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A rainha que herdou um império e deixou uma ilhota
Opinião Sociedade 4 min. 13.09.2022 Do nosso arquivo online
Isabel II

A rainha que herdou um império e deixou uma ilhota

Isabel II

A rainha que herdou um império e deixou uma ilhota

Foto: Daniel Leal/AFP
Opinião Sociedade 4 min. 13.09.2022 Do nosso arquivo online
Isabel II

A rainha que herdou um império e deixou uma ilhota

Hugo GUEDES
Hugo GUEDES
(...) a rainha de Inglaterra foi um enorme símbolo, para o bem e para o mal.

Em "O inglês que subiu uma colina e desceu uma montanha", o actor Hugh Grant desempenha o papel de um cartógrafo que vai a uma aldeia britânica a serviço da rainha Vitória. A ideia é medir uma montanha que é o orgulho da região, só que como a aquela faltam uns sete metros, os cartógrafos classificam-na como "colina". É então que os habitantes, feridos no seu orgulho, enchem de terra a colina até que esta passe oficialmente a "montanha".

Outra rainha, Isabel II, fez o inverso. Em 1952, a jovem de 25 anos subiu ao trono de um império "onde o sol nunca se punha", reinando sobre 32 países diferentes e ainda servindo de chefe de Estado de mais seis países independentes: Canadá, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Paquistão, Sri Lanka.

A rainha de Inglaterra foi um enorme símbolo, para o bem e para o mal. E a parte do mal provoca uma revolta que nunca foi sequer por ela reconhecida.

Era todo um outro mundo. O Reino Unido saía de uma vitória épica sobre o nazismo, a libra esterlina era ainda a moeda global, The Times e a BBC os media de referência, a polícia nem precisava de armas e era incorruptível, as universidades de Oxford e Cambridge eram incontestavelmente os maiores centros de conhecimento. 

Ao mesmo tempo, toda a África continuava repartida pelas potências coloniais, e o governo de Sua Majestade tinha acabado de informar a ONU que não tencionava abolir as chicotadas nas suas colónias. Pelos vistos, o chicote era boa punição para quem se atrevesse a interferir com a pilhagem do homem branco.

No momento da sua morte, a velha senhora deixa ao seu sucessor um Reino profundamente desunido pela questão europeia, e com a Escócia e a Irlanda do Norte em crescentes movimentações para se separarem da pequena Inglaterra. Além-mar, o desaparecimento de Isabel II fez aumentar o clamor para que se cortem os laços que continuam a existir com a monarquia britânica – e as exigências de reparações por séculos de escravatura e exploração.

Na verdade é um enorme crédito a favor de Isabel Windsor que os seus domínios tenham encolhido desde um império mundial a, potencialmente, uma parte de uma pequena ilha ao largo da Europa continental: porque essa transição sucedeu de forma pacífica, o que não era de todo adquirido na altura (como infelizmente o regime fascista português da altura fez questão de provar). Só que a rainha de Inglaterra foi um enorme símbolo, para o bem e para o mal. E a parte do mal provoca uma revolta que nunca foi sequer por ela reconhecida.

Esse sentimento de revolta sentido em grande parte deste mundo pode ser sumarizado neste tweet de uma organização activista sul-africana: "Não carpimos a morte de Isabel, para nós ela representa um período trágico da História. Durante o seu reinado longo de sete décadas, nem por uma vez admitiu as atrocidades que a sua família infligiu a todos os povos nativos que a Grã-Bretanha invadiu pelo mundo. A família real britânica vive sobre os ossos de milhões de escravos arrancados a África para servir os interesses da acumulação racista de capital; se realmente há justiça depois da morte, então que Isabel e os seus antecessores obtenham o que merecem".

Uf. Não são meias palavras, e no entanto é possível encontrar outras muito piores, como o anúncio do realizador Boots Riley: "A matriarca de uma família real com um legado de comércio de escravos, imperialismo, colonialismo, roubo, símbolo da opulência e mascote da classe dominante está morta".

Poderá o eterno príncipe, Carlos, reformar "A Firma" (como os próprios membros se referem à realeza britânica)? Saberá abrir as janelas dos palácios para deixar entrar ar fresco? Conseguirá este homem, que há apenas dois meses foi repreendido por aceitar um suborn... uma dádiva de 3 milhões de euros escondidos em malas de couro vinda do seu grande amigo, o xeque do Qatar, sustentado pelos privilégios mais extremos e um salário público anual livre de impostos de 98 milhões de euros, adaptar um conceito absolutamente anacrónico aos tempos difíceis e incertos em que vivemos?

Não apostaria o meu palácio nessa ideia. Sem o símbolo ternurento que representava a sua mãe, sem a gravitas que a História do século XX lhe emprestava e sem as suas décadas de experiência em lidar com tantos líderes mundiais, Carlos III vai encontrar tremendas dificuldades em ser respeitado, muito menos querido.

O que são óptimas notícias.

 (Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)

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