo que seja anunciado mais investimento na fábrica, um dia não vai haver ferro e nós temos de preparar a diversidade da nossa economia. Há 100 anos, houve um luxemburguês que nos deu uma oportunidade de nascermos. Agora, é o próprio Luxemburgo que nos pode dar a oportunidade de nos salvarmos.”

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Luxemburgo para sempre
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A usina vista de uma escola abandonada em Monlevade.
A usina vista de uma escola abandonada em Monlevade.
Foto: Felix Schaaf/CD2H

Depois da morte de Louis Ensch em 1953, um luxemburguês de Steinfort chamado Albert Scharlé assumiria os destinos da Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira. “O meu avô chegou em 1929, a minha avó veio no ano seguinte”, conta Josette Scharlé, 68 anos. “Albert tinha escrito uma carta avisando que não havia nada no Brasil para montar uma casa. Então a minha avó veio com móveis para decorar a casa, panelas, tachos.”

A primeira casa onde se instalaram ficava em Sabará, que na altura Monlevade ainda era sonho. A residência é hoje o Clube de Campo Albert Scharlé. Paulo-Henrique de Vasconcelos, genro de Josette e cônsul-honorário do Luxemburgo em Minas Gerais, faz as honras da apresentação da propriedade. “Era uma fazenda de quarenta alqueires [cerca de dois mil metros quadrados]. Tinha uma casa, uma capela para a família, até um lago rodeado de floresta. Chamava-se Fazenda de Santo António da Mouraria, e acreditamos que é uma referência a uma pequena capela em Lisboa.”

A mãe de Josette, Adrienne, nasceu no Brasil mas passou os primeiros anos com os avós no Luxemburgo. “Quando voltou, aos nove anos, não falava senão luxemburguês. Foi colocada num colégio interno em Belo Horizonte e imagino que os seus primeiros anos de integração tenham sido difíceis. Só saiu no fim da guerra, em 1949.” No ano seguinte, casaria com um aristocrata brasileiro de Ouro Preto e mudar-se-ia para o centro de Belo Horizonte.

Albert Scharlé tinha perdido a mulher anos antes e, ao ver que a filha escolhia a capital do estado, decidiu comprar um lote de terreno nos arredores da cidade. “Belo Horizonte é uma cidade que não tem mais de 150 anos de história. Toda a área urbana era concentrada e, em 1954, quando ele adquiriu isto, não havia mais do que floresta e pequenas hortas”, conta Josette Scharlé. Olhando em redor é difícil imaginar esse passado. Hoje os terrenos são zona de grandes edifícios, alguns arranha-céus. É aliás um dos bairros mais nobres da terceira maior cidade brasileira.

Albert Scharlé instalou-se aqui. “Dois anos depois, morreu e os seus três filhos herdaram o terreno. A minha mãe percebeu que Belo Horizonte se estava a expandir a uma velocidade extraordinária e que não tardaria muito até estas terras serem tomadas pela urbanização. Então eles começaram a lotear os terrenos e a vendê-los, antes que fossem expropriados.” Em 1968, começaram a construir-se os primeiros edifícios na propriedade dos Scharlé. A família decidiu chamar à nova zona da cidade Bairro Luxemburgo, e a autarquia aprovou.

O Bairro Luxemburgo é um dos mais conceituados de Belo Horizonte, terceira maior cidade brasileira.
O Bairro Luxemburgo é um dos mais conceituados de Belo Horizonte, terceira maior cidade brasileira.
Foto: Felix Schaaf/CD2H

Hoje, quando se atravessa Belo Horizonte, sobram placas na estrada com o nome de um pequeno país europeu em destaque. Em Minas Gerais, aliás, morar no Luxemburgo é sinal de prestígio. O bairro acolhe uma série de bons restaurantes, supermercados e lojas, alberga vários condomínios privados, e uma boa parte das ruas homenageiam figuras luxemburguesas que ajudaram a levantar João Monlevade. O edifício mais alto de todos é um hotel chamado Ville Celestine, em homenagem à sogra de Albert. Alguns quartos estão decorados com fotografias da capital luxemburguesa, imagens do Grund e de Clausen, da Pont Adolphe e da Gëlle Fra.

Josette acredita que o bairro é um sinal de que a presença do Luxemburgo em Minas Gerais é maior do que o tempo de vida dos seus descendentes. “Continuamos a ter muitas famílias e apelidos luxemburgueses, continuamos a contar a história do Grão-Ducado, a cumprimentar-nos dizendo Moien uns aos outros. Mas o nome do país está marcado nas pedras, nos edifícios, nas ruas de Minas Gerais. É uma herança magnífica, pouco conhecida, que temos de lutar por preservar.” O Luxemburgo brasileiro, de sotaque tropical e tempero mineiro, existe mesmo. E é maior do que alguma vez pudessemos imaginar.

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