“As pandemias serão mais frequentes e poderão matar mais pessoas do que a covid-19”
“As pandemias serão mais frequentes e poderão matar mais pessoas do que a covid-19”
Não culpem os animais selvagens pela pandemia da covid-19, os responsáveis por esta doença que está a afetar o mundo inteiro, com trágicas consequências, são mesmo os seres humanos. Preto no branco, é isto mesmo que 22 cientistas internacionais em biodiversidade da Organização das Nações Unidas (ONU) escrevem num relatório agora divulgado sobre esta pandemia e as outras que virão a seguir, caso não se termine com a invasão de ecossistemas e destruição da biodiversidade.
O planeta está a atravessar uma “era pandémica”, em que as pandemias “serão mais frequentes, propagar-se-ão mais rapidamente, poderão matar mais pessoas e causar maiores danos à economia global”, do que a covid-19, avisa o documento sobre “biodiversidade e pandemias” da Plataforma Intergovernamental de Políticas Científicas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistémicos (IPBES) da Organização Mundial das Nações Unidas (ONU).
“É isto que vai acontecer se não se agir já, e não se adotarem estratégias globais de previsão e prevenção das pandemias. O perigo é real. Daqui a dois, três anos, pode aparecer outra pandemia como a que vivemos agora, ou pior ainda, as probabilidades são imensas”, alerta ao Contacto a investigadora portuguesa Isabel Sousa Pinto que integra a direção do comité científico deste relatório inédito resultante do workshop virtual urgente sobre a ‘Biodiversidade e as Pandemias’ realizado pelos 22 cientistas do IPBES, entre 27 e 31 de julho.
Há dados científicos a comprovar tais possibilidades e que constam no relatório: “Estimam-se que existam 1,7 milhões de vírus desconhecidos em mamíferos e pássaros, dos quais entre 631.000 a 827.000 têm capacidade de infetar humanos”.
“Há mais de cinco novas doenças desconhecidas, a surgir nas pessoas todos os anos, qualquer uma das quais com potencial para se espalhar e se transformar numa pandemia”, indica o relatório, apontando que nos “últimos cinquenta anos foram descobertos 400 novos microrganismos, dos quais 70% constituem um perigo” para a saúde pública global.
“A maioria (70%) das doenças emergentes (por exemplo, Ébola, Zika, Encefalite Nipah), e quase todas as pandemias conhecidas (por exemplo, gripe, VIH/SIDA, covid-19), são de origem zoonótica, isto é, são causadas por micróbios de origem animal. Estes micróbios espalham-se devido ao contacto entre a vida selvagem, os animais de quintas e as pessoas”, vinca o documento. E sublinha: “Os reservatórios mais importantes de agentes patogénicos com potencial pandémico são os mamíferos (em particular morcegos, roedores, primatas) e algumas aves (em particular aves aquáticas), bem como a pecuária (por exemplo, porcos, aves de capoeira), ou camelos”.
Maior contacto com animais selvagens
A culpa é do Homem. As doenças surgem devido à invasão e destruição humana dos ecossistemas e reservas de animais selvagens, do grande aumento do comércio e consumo de animais selvagens, permitindo um maior contacto dos humanos e da pecuária com os animais selvagens que são reservatórios de milhões de vírus patogénicos.
Através de novos contactos com animais há vírus que acabam por passar para as pessoas e depois podem passar de pessoa para pessoa como aconteceu com a covid-19. “Basta acontecer só uma vez, haver uma só passagem do micróbio do animal selvagem para uma pessoa e esta ficar infetada por um destes vírus que seja altamente contagioso, para se desencadearem epidemias e pandemias”, vinca a investigadora portuguesa que integra também a Delegação Portuguesa para a Convenção da Diversidade Biológica da ONU.
“A covid-19 é pelo menos, a sexta pandemia desde a Gripe Espanhola, de 1918, causada pela passagem dos agentes patogénicos existentes nos animais selvagens para os seres humanos. Só que a maioria das outras não foram tão graves porque os micróbios não se prestavam a isso, ou porque alguns deles são tão mortíferos que causam uma morte tão rápida das pessoas infetadas que se torna difícil a sua propagação, noutros casos conseguiu-se conter as pandemias”, recordou esta especialista em biodiversidade e diretora do Laboratório de Biodiversidade Costeira da Universidade do Porto.
“O vírus do Ébola, por exemplo, é muito mais mortífero do que o da covid-19, a pessoa infetada morre mais depressa, não havendo assim tempo suficiente para uma propagação ampla da doença”. O Ébola, a Sida, a SARS ou a Varicela do Macaco são doenças emergentes que passaram de animais selvagens, como morcegos, civetas ou chimpazés, para os humanos e se tornaram epidemias e pandemias. Também a pandemia da Gripe A nasceu do contacto entre humanos e animais, sendo primeiro transmitida pelos humanos aos animais e dos animais para as pessoas.
O risco do surgimento destas doenças com efeitos à escala global é cada vez maior devido, “ao maior contacto humano com os animais selvagens, à densidade populacional urbana e à mobilidade das pessoas, veja-se a facilidade com que cruzamos o mundo hoje em dia”, refere a investigadora. “Hoje temos as condições ideais de propagação destas doenças infeciosas no mundo”. A covid-19 parece ser a prova disso mesmo: o primeiro registo da passagem do SARS CoV-2 de um animal selvagem para os seres humanos, terá acontecido num mercado da cidade chinesa de Wuhan, com 11 milhões de habitantes, com grande mobilidade internacional e onde chegam também uns quantos milhões de viajantes.
