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Adidas vs Puma. A guerra dos ténis numa pequena cidade alemã
Sociedade 2 20 min. 30.04.2022 Do nosso arquivo online
Reportagem

Adidas vs Puma. A guerra dos ténis numa pequena cidade alemã

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Adidas vs Puma. A guerra dos ténis numa pequena cidade alemã

Sociedade 2 20 min. 30.04.2022 Do nosso arquivo online
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Adidas vs Puma. A guerra dos ténis numa pequena cidade alemã

Tiago Carrasco
Tiago Carrasco
A Adidas e a Puma nasceram de uma zanga entre dois irmãos na pequena cidade bávara de Herzogenaurach. A rivalidade atingiu níveis extremos: construíram as fábricas em lados contrários do rio, bares e padarias exclusivos para simpatizantes de cada uma das marcas e os fundadores foram sepultados em extremos opostos do cemitério. Mas a concorrência promoveu a inovação, numa saga em que também entram portugueses.

Na cerimónia de abertura do campeonato do mundo de futebol, em 1966, em Inglaterra, o alemão Adolf "Adi" Dassler, fundador da Adidas, estava eufórico: todos os meninos que andavam pelo relvado do Estádio de Wembley usavam um par novo de chuteiras com as três listras, para além de ter assegurado que quase 75% das selecções participantes no torneio vestia equipamento da sua firma. 

Rudolf Dassler, fundador da Puma, assina um contrato com Eusébio em Herzogenaurach, na Alemanha. O português tornava-se assim no primeiro futebolista a ter umas chuteiras de assinatura, as Puma King.
Rudolf Dassler, fundador da Puma, assina um contrato com Eusébio em Herzogenaurach, na Alemanha. O português tornava-se assim no primeiro futebolista a ter umas chuteiras de assinatura, as Puma King.
Foto: DR

No entanto, o seu irmão e rival, Rudolf "Rudi" Dassler, dono e fundador da Puma, também tinha cartas na manga. Antes do torneio, tinha contactado um avançado português nascido em Moçambique, Eusébio da Silva Ferreira, que já tinha brilhado pelo Benfica na Taça dos Campeões Europeus. "Naquela época, as botas de futebol eram bastante duras. O Eusébio pediu ao Rudolf chuteiras suaves e flexíveis", conta Helmut Fischer, durante décadas director de marketing e publicidade da Puma. "Foi assim que começámos a desenvolver a chuteira perfeita. Felizmente, terminámo-la a tempo do Mundial’66, em que Eusébio se tornou no melhor marcador e jogador da competição".

O Eusébio foi o primeiro jogador global que teve chuteiras desenhadas especificamente para si e para o seu estilo de jogo.

Michael Dassler, neto do fundador da Puma

Assim nasceram as Puma King, o modelo que década após década assentou nos pés de alguns dos melhores craques do futebol mundial – Pelé, Johann Cruyff, Maradona e, mais recentemente, Neymar. "O Eusébio foi o primeiro jogador global que teve chuteiras desenhadas especificamente para si e para o seu estilo de jogo", refere ao Contacto Michael Dassler, 56 anos, neto de Rudi, que se recorda de, em criança, ter jogado futebol com Pelé no quintal de sua casa, em Herzogenaurach. 

O talento do avançado do Benfica tinha despertado a atenção de um agente da Puma em Lisboa e Eusébio foi à Baviera assinar um contrato de 10 mil marcos (5200 euros, equivalentes a 22 mil euros actuais). O desempenho do goleador no Mundial de Inglaterra rendeu-lhe diversos prémios e, segundo a autora Barbara Smit, no livro Invasão de campo – Adidas, Puma e os bastidores do esporte moderno (versão traduzida para português do Brasil), a Adidas não teve alternativa senão convidá-lo para a cerimónia da Bota de Ouro, organizada pela Adidas França e pelo jornal desportivo L’Équipe. "Tenho a certeza de que eles não ficaram nada felizes com aquilo, mas organizaram uma óptima festa de qualquer forma", disse Eusébio, que ficou com duas chuteiras de ouro da Adidas, ao já citado livro de Smit.

