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A extinção dos insetos é uma catástrofe mundial

A extinção dos insetos é uma catástrofe mundial

A extinção dos insetos é uma catástrofe mundial
Alarme

A extinção dos insetos é uma catástrofe mundial


31.08.2022

RICARDO J. RODRIGUES (TEXTO) E SANNE DERKS (FOTOS)*

Um quarto dos insetos europeus está hoje à beira da extinção. Há lugares onde a redução da biomassa dos invertebrados chegou aos 75 por cento. Está em causa a cadeia alimentar do planeta. Primeiro capítulo de uma série de três.

O biólogo Constanti Stefanescu, da Rede Catalã de Monitorização de Borboletas.
O biólogo Constanti Stefanescu, da Rede Catalã de Monitorização de Borboletas.

Quando um especialista em borboletas vai para o campo, raramente olha de frente para a paisagem. Os cientistas que estudam estes insetos têm o hábito de apontar a visão para os planos mais rasteiros dos prados e Constanti Stefanescu estuda invertebrados há tantos anos que as suas costas foram ganhando uma certa curvatura. É biólogo, trabalha para a Rede Catalã de Monitorização de Borboletas, e hoje veio medir a densidade dos insetos no Parque Natural del Montseny, um bosque a norte de Barcelona, Espanha, que foi declarado Reserva da Biosfera pela Unesco em 1978.

O dia está quente e luminoso, são as condições ideais para um entomólogo avaliar a intensidade com que as borboletas ocupam um prado. Aos ombros, o biólogo traz uma rede - é com ela que caça os exemplares que não consegue identificar à distância, antes de devolvê-los aos ares. Hoje quase não precisa de usá-la. Na verdade, já quase nunca precisa. “Nos últimos 30 anos fomos capazes de comprovar que 70 por cento das espécies de borboletas na Catalunha estão em regressão”, explica. “O estado em que se encontram as borboletas é um indicador do estado geral dos insetos. Incluindo, por exemplo, as espécies que polinizam os cultivos de que dependemos.”

A Rede Catalã de Monitorização de Borboletas é um dos poucos programas europeus a avaliar sistematicamente as populações de insetos. “Na comunidade científica há muitos anos que temos a impressão de que o declínio é enorme, mas os financiamentos para estudar insetos sempre foram escassos”, admite Axel Hochkirch, que dirige o departamento de invertebrados da União Internacional para a Conservação da Natureza e é um dos mais reconhecidos entomólogos do planeta (tanto que, há um par de meses, uma nova espécie de grilo descoberta na ilha de Creta, Grécia, foi baptizada com o seu nome: Leptophyes axeli). Por toda a Europa, entre os cientistas que estudam os insetos, há aliás esta piada recorrente: um mosquito não é tão sexy como um lobo, pelo menos quando o assunto é arranjar fundos para investigação.

“Há cinco anos, no entanto, tudo mudou”, diz Hochkirch. Em outubro de 2017, a Sociedade Entomólogica de Krefeld, na Alemanha, publicou um estudo que fez soar os alarmes em todo o mundo. Com acesso a dados raros recolhidos ao longo de 27 anos, os cientistas foram capazes de determinar que, em menos de trinta anos, nas reservas ecológicas germânicas, se verificava uma perda de biomassa dos insetos voadores na ordem dos 75 por cento. Nos meses de verão, altura em que há mais presença de invertebrados, os números chegavam aos 82 por cento. A notícia espalhou-se rapidamente pelo globo, com os jornais a darem conta de que estava em marcha um Apocalipse, ou Armagedão, dos insetos.

Desde então, multiplicam-se os esforços científicos para avaliar a dimensão do problema. Os números são tudo menos animadores. “Os estudos mais recentes da União Internacional para a Conservação da Natureza apontam que trinta espécies desaparecem diariamente da face do planeta”, diz Horchkirch, que conduziu estas mesmas investigações. Também foi ele a liderar os esforços internacionais para criar uma inédita lista vermelha de invertebrados europeus. “Graças a esse esforço feito entre investigadores de todo o continente conseguimos determinar que um quarto dos insetos do continente está neste momento em risco de extinção.”

Para Alain Klein, biólogo do Parque Natural do Our, uma das três reservas ecológicas que existem no Luxemburgo, a expressão “apocalipse dos insectos não é assim tão incorreta.” O pequeno Grão-Ducado foi dos primeiros países europeus a apressarem-se a criar um plano de proteção dos insetos e Klein esteve nesse projeto desde o primeiro dia. “Há uma emergência que não podemos ignorar, o tempo de intervir é já.”


