9 de Maio do passado, 9 de Maio do futuro
9 de Maio do passado, 9 de Maio do futuro
Ninguém sabia o que iria acontecer em Moscovo durante o "Dia da Vitória". Todos os anos a 9 de Maio, a Rússia celebra o final da II Guerra Mundial (ali chamada de "grande guerra patriótica") com uma grande parada militar que até ogivas nucleares inclui. Um espectáculo de teor belicista e agressivo, que olha para o passado heróico com indisfarçado saudosismo e retira dele a lição mais errada: se houve uma guerra é porque vai haver outra, logo quantos mais mísseis fabricarmos, melhor.
A todo o aparato adiciona-se o discurso nacionalista do autocrata no poder, usando estratagemas já gastos de um século: o "Ocidente" (a Europa e os EUA) é apresentado simultaneamente como corrupto e provocador, débil e perigoso. Já a Rússia é ofendida, mas sempre justa, como que tocada pela graça divina. Estes são os temas em anos "normais".
A começar pela lição correcta a retirar de 1945 – a serpente do nacionalismo acaba por gerar a guerra, e a União Europeia foi criada para que os antigos inimigos assegurassem a paz conjunta.
Mas 2022 é tudo menos um ano normal, e desta vez havia uma preocupação generalizada sobre o que iria dizer o ocupante do Kremlin: ele poderia fazer escalar a retórica, anunciando uma mobilização geral de todos os homens em idade de combater; poderia (outra vez) ameaçar ataques nucleares; poderia declarar "vitória", em que o Leste da Ucrânia passava a ser, como a Crimeia, território conquistado para sempre.
A montanha pariu um rato retórico, o que é obviamente um alívio – e um bom sinal, porque pode ser interpretado optimisticamente como se as opções de Putin começam a reduzir-se. Vladimir limitou-se a repetir uma espécie de best-of das queixas que dirige ao mundo. Sobre a Ucrânia, falou imenso do passado, insistiu na tecla de que o inimigo é o herdeiro directo dos nazis, e que o seu país se viu forçado a defender-se numa guerra que não desejava, mas que vai acabar por vencer.
Esta descrição da guerra ficaria muito melhor na voz do invadido... e de facto Zelensky utilizou exactamente os mesmos argumentos numa espécie de versão alternativa do mesmo discurso, filmado com uma câmara à mão pelas ruas de Kiev (em vez da pompa e megalomania militar da praça Vermelha).
A nossa viagem de 9 de Maio termina bem no centro da Europa, em Estrasburgo, cidade-símbolo da reconciliação entre a França e a Alemanha. Foi aqui que os três presidentes das instituições europeias assinalaram o Dia da Europa; a data é a mesma, mas o contraste não poderia ser maior. A começar pela lição correcta a retirar de 1945 – a serpente do nacionalismo acaba sempre por gerar a guerra, e a União Europeia foi criada para que os antigos inimigos assegurassem a paz conjunta.
Em Estrasburgo falou-se do futuro. Ali encerrou a Conferência sobre o Futuro da Europa, onde cidadãos comuns de todo o continente propuseram 326 medidas diferentes para fazer evoluir a nossa Casa Comum. Há uma mensagem muito clara que permeia essas propostas: as pessoas querem MAIS Europa para ter MELHOR Europa. Há ideias para avançar em áreas-chave onde os últimos anos revelaram o nosso atraso: defesa comum, saúde comum, independência energética, migração e asilo, políticas sociais para todos os europeus, e um genuíno incentivo à democracia participativa para finalmente aproximar os cidadãos das instituições. Além disso – para conseguir avançar sem os bloqueios habituais dos países eurocépticos – quer-se acabar com as decisões por unanimidade.
O anfitrião Emmanuel Macron, na sua primeira intervenção desde que foi reeleito, apontou ainda mais longe com uma ideia de rasgo, a criação de uma "Comunidade Política Europeia": um círculo exterior e mais flexível de ligação à UE, para Estados que partilhem dos valores europeus, mas tenham dificuldades em aderir no curto prazo – países como a Ucrânia, desde logo, mas também a Bósnia ou até o Reino Unido.
Talvez este tenha sido um 9 de Maio para a História. Com a Rússia a olhar para o passado e a Europa de olhos postos, firmemente, no futuro.
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)
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