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Afinal, vamos todos a Caracas
Opinião Sociedade 5 min. 10.11.2022
Venezuela

Afinal, vamos todos a Caracas

O presidente venezuelano Nicolas Maduro cumprimenta o presidente francês Emmanuel Macron durante a COP27, a 7 de novembro de 2022.
Venezuela

Afinal, vamos todos a Caracas

O presidente venezuelano Nicolas Maduro cumprimenta o presidente francês Emmanuel Macron durante a COP27, a 7 de novembro de 2022.
Foto: Presidência venezuelana/AFP
Opinião Sociedade 5 min. 10.11.2022
Venezuela

Afinal, vamos todos a Caracas

Raquel RIBEIRO
Raquel RIBEIRO
A recente reabilitação da Venezuela no espaço mediático só mostra que sanções, afinal, nada têm a ver com ideologia. Só com petróleo.

Até pode parecer uma contradição que em plena COP27, onde se discutem processos de descarbonização, redução de emissões e transições energéticas, se conclua como o petróleo da Venezuela é tão necessário ao Ocidente que até as sanções (algumas, não todas, voilá) poderão vir a ser levantadas se Maduro "se portar bem".

Mas não há qualquer contradição: afinal a cimeira do clima é patrocinada pela Coca-Cola, a maior produtora de plástico do mundo, responsável pela contaminação de água potável e por violação de direitos humanos e laborais (como na Colômbia ou Guatemala).

Nada como um pouco de reality check para os que acreditam que é fechando refinarias, como em Matosinhos, que se transita mais rapidamente: se acreditarmos muito, amanhã o mundo será verde e a dependência energética dos combustíveis fósseis acaba. Mas europeus estão neste preciso momento a queimar lenha e carvão devido às sanções ao gás russo. O "reality shock" é que a transição energética vai doer, sim, mas não aos do topo da cadeia: os que produzem, os que investem, capitalizam, rentabilizam e ganham com os combustíveis fósseis, a sua extracção e transformação. Esses vão continuar a bancar cimeiras sobre descarbonização. O capitalismo não é verde, mas há quem continue a atirar-lhe latas de sopa de espinafre para cima a ver se pinta.


A LNG ship is pictured at the island Melkoya where Norwegian energy giant Equinor has built a facility for receiving and processing natural gas from the Sn�hvit field in the Barents Sea on November 2, 2022 (Photo by Fredrik Varfjell / NTB / AFP) / Norway OUT
Corrida ao gás ameaça levar o planeta à catástrofe climática
Relatório devastador apresentado esta quinta-feira na COP27 mostra em detalhe como o caminho está a ser traçado.

Os vídeos que circulam no Twitter com o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, nos corredores da COP27, em afáveis apertos de mão com líderes é um exemplo claro do que aí vem – aliás, já vinha. Desde Março que a Administração norte-americana está em conversações com a Venezuela sobre sanções e o possível fornecimento de crude aos EUA.

Uma revisão da origem dos vídeos mostra que foi precisamente a máquina de Maduro que os pôs, e bem, a circular. Neles, Maduro surge sempre confiante, como um boss (é alto e está de fato, elegante). Apanhou o enviado norte-americano John Kerry de surpresa, entre apertos de mão e uma amena gargalhada. Em voz sussurrada e humilde, Macron chama-lhe "Presidente" (então não reconhece o Guaidó?), e diz-lhe, referindo-se aos líderes da Argentina e Colômbia, também presentes na COP27: "O continente [americano] está em processo de recomposição. Há um caminho para fazermos juntos. Ficaria contente se falássemos mais e começássemos trabalho bilateral."

Maduro diz-lhe que "temos bons amigos em comum", e recomenda-lhe que fale com Jorge Rodríguez, o presidente da Assembleia Nacional (a mesma que a França também não reconhece). E como está Portugal? "Marchando", diz Costa a Maduro. "Mas vai bem, equilibrado?", pergunta. "Sim, equilibrado mas não é fácil, com a inflação e com o custo do petróleo...", responde Costa. E o diz que Maduro, tanto a Costa como a Macron? "Quando nos faz uma visita?" Afinal, vamos todos a Caracas.

No fim de Outubro, o CEO da Chevron, confrontado com um possível levantamento das sanções à Venezuela, disse na Bloomberg: "Estamos a tentar manter a capacidade de investimento para produzir maior oferta para os mercados mundiais, se e quando as sanções forem modificadas. Nós não somos contra ou a favor de sanções, é uma prerrogativa do governo. Mas estamos sempre preparados para todas as contingências e para um conjunto de circunstâncias em evolução." Na semana passada, a Reuters anunciou que a italiana Eni e a espanhola Repsol vão recomeçar a receber petróleo venezuelano.

Maduro sai da COP27 abraçando a mesma contradição acima descrita. "Expressei a posição firme da Venezuela sobre os terríveis desequilíbrios ambientais produzidos pelas elites do capitalismo que afectam todo o planeta", disse. Pronto a negociar o petróleo à custa do levantamento de sanções, também foi ele o impulsionador o Fundo de Financiamento para apoiar países vítimas de desastres naturais e da reactivação do Tratado de Cooperação da Amazónia, na sequência de uma reunião paralela com Gustavo Petro (Colômbia) e Chan Santokhi (Suriname). A vitória de Lula no Brasil dá ao eixo Bogotá-Caracas-Brasília uma nova possibilidade de cooperação.

A prerrogativa do governo norte-americano é que Maduro "aceite" "eleições presidenciais livres" em 2024. Deve ser por isso que dias antes da COP27, o El País tinha uma longuíssima entrevista com o "eterno pretendente" Juan Guaidó, que passa grande parte em críticas aos movimentos de aproximação (reposição de relações diplomáticas, abertura de fronteiras, novos voos domésticos, mas também fornecimento de gás) de Gustavo Petro à Venezuela. Certamente não lhe convirá ter agora no governo colombiano alguém que converse com Caracas como um igual. Já Maduro diz estar disponível para sentar-se, de novo, para conversar sobre eleições, como aquelas que, afinal, Maduro venceu.

As sanções é que parecem continuar a ser negociáveis: o que importa aos EUA não serão "eleições livres", nem a ideologia do PSUV. Mas de que forma poderão beneficiar, agora, do petróleo da Venezuela. Desde 2006 (agravadas por Trump em 2017), os EUA e parceiros europeus impuseram medidas coercivas unilaterais de congelamento de contas, acesso a divisa, e importação/exportação de bens à Venezuela. 

É reconhecido pelo Council for Foreign Relations que as sanções contribuíram para o aumento das taxas de fome e de mortalidade, aceleraram a crise migratória e exacerbaram os problemas económicos do país. Em 2019, o Centre for Economic and Research Policy concluía: "Consideramos que as sanções infligiram, e infligem cada vez mais, danos muito graves à vida e à saúde humana, incluindo uma estimativa de mais de 40.000 mortes de 2017 a 2018; e que essas sanções se enquadrariam na definição de punição coletiva da população civil, conforme descrito nas convenções internacionais de Genebra e Haia, das quais os EUA são signatários."

(Autora escreve de acordo com a antiga ortografia.)

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