O ódio entre os irmãos Dassler era então visceral e existia uma rivalidade vincada entre a Adidas e a Puma, que incluía todo o tipo de manhas e trapaças para registarem novas patentes e contratarem atletas de sucesso. Antes da final do mesmo Mundial, o jogador inglês Jackie Charlton, irritado com o assédio dos Dassler, ameaçou jogar contra a Alemanha com uma sapatilha de cada marca. A Puma conseguiu evitar que os 22 atletas dessa final calçassem Adidas, desviando à última hora o mítico guarda-redes britânico Gordon Banks para o seu lado.

Esta luta pelo monopólio do vestuário desportivo iniciara-se em 1948, quando os dois irmãos, que vinte anos antes tinham iniciado uma história conjunta no fabrico de ténis para a prática de desporto, tiveram uma desavença irreparável. Adi fundou a Adidas (acrónimo de Adi Dassler), enquanto Rudi pegou na sua alcunha (segundo boatos locais, devido ao jeito felino de seduzir as mulheres) para erigir a Puma. Em Herzogenaurach, ou Herzo, uma povoação que, à época, tinha aproximadamente 7 mil habitantes, a separação dos Dassler não deixou ninguém indiferente: os trabalhadores tiveram de optar por um dos irmãos, os moradores foram forçados a escolher entre a marca das três listras e a do felino, multiplicaram-se brigas nas tavernas e os dois ramos da família não podiam sequer cruzar-se nas ruas.

"Adi" Dassler fundou a Adidas depois de uma zanga com o seu irmão. Em 1954, introduziu os pitões nas chuteiras de futebol, o que ajudou a Alemanha a vencer o Mundial.
"Adi" Dassler fundou a Adidas depois de uma zanga com o seu irmão. Em 1954, introduziu os pitões nas chuteiras de futebol, o que ajudou a Alemanha a vencer o Mundial.
Foto: DR

Actualmente, é muito diferente. Continua a existir em Herzo uma predominância anormal de ténis da Adidas e da Puma nos grupos de estudantes da cidade, mas agora em sã convivência. Os quartéis-generais das duas empresas – a segunda (Adidas) e a terceira (Puma) maiores companhias do sector, só suplantadas pela norte-americana Nike – distam menos de dois quilómetros. Juntas, fazem 30 mil milhões de euros anuais em vendas e têm em Herzo mais de 7 mil trabalhadores. Todavia, ainda são visíveis as marcas da contenda fraticida: há dois clubes de futebol, um patrocinado pela Adidas e outro pela Puma, encontram-se sargetas com o logótipo da Puma e rotundas com grandes bolas de futebol da Adidas.

A designer Joana Domingues trocou a Puma pela Adidas. No passado, teria sido impossível.
A designer Joana Domingues trocou a Puma pela Adidas. No passado, teria sido impossível.
Foto: DR

Joana Domingues, 29 anos, designer gráfica nascida no Porto, trocou há menos de três meses a Puma pelo departamento de running da Adidas. Há 30 anos, teria sido perseguida e acusada de traição. "Agora é normal. Há muitos funcionários, incluindo chefes, a transitar de uma empresa para a outra", diz. "É irónico que as empresas estejam tão próximas geograficamente quando os irmãos fundadores tiveram uma relação tão conturbada". 

Já André Mendonça, 24 anos, trocou a equipa B do Estrela da Amadora, onde jogava como médio, para ser gestor de produto de camisolas de futebol da Puma. "Quando cheguei já conhecia a incrível história de rivalidade entre os irmãos Dassler", diz. "Mas faz parte do passado. Alguns dos meus melhores amigos aqui na Alemanha são funcionários da Adidas. Pode haver uma boca ou outra, no gozo, mas sem problemas. Além disso, a concorrência é fulcral, pois motivou as duas empresas a inovarem constantemente".

André Mendonça era futebolista do Estrela da Amadora mas trabalha hoje na sede da Puma a desenvolver equipamentos de equipas de futebol.
André Mendonça era futebolista do Estrela da Amadora mas trabalha hoje na sede da Puma a desenvolver equipamentos de equipas de futebol.
Foto: DR

German Hacker, 55, presidente da câmara de Herzo, só pôde usar a sua primeira peça da Adidas aos 30 anos, quando a sua tia, operária da Puma, faleceu. Em cerimónias que envolvam ambas as sociedades, usa uma sapatilha de cada marca: não convém ferir susceptibilidades quando 40% dos habitantes estão ligados a uma das multinacionais e os dividendos em impostos são determinantes para as contas municipais. "Herzo é conhecida como a 'cidade dos pescoços dobrados'", diz Hacker. "Porquê? Porque aqui sempre que conhecemos alguém olhamos primeiro para baixo, para os ténis, e só depois para a cara. É Adidas ou Puma? Isso era o mais importante. Ainda hoje tenho essa tendência de olhar para os ténis".

Os fabulosos irmãos Dassler

"Fritz Dassler: Lederhosen, Herzogenaurach". A inscrição do negócio de tradicionais calças de cabedal continua na fechada da antiga casa dos Dassler que, com as suas portadas vermelhas e telhado íngreme, preserva o traço do início do século XX. Então, Herzo já era um dos principais centros de produção de calçado na Francónia, a região norte da Baviera. Adolf, o segundo filho do casal, cedo começou a costurar os seus próprios sapatos na lavandaria da casa: criativo e engenhoso, encontrou métodos para continuar a produzir mesmo sem electricidade durante a I Guerra Mundial e experimentou novos materiais, como pele de tubarão e cabedal de cangúru, para tornar os sapatos mais leves e moldáveis. 

"Experimentava com tudo o que encontrava, incluindo sacos do pão, e o seu pai ajudava-o a obter as matérias-primas e a construir as máquinas necessárias para o arranque do negócio", contou Sigi Dassler, a filha mais nova de Adi, à BBC. Adi, amante de desporto, começou a especializar-se no fabrico de calçado para futebol e atletismo, algo completamente inexistente à época: os atletas usavam as mesmas botas pesadas com que trabalhavam nas indústrias.

Rudolf, o filho varão dos Dassler, não tinha o génio artístico de Adi, mas compensava-o com uma lábia monumental. Tentou ser polícia, foi operário de uma metalúrgica, mas a partir de 1918 percebeu que o futuro passava por vender os ténis do irmão mais novo. Os seus dotes comerciais logo sobressaíram e, em 1924, Rudi e Adi fundaram a Gebrüder Dassler Schuhfabrik (Fábrica de sapatos dos irmãos Dassler). Logo em 1928, forneceram as sapatilhas à atleta Lina Radke, que ganhou a medalha de ouro nos 800 metros nos Jogos Olímpicos de Amesterdão. Também muitas das equipas de futebol do sul da Alemanha começaram a experimentar as chuteiras de Herzo. O primeiro logótipo era uma ave a transportar um ténis no bico.

"Caso Adolf Hitler não tivesse ascendido ao poder na Alemanha, em 1933, a empresa teria disparado para o sucesso internacional mais cedo", opina, à Business Insider, o historiador Manfred Walker. Mas, como se sabe, a era nazi mudou a Alemanha e o mundo. Os Dassler tiveram de se alistar no partido nacional-socialista de modo a continuarem a sua actividade, estabelecendo acordos com os responsáveis políticos pela área desportiva. 

A zanga foi tão grave que nunca mais se voltariam a ver. Quando morreram, nos anos 70, foram enterrados em extremos opostos do cemitério e os seus filhos foram impedidos de falar com os tios e os primos.

Michael Dassler, proprietário de uma loja de vinhos

Ainda assim, Adi foi até à capital alemã, na antecâmara dos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, convencer um promissor atleta negro norte-americano a calçar os seus novos ténis talhados para a velocidade. Esse corredor era Jesse Owens: semanas mais tarde, envergonharia Hitler no Estádio Olímpico ao arrebatar quatro medalhas de ouro aos rivais arianos, para mais equipado com os ténis da oficina de Herzogenaurach. Os Dassler foram duramente repreendidos pelos nazis e Rudi chegou a pensar que seriam enviados para o campo de concentração de Dachau.

No início da 2ª Guerra Mundial, as divergências entre os irmãos já eram imensas. Para lá de opiniões antagónicas nos negócios, Friedl, a esposa de Rudi, e Käthe, a de Adi, davam-se mal. Käthe tinha assumido um papel importante na contabilidade da firma. "Tudo piorou quando Rudi foi chamado para combater na frente leste enquanto Adi foi dispensado por ser considerado insubstituível na fábrica", diz o historiador Walker. 

Rudi cismou que Adi nada tinha feito para evitar que os nazis o enviassem para a guerra porque queria livrar-se da sua ingerência na empresa. Desertou das trincheiras geladas da Rússia e foi preso durante um ano. Durante esse período, a Dassler foi obrigada a abandonar a produção de calçado e a centrar-se no fabrico de armamento, tendo sido ordenada a utilizar prisioneiros de guerra como operários. Quando Rudi regressou a Herzo no final do conflito, em 1945, já sabia que muito dificilmente as coisas seriam pacíficas como antes.

Em 1948, os irmãos Dassler anunciaram a sua separação. "A zanga foi tão grave que nunca mais se voltariam a ver. Quando morreram, nos anos 70, foram enterrados em extremos opostos do cemitério e os seus filhos foram impedidos de falar com os tios e os primos", diz Michael Dassler, hoje proprietário de uma loja de vinhos no centro da cidade. Ele próprio nunca se pôde relacionar com os descendentes de Adi. 

Em Herzo, 75 anos depois, ninguém sabe ao certo a razão de os irmãos terem cortado relações; há quem diga que Rudi se sentia secundarizado pelo irmão, que não concordava com o envolvimento de Käthe nos desígnios da empresa ou que nunca lhe perdoara a questão da guerra. Mas a explicação dominante é outra: Rudi, mulherengo inveterado, terá tido um caso com a mulher de Adi, do qual poderá ter resultado o nascimento de um rapaz, Horst. Ao desconfiar que Horst era filho de Rudi e não dele, Adi fez de tudo para se livrar do irmão, até que a relação quebrou. 

Essa é a opinião de Michael: "Para dois irmãos se zangarem daquela forma, só pode ter sido algo de muito grave, de carácter pessoal. Eu acredito que tenha sido por causa dessa traição", diz. O enredo 'shakespeariano' terminou com Rudi a inaugurar a Puma em Herzo, levando consigo todo o departamento de vendas, enquanto Adi, que recebeu a confiança dos sapateiros, atravessou o rio Aurach para alicerçar a Adidas na margem contrária.

Diz-me o que calças, dir-te-ei quem és

A Puma impôs-se no pós-guerra devido ao talento do seu patrão para as vendas. Porém, antes do Mundial de 1954, disputado na Suíça, Rudi decidiu rejeitar a oferta do seleccionador alemão Josef Herberger para equipar a Mannschaft, a equipa nacional, com chuteiras da sua marca. "Ele considerou que a selecção estava a pedir demasiado dinheiro para o nível que exibia, uma vez que depois da guerra raramente tinham vencido uma partida e os adeptos seguiam muito mais os clubes do que a equipa nacional", conta Michael Dassler. "Foi o maior erro da carreira do meu avô". Adi aproveitou a oportunidade e calçou a selecção com Adidas.

Surpreendentemente, a Alemanha Ocidental chegou à final contra a favorita Hungria, num dia de dilúvio em Berna. Adi desejava chuva: as suas novas chuteiras incorporavam inovadores pitões de alumínio que melhoravam a tracção dos atletas na relva encharcada. Os germânicos venceram por 3-2 no jogo que ficou conhecido por "milagre de Berna", e que é ainda hoje apontado como a partida de futebol mais gloriosa da história do país, pois assinalou o regresso do orgulho nacional após o trauma colectivo da guerra e do Holocausto.

"A imprensa destacou o papel das chuteiras no triunfo e, desde então, a Adidas não só se tornou o patrocinador oficial da selecção como passou a ser parceira da FIFA nos Mundiais", sublinha Michael. Apesar de a patente dos pitões ser ainda hoje disputada – a Puma alega ter desenvolvido o sistema antes da Adidas -, o acontecimento de 1954 é visto como o principal motivo para a Adidas se ter tornado significativamente maior que a Puma.

A guerra das patentes foi uma constante nas décadas que se seguiram: as marcas disputaram também intensamente, na década de 1980, o lançamento dos primeiros "ténis digitais", capazes de recolher dados sobre a distância percorrida e a pulsação dos atletas quando ligados através de um cabo a um computador. Os processos judiciais entre as marcas multiplicaram-se, às dezenas. E não menos belicosas eram as disputas pelos contratos com os desportistas, que conduziram a situações bizarras. 

Johann Cruyff, por exemplo, era fiel à Puma ao passo que a sua selecção holandesa vestia Adidas: o craque exigiu que a sua camisola tivesse apenas duas riscas, e não três. Ainda mais radical foi a história de Lothar Matthäus, um dos melhores futebolistas alemães de sempre e vedeta do Bayern de Munique e do Inter de Milão nas décadas de 80 e 90. 

Natural de Herzogenaurach, Matthäus cresceu numa família Puma: o seu pai era funcionário da marca e ele formou-se no FC Herzogenaurach, o clube financiado pela marca do felino, de onde do cimo de uma colina conseguia ver as partidas do antagonista ASV Herzogenaurach, apoiado pela Adidas, que jogava 100 metros ladeira abaixo. Quando recebeu uma oferta do poderoso Bayern, uma formação da Adidas, o seu pai quis bloquear a transferência: "Resultou apenas porque cheguei a acordo com o Bayern para continuar a usar chuteiras da Puma, que era algo muito invulgar naquela época", conta Matthäus no livro Bayern: Criando um superclube global, de Uli Hesse.

As duas marcas tornaram-se tão influentes que passaram a constar dos livros de História. Quando subiram ao pódio dos JO’1968, no México, os atletas afro-americanos Tommie Smith e John Carlos ergueram não só os seus punhos, reivindicando justiça racial nos EUA, mas também um ténis da Puma. Motivo: tinha sido a única marca com coragem para os patrocinar. No ano anterior, a alemã Kathrine Switzer, apoiada pela Adidas, tornara-se na primeira mulher a correr a maratona de Boston. "É o meu momento histórico preferido da Adidas porque nas imagens vê-se a forma como ela continua a correr, mesmo empurrada e insultada por ser mulher", diz a portuguesa Joana Domingues.

Entretanto, a tensão na Francónia era de cortar à faca. Herzo estava dividida ao meio: havia bares para as pessoas da Puma e outros para as da Adidas, padarias de cada uma das marcas e até cuidado especial para que os descendentes de Adi e Rudi não frequentassem as mesmas turmas na escola. "Um amigo meu era florista e fazia distribuição porta a porta. Andava sempre com um par de ténis suplente no carro, para se certificar que calçava Puma ou Adidas consoante o domicílio que visitava. Caso errasse, arriscava-se a perder o cliente", conta Michael Dassler. Em sua casa, a palavra 'Adidas' era impronunciável. Quando se queriam referir aos inimigos, usavam a expressão N.G. (nie gehört, ou seja, "nunca ouvido").

Michael foi criado para tomar conta da Puma na entrada da década de 1990: para tal, estudou gestão e aprendeu a dinâmica do negócio, cresceu a pensar que tinha a vida feita. Contudo, a companhia foi atingida por uma profunda crise, que se alastrou à Adidas. Do outro lado do Atlântico, uma ousada franquia norte-americana penetrava não só no vestuário desportivo, como também no universo do hip-hop e do streetwear, assinando uma parceria com a maior figura do desporto mundial, o basquetebolista Michael Jordan. Os Air Jordan destronaram as firmas dos Dassler. "A Nike apareceu e, arrogantes como eram o Horst e o Armin [filhos de Adi e Rudi], não a levaram a sério. Diziam que os americanos não sabiam fazer ténis", diz Michael.

As dívidas acumularam-se e as empresas quase faliram antes de passarem para as mãos de investidores internacionais. Para Michael, foi duro: teve de traçar um novo rumo para o futuro. Percebeu, todavia, que sem as empresas a família tinha hipótese de se reconciliar.

Agora que o ódio entre a Puma e a Adidas terminou, só peço a indivíduos com ténis Nike para se descalçarem no meu gabinete. Na brincadeira, claro.

German Hacker, presidente da Câmara de Herzo.

A Babel do desporto

Se Estugarda e Wolfsburgo são tidas como as cidades alemãs do automóvel, um sinal na autoestrada cataloga Herzogenaurach como "a cidade do desporto e da inovação". A Adidas e a Puma mudaram-se recentemente para a periferia norte da povoação, erguendo enormes instalações que contemplam as sedes internacionais, megastores, outlets, recintos desportivos e fábricas. 

É uma cidade rica: a autarquia tem 150 milhões de euros na conta e há tantos postos de trabalho como moradores (21 mil). "Cada ano recebemos, em média, mais mil trabalhadores e o desafio é criar as estruturas para receber tanta gente, evitar engarrafamentos e o encarecimento excessivo das rendas", diz o edil German Hacker. "Apesar de a cidade ter 1200 anos de história, os turistas vêm essencialmente fazer compras nos outlets da Adidas e da Puma. São dois milhões por ano". Até a indesejada Nike percebeu o potencial do nicho e abriu um pequeno outlet junto ao das concorrentes. "Agora que o ódio entre a Puma e a Adidas terminou, só peço a indivíduos com ténis Nike para se descalçarem no meu gabinete. Na brincadeira, claro", diz Hacker.