Insetos: pequena história de um desastre global
Todos os dias, 30 espécies de invertebrados desaparecem do planeta. Os cientistas dizem que está em marcha uma catástrofe global. Reportagem do jornalista Ricardo J. Rodrigues do Contacto na Alemanha e em Espanha, no Luxemburgo e em Portugal.

No Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto, a entomóloga Sónia Ferreira fala de uma corrida contra o tempo. “À medida que se vão revelando mais dados, percebemos que temos em mãos um problema enorme, ainda que ele seja invisível para a maioria das pessoas. É o mundo tal como o conhecemos que está em risco. Sem insetos, toda a cadeia alimentar do planeta fica em causa.”

O fenómeno, diz Ferreira, é visível a olho nu. “Se pensarmos bem, todos nós sabemos que, há uns anos, quando viajávamos de carro no verão durante umas centenas de quilómetros, havia ali uma altura em que precisávamos de parar numa estação de serviço para limpar os vidros de toda a bicharada que tínhamos esborrachado no caminho. Agora conseguimos percorrer milhares de quilómetros sem essa preocupação. Chegou à altura de parar para pensar como isso é assustador. Aliás, já vamos tarde.” 

Constantin Stepanescu segura uma borboleta em Montseny.
Constantin Stepanescu segura uma borboleta em Montseny.

Em maio deste ano, um grupo de cientistas britânicos usou precisamente essa técnica para avaliar o declínio. Comparando dados de 2004 com os de 2021, entomólogos do Kent Wildlife Trust conseguiram determinar uma perda de 65 por cento dos insetos voadores que se encontravam nas placas dos automóveis dos carros que circulam em Inglaterra. A mesma técnica tinha também sido usada por biólogos dinamarqueses medindo dados com 20 anos de distância, num estudo publicado em 2019: num trajeto de 1,2 quilómetros pela região rural do país, a redução nos vidros dos carros era de 80 por cento. Num percurso de 25 quilómetros, era de 97 por cento.

Lisa Reiss, bióloga na Universidade de Trier, um dos principais centros de investigação entomológicos da Alemanha, põe as coisas nestes termos: “Estamos numa grande experiência global que não podemos reproduzir e da qual não sabemos os resultamos. E acredito que a humanidade não vai querer saber qual é o resultado dessa experiência.” 

 

Efeito borboleta

A extinção total de insectos é um cenário pouco provável. Às vezes perguntam a Axel Hochkirch se serão os seres minúsculos ou os humanos a desaparecerem primeiro e o cientista não tem grandes dúvidas: “os humanos irão antes”. O seu argumento é simples: “Os invertebrados estão cá muito antes de nós e constituem três quartos das espécies do planeta. Seria arrogante pensarmos que lhes sobreviveríamos.”

Mas há outro ponto em que os cientistas insistem. É que os insectos cumprem funções essenciais à vida humana – os serviços ecossistémicos. Um terço de toda a comida que ingerimos está dependente da polinização, por exemplo. E, se o assunto é esse, os sinais também já são de alarme. No final de julho, os preços do óleo de girassol tinham disparado globalmente por causa da guerra na Ucrânia. Na Índia, o terceiro maior consumidor do mundo, os agricultores viram-se em mãos com um problema: era preciso aumentar a produção doméstica, mas as abelhas tornaram-se de tal forma escassas nas regiões do sul do país, onde estão localizadas as grandes plantações, que os girassóis simplesmente não floriam.


O declínio dos insetos afeta a vida de cada um de nós
Aumento dos preços da comida, secas, incêndios florestais e pragas agrícolas também se explicam pelo declínio dos insetos. A extinção tem um impacto económico. Segundo capítulo de uma série de três.

Este verão, os agricultores de Tenkasi não tiveram outra hipótese senão fazer polinização manual das plantas. É um processo moroso e complicado, em que são as mãos humanas a recolher o pólen de cada flor com um pano e acrescentá-lo a outra, ou esfregando plantas próximas umas nas outras outras. Para responder à procura, é preciso contratar trabalhadores que encarecem os custos de produção, além de não resolverem a questão com a mesma velocidade dos polinizadores.