Por tudo isto, nos últimos anos, os cientistas já temiam o aparecimento de uma pandemia assim tão devastadora.
“O processo dos microrganismos, como vírus ou bactérias, passarem dos animais para nós, não é novo, sempre aconteceu ao longo da história. O ser humano foi-se tornando imune a muitos destes organismos ao longo dos séculos e milénios, mas à custa de muitas vidas perdidas, tornando-se imune quem sobrevivia. Só que, hoje em dia, não aceitamos que o vírus mate à vontade até o ser humano ficar imune à doença”.
Isabel Sousa Pinto quer deixar claro que as conclusões chegadas no relatório não são alertas infundados: “Há que ter noção que, o que consta no relatório não é uma opinião nossa, é o resultado de cerca de quatro meses de trabalho imenso de muitos investigadores, um trabalho acurado, de procura de todas as informações possíveis nesta matéria, pelo menos as que temos acesso, e que envolve várias pessoas de vários setores e áreas, para se tentar ver tudo, analisar a informação toda e chegar a conclusões, e estas foram depois revistas de forma aberta por quem quis fazer comentários. Assim isto representa o estado atual do conhecimento, com factos e estudos comprovados”.
Ainda é possível evitar o pior
Uma das boas notícias deste documento exaustivo do IPBES, com 96 páginas, é que “ainda é possível escapar a esta era pandémica”.
Como? “Através de uma reação rápida e da prevenção das pandemias”, esclarecem estes cientistas. “Os impactos destas pandemias custam 100 vezes mais do que a sua prevenção”, garantem.
Hoje sabe-se como surgem as pandemias. “30% das doenças emergentes resultam da alteração do uso dos solos, através da desflorestação, da instalação dos seres humanos em habitat de vida selvagem, do crescimento da produção agrícola e pecuniária e da urbanização”, lê-se no relatório.
“As mudanças climáticas já não as podemos reverter, mas podemos ainda proteger a natureza e a biodiversidade, podemos ajudar à reconstrução de uma natureza saudável e preservar os raros ecossistemas e reservas de fauna selvagem que ainda existem contendo organismos desconhecidos e com micróbios potencialmente perigosos. Podemos implementar políticas globais para parar a desflorestação, travar o comércio ilegal de animais selvagens, e educar as populações para os perigos do consumo destes animais”, diz Isabel Sousa Pinto.
Além da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção (Cites) também deviam ser implementadas políticas de regulamentação para o comércio das espécies que representam potenciais riscos para a saúde humana, considera Isabel Sousa Pinto. E dá como exemplo o caso das quintas na Dinamarca que fazem criação de martas (ou visons), “com enquadramento legal” e que reuniam no total entre 15 a 17 milhões destes animais que agora foram abatidos, depois de se descobrir que hospedavam uma nova variante do vírus da covid-19 ainda mais perigosa.
“Estamos a entrar em contacto com muitas espécies com perigos desconhecidos e de forma íntima, o que constitui um enorme risco para a saúde humana. Temos de adotar políticas para reduzir o contacto humano com estes animais selvagens”, adverte a investigadora. E dá o exemplo do continente asiático onde estes animais selvagens são caçados, vendidos e comercializados para consumo alimentar. Foi precisamente num dos mercados de venda destes animais para consumo alimentar em Wuhan, onde esta pandemia terá começado.
A cientista portuguesa explica que os nossos animais domésticos também são reservatórios de vírus, só que “como estão connosco há séculos estamos imunes a estes organismos”, mas tribos ou povos autóctones da Amazónia profunda podem não ser.
“Quando os europeus chegaram às Américas o que matou mais os autóctones foram as doenças que os forasteiros levaram. Os europeus já estavam imunes, mas os autóctones não, porque estas patologias nunca tinham existido naquelas zonas, e houve milhões de mortes, uma mortandade enorme entre esses povos. E hoje ainda há o perigo do mesmo acontecer, por exemplo, na Amazónia, com o desflorestamento e o desenraizamento das suas tribos”, disse.
Organismo para prevenção das pandemias
A criação de um organismo intergovernamental de prevenção das pandemias é outro das medidas apontados no relatório. Um organismo que possa fornecer informação científica sobre a emergência destas doenças, prever as áreas de alto risco, avaliar os impactos das potenciais pandemias ao nível da saúde humana e económicos, e ainda criar um mecanismo de monotorização das doenças.
“É necessária a criação de um organismo que possa implementar a abordagem ‘One Health’, que olhe para a saúde humana, saúde animal e biodiversidade de forma integrada. É importante que estas áreas até agora separadas trabalhem em conjunto pois estão interligadas”, frisa a investigadora salientando assim se poderá identificar mais rapidamente os agentes patogénicos capazes de desenvolver doenças, e conduzir ao desenvolvimento de vacinas e terapêuticas eficazes de prevenção.
Só depois da covid-19 ganhar a dimensão de pandemia, é que se uniram esforços para elaboração de vacinas para travar a doença que até agora já causou mais de um milhão de mortes, e que está a ter enormes impactos económicos globais”. O que prova que a “abordagem reativa” às pandemias “é inadequada”, vinca o relatório.
Mas a aposta tem de ser na prevenção das futuras pandemias. Para isso um dos principais mecanismos será conservação e restauro dos ecossistemas selvagens “em prol do bem-estar e da saúde humana, e ao mesmo tempo preservando a biodiversidade, para voltarmos a ter uma natureza saudável”.
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