Para além das receitas provenientes das gigantes do vestuário desportivo, Hacker tem ainda o privilégio de ser dos poucos autarcas a receber figuras lendárias do desporto no seu escritório. Um deles foi Usain Bolt, o homem mais rápido do mundo: "Ofereci-lhe um frasco de mel e disse-lhe que com aquilo ia bater mais recordes. Ele, muito simpático, respondeu que para isso comia as batatas da sua mãe, na Jamaica", recorda.

Também há ilustres visitantes portugueses. A atleta de triplo salto Patrícia Mamona, prata nas últimas olimpíadas, visitou recentemente a sede da Puma, que também patrocina o campeão olímpico na mesma modalidade, Pedro Pichardo. Já na Adidas destacam-se as parcerias com as atletas Aurora Cunha, Fernanda Ribeiro e, mais recentemente, com Nélson Évora. 

A marca das três listras tem ainda uma parceria antiga com o futebol do Benfica, tendo fornecido as primeiras chuteiras às 'águias' há mais de cinquenta anos. Actualmente, é também reponsável pelos equipamentos. Ter o patrocínio de uma das duas marcas germânicas é tão importante que, após vencer o bronze nas últimas olimpíadas, o judoca português Jorge Fonseca se dirigiu aos seus dirigentes: "Vou dedicar a medalha à Adidas e à Puma porque me disseram que não tinha capacidade para ser representante deles. Sou bicampeão do mundo, terceiro nos JO, que estatuto mais preciso de ter para ser patrocinado por eles?", questionou.

Para os portugueses André e Joana, trabalhar nos quartéis-generais destas multinacionais representa, acima de tudo, uma vivência enriquecedora. "Trabalham na Adidas mais de 5 mil pessoas de 100 nacionalidades diferentes. Cada uma delas tem os seus costumes, as suas religiões, os seus padrões de comportamento. Essa multicultaralidade é a experiência mais interessante", diz Joana Domingues. Para os filhos dos funcionários, abriu uma escola internacional em Herzo. 

André, que tem a seu cargo a produção dos equipamentos do Palmeiras, Peñarol, Lens e de selecções africanas como o Gana e a Costa do Marfim, destaca o ambiente descontraído e a exigência de inovação constante: "Gosto mais de trabalhar na Puma porque, sendo mais pequena, permite uma comunicação mais próxima. Ainda recentemente falei com o chefe internacional da minha secção e tive a oportunidade de apresentar as minhas ideias, o que não acontece em todos os empregos", afirma.

As empresas têm os olhos postos no futuro: desenvolvem ténis virtuais, têm fábricas 100% automatizadas e associam a sua imagem não só a desportistas mas também a artistas famosos como Kanye West ou Rihanna. "A maior preocupação actual é a sustentabilidade. O desafio é encontrar métodos de produção mais amigos do ambiente e materiais recicláveis, mantendo a qualidade dos produtos", diz Joana.

E os Dassler? Logo em 1994, Michael decidiu celebrar o aniversário do seu filho com uma festa num hotel da cidade gerido pelos descendentes do seu tio-avô e arquirrival Adolf. "Uma das filhas do Adi, minha tia, enviou-nos um cartão a dizer que éramos bem-vindos. Eu depois convidei-os para a festa e aí demos o primeiro passo para a reaproximação da família", conta. Tios e primos que jamais se tinham visto à conta da zanga dos seus antepassados voltaram a abraçar-se. "Algo inacreditável, atendendo a que o meu pai tinha sido inclusivamente impedido de comparecer no funeral do seu tio Adi".

A trégua oficial só aconteceu em 2009, mais de 60 anos após a briga dos irmãos. Foi assinalada com a realização de um jogo de futebol no Dia Internacional da Paz, a 21 de Setembro, e reuniu primos desavindos, funcionários das duas empresas bilionárias e até os seus CEOs. Há pormenores, porém, que nunca mudam: o símbolo das duas marcas estava presente em todos os elementos do jogo, desde a bola às chuteiras, passando pelos equipamentos. "A rivalidade entre as famílias acabou. E ainda bem. Mas persiste nos mercados internacionais e é salutar", diz Michael.

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