Na sul da China, e sobretudo na província de Sichuan, a região dos grandes pomares de pêra e maçã, o assunto é alvo de um intenso debate há mais de uma década. Hoje, quase toda a polinização da região é feita manualmente, algo que os especialistas consideram insustentável. O assunto é por enquanto asiático, mas o desaparecimento de polinizadores na Europa também faz levantar inquietação.

Guillem Mas avança com o jipe pelos Pirinéus catalães até um prado a 1600 metros de altitude. “Comprámos aqui uns terrenos para proteger as Formigueiras Pequenas, elas estão a desaparecer a uma velocidade estonteante”, diz o biólogo espanhol da Paisatges Vius, uma associação que trabalha para a recuperação de habitats desta região. Fala de uma espécie de borboletas de montanha que o resto do mundo conhece como Mountain Alcon Blue e os portugueses como Borboleta Azul das Trufeiras (Phengaris alcon). Um inseto de asas azuis conhecido pelo seu peculiar ciclo de vida – e também por ser um polinizador importante nas paisagens de altitude.

As borboletas azuis copulam em plantas específicas dos Pirinéus, e é lá que as fêmeas depositam os ovos. Quando a larva irrompe, começa por alimentar-se das flores dessas plantas. Em três semanas desenvolve uma forma e odor semelhante à das larvas das formigas. Deixa-se então cair ao chão e é recolhida e transportada para dentro de um formigueiro. Enganadas, as formigas levam-na para dentro do ninho e, ao longo de dez meses, ela vai alimentando-se dos ovos dos outros animais. A meio da primavera, começa a formar uma crisálida e só sai do formigueiro no início do verão.

“O problema que estamos a verificar é que há agora uma mudança radical da gestão agrária dos terrenos que põe em causa a viabilidade destes animais”, diz Mas, o biólogo. A presença da formigueira pequena só ocorre se houver plantas e formigas específicas que sustentem o seu ciclo de vida. Mas os prados onde estas espécies vingavam eram pastoreados por ovelhas e cabras. “Nos últimos 20 anos as vacas tomaram o seu lugar. Consomem muito mais erva, impedidos a floração ideal para os insetos”, continua.

Sem estas borboletas, a paisagem torna-se menos biodiversa. E, falhando a diversidade, os campos tornam-se menos produtivos. “Então compensa-se a falta de insetos com mais fertilizantes, com mais pesticidas, o que cria um círculo vicioso em que as espécies não conseguem reverter as ameaças que sofrem nos seus habitats”, diz o cientista espanhol. “Sofremos todos por causa disso.”

As vacas tomaram os pastos que antes eram de ovelhas nos Pirinéus espanhóis.
As vacas tomaram os pastos que antes eram de ovelhas nos Pirinéus espanhóis.

“As alterações climáticas são uma parte do problema, mas não são a grande questão que explica a hecatombe dos insetos”, diz o biólogo luxemburguês Alain Klein. As monoculturas que invadiram as paisagens, a produção intensiva – sobretudo de gado e dos campos que os alimentam – e os pesticidas e fertilizantes que são hoje usados em grande escala para viabilizar a fecundidade dos terrenos acabam explicam a ruína dos invertebrados. “À medida que as populações humanas crescem, aumentam também as necessidades alimentares. Mas a maneira como promovemos este consumo em grande escala acabará por cavar a nossa própria sentença”, advoga Klein.


A corrida contra o tempo para salvar os insetos
Depois da II Guerra Mundial, a Europa encheu-se de florestas, campos e prados de crescimento rápido. A UE apostou na produção intensiva. Recuperar a biodiversidade perdida é uma corrida contra o tempo. Terceiro capítulo de uma série de três.

Edward O. Wilson, cientista americano falecido no ano passado – e que era considerado “o pai da sociobiologia e da biodiversidade” - escrevia em 1987 no livro Conservation Biology: “Estimo que existam 42,850 espécies de vertebrados em todo o mundo, dos quais 6,300 são répteis, 9,040 são aves e 4,000 são mamíferos. Em contraste, foram descritas 990,000 espécies de invertebrados – das quais só 290,000 são abelhas – sete vezes o número de todos os vertebrados juntos.” O capítulo que dedicou à conservação dos insetos chamava-se curiosamente The Little Things That Run The World – As Pequenas Coisas que Governam o Mundo. E a sua conclusão no estudo era bastante clara: “Nós precisamos dos insetos para sobreviver, sim. Eles não precisam de nós para nada.”

* Este trabalho teve o apoio do Earth Investigations Programme do journalismfund.eu.


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