Abusos sexuais. E se fossem os nossos filhos?
Abusos sexuais. E se fossem os nossos filhos?
Nos dias que correm, começa a ser usual ouvirmos diversos responsáveis da hierarquia da Igreja Católica a pedir perdão. Perdão à comunidade cristã, perdão aos povos, perdão às vítimas, perdão às famílias, pregando até o perdão para os abusadores, como se fossem eles o elo mais fraco das circunstâncias, como se a Igreja tivesse do perdão a autoridade, uma espécie de superioridade moral, que se sobrepõe à evidência, como se tivessem das sociedades tementes a Deus um perpétuo salvo-conduto e o pecado fosse a própria redenção.
Estes constritos arrependimentos chegam ao conhecimento público a conta gotas, com décadas de atraso e um odor insustentável a naftalina, encobrimento, omissão metódica, uma normalização do mais hediondo dos crimes: pedofilia. Não se pode confundir a parte pelo todo, mas também não é tolerável que se oculte pelo todo a parte.
Quanto mais o número de vítimas de abusos sexuais no seio da Igreja Católica sai da sombra da sua sistemática negação, fica claro que não se trata de casos isolados, mas de um longo cadastro, de milhares de pessoas, que escondem um imenso sofrimento, a quem a vida foi "amputada" na infância, vivendo para sempre com marcas irreversíveis dos crimes de que foram vítimas e um estranho paradoxo de culpa, assente, por absurdo, nos enraizados preconceitos da moralidade cristã.
Às vítimas não basta terem sido abusados. Na sua inocência, é como se tivessem sido eles condenados a uma pena de medo perpétuo, do crivo social, parecendo que são eles os veículos da tentação dos impolutos homens de Deus. Esses faróis, portadores da doutrina da fé e do perdão, afinal, não passam de homens a quem o celibato (longe de ser um argumento válido para os seus crimes) não fez bem. Por alguma razão eles foram mudando de paróquia, sob uma densa barreira de silêncio, escondendo este anátema pelos anos. Dá a impressão que a Igreja Católica, especialista em redenções, não consegue – ou não quer -, encontrar o caminho para a sua.
Em 2019, o Papa Francisco ordenou o fim do "segredo pontifício" para os casos de violência sexual, abuso sexual de menores e pedo-pornografia. Traduzindo: toda a informação das denúncias, testemunhos, documentos processuais depositados nos confins das dioceses, assim como nos arquivos da Santa Sé, deverão ser fornecidos sempre que solicitados por magistrados dos respectivos países.
O Sumo Pontífice tornou também obrigatória a denúncia destes crimes em todas as dioceses do mundo católico. A eficácia destas medidas não tem comparação possível com o trabalho das comissões independentes que começam a surgir um pouco por todo o mundo católico.
Este flagelo não se limita ao seio da Igreja Católica.
Daniel Sampaio
E se fossem nossos filhos?
No passado dia 13 de Fevereiro, a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, que iniciou os trabalhos a 11 Janeiro de 2022, apresentou resultados. Uma bomba. O pedopsiquiatra Pedro Strecht, presidente da comissão, começou por detalhar que foram recebidos e validados 512 testemunhos. A comissão identificou um número mínimo de 4.815 vítimas.
Dada a sensibilidade da matéria, Pedro Strecht advertiu que a realidade é mais assustadora "muito mais dos que espelham os números ou as estatísticas". No total, a comissão independente recebeu mais de seis centenas de denúncias e que nestas 96% dos abusadores sexuais de menores dentro da Igreja Católica portuguesa são do sexo masculino, aliás, como é norma noutros países que investigaram estes crimes. Em Portugal, a maioria das queixas têm origem nos distritos de Lisboa, Porto, Braga, Santarém e Leiria.
Foi também possível concluir, acrescentou o pedopsiquiatra, que a esmagadora maioria dos abusos sexuais de menores ocorreu em seminários e colégios católicos, mas também dentro das próprias igrejas e, nestas, pelo menos um caso em que o crime foi perpetado no altar. Actualmente, a idade média das vítimas é de 52 anos, sendo a maioria do sexo masculino.
A lei do silêncio foi a regra, que atesta igualmente a eficácia do método usado pela comissão independente, que garante o sigilo de quem apresenta as queixas. 48% dos denunciantes falaram pela primeira vez fora do núcleo familiar (em muitíssimos casos, nem isso aconteceu), dos abusos que sofreram em criança. A maioria dos crimes ocorreram nas décadas de 1960, 1970 e 1980.
Laborinho Lúcio, antigo ministro da Justiça, outro dos membros da comissão independente, esclareceu ainda que, dos 512 testemunhos validados, 25 casos foram enviados para o Ministério Público, embora boa parte já tenha prescrito. Outro dos elementos integrantes da comissão, a socióloga e investigadora Ana Nunes de Almeida especificou que 57% das vítimas eram do sexo masculino e 47,2% do sexo feminino.
A tipologia dos abusos, porém, foi mais violenta nas vítimas do sexo masculino. Os abusos sexuais, enquanto eram menores, passavam por "sexo anal, manipulação de órgãos genitais e masturbação". As vítimas do sexo feminino, por sua vez, foram sujeitas, em grande percentagem, a "insinuações" de cariz sexual. Traumas, porém, são traumas.
A maior parte dos abusos sexuais no seio da Igreja Católica ocorreu quando as vítimas tinham entre 10 e 14 anos. 57,2% das vítimas foi abusada mais do que uma vez, 27,5% sofreu abusos sexuais durante mais de um ano. Quanto aos locais onde os abusos ocorreram, o maior número foi em seminários (23%), em diversos espaços no interior das próprias igrejas – incluindo o referido caso do altar – (18,8%), no confessionário (14,3%), em casas paroquiais (12,9%) e em escolas católicas (12,9%).
O psiquiatra Daniel Sampaio, outra das personalidades que compõe a comissão, sublinhou que os casos de abuso sexual foram sobretudo em instