A nova "economia circular"
A nova "economia circular"
Sou cliente da Galp e o meu contrato de luz e gás já foi actualizado cinco vezes este ano, duas desde Agosto. A minha conta praticamente duplicou em dois meses, e ainda nem sequer liguei o aquecimento este Inverno.
Mas a Galp gosta de me enviar bónus, pequenos presentes todos os meses por eu ser cliente e pagar a horas. É descontos no combustível e nem sequer tenho carro, é descontos na Uber Eats (para não usar gás a cozinhar), é descontos todos os dias no calendário do advento (24 dias, 24 surpresas!), brindes com que a Galp me regala para não baixar o valor do kilowatt nem os lucros (e salários) milionários que distribui pelos seus accionistas e chefões. Giro era receber um voucher para gastar na Amorim Luxury, porque só assim se deve viver a vida: sem gás e com frio, mas jantar no JncQuoi e vestir na Fashion Clinic. Pena eu não ser a Paula Amorim e não ter, como ela tem, "cultura térmica".
Para as promoções dos "produtos exclusivos" a Galp tem sempre dinheiro para me "devolver". Deve ser isto o conceito de "economia circular". Segundo o Parlamento Europeu, é um "modelo de produção e de consumo" que visa a "redução do desperdício". "Quando um produto chega ao fim do seu ciclo de vida, os seus materiais são mantidos dentro da economia sempre que possível, podendo ser utilizados uma e outra vez, o que permite assim criar mais valor."
Criar mais valor: é o que faz a Galp "oferecendo-me" produtos que eu já paguei com a inflação galopante, a distribuição dos dividendos, as comezainas dos milionários nos restaurantes na Avenida da Liberdade. Compramos às empresas e depois elas devolvem-nos, não em preços mais baixos, e muito menos em salários decentes, mas com "pontos em cartão" para "reutilizar" nessas mesmas empresas. Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma em lucros extraordinários.
A minha relação com a Galp é a de fornecedor e cliente. Mas também há a de patrão e trabalhador. O Continente resolveu, face aos valores incomportáveis da inflação, demonstrar alguma preocupação com os trabalhadores e as suas condições de vida. Tendo em vista os seus lucros decidiu não lhes aumentar o salário. À semelhança de António Costa, que nos "dá" um cheque-brinde de quando em quando, decidiu "dar" 500 euros a todos os seus "colaboradores" (que é como o Continente chama às pessoas que trabalham efectivamente nos supermercados, na distribuição e logística).
Não é um cheque de 500 euros, não vão os trabalhadores gastar tudo em vinho ou no cabeleireiro, guardar para quando tiverem de ir ao oftalmologista com o filho, ou quando cair aquela conta do IMI ou da Galp, lá está, que num rompante aumentou 50%. O Continente "dá" aos trabalhadores 500 euros com o "Cartão Dá": só podem gastar o dinheiro nas lojas Continente. O Continente não dá, o Continente já tem. Tudo a circular dentro da mesma economia. E cria valor, sim, para o Continente. Nada se perde, tudo recircula na espiral inflacionista.
O primeiro-ministro voltou a anunciar um novo cheque agora no valor de 240 euros (desta vez, os beneficiários são mais limitados). Muitos recebemos o "pagamento extraordinário" de 125 euros em Outubro. Eu, por exemplo, gastei-o todo no aumento da conta do gás/luz. Portanto, a economia circulou para a Galp: o Governo não aumentou os salários, o IVA da energia não baixou, a Galp ficou com lucros, e eu usei o cheque para compensar os quase 50% de aumento na conta de energia.
Os portugueses gastaram-no em Outubro a compensar o aumento da renda ou da prestação da casa, da gasolina, da energia, das portagens, da comida. Como foi um "apoio extraordinário", o salário "ordinário" de Novembro nem vê-lo – "dados do Banco de Portugal revelam um grau de endividamento das famílias equivalente a 83,7% do seu rendimento disponível no final do segundo trimestre deste ano". (CNN)
Em Abril, o primeiro-ministro dizia: "Não vamos embarcar na ilusão de que se aumenta o poder de compra e se combate a inflação só por via da subida dos rendimentos". E também anunciou um objectivo: "Temos de travar a inflação e não disseminar a inflação, gerando uma espiral inflacionista."
A "ilusão" dos salários e a "realidade" da inflação: os salários não aumentaram, a espiral inflacionista está aí, cada semana mais voraz, estamos todos embrulhados nela. Menos aqueles que continuam a pairar acima das nossas possibilidades, reutilizando e reciclando o dinheiro gerado pelo nosso trabalho, lançando-nos migalhas como pontos acumulados "em cartão".
(Autora escreve de acordo com a antiga ortografia.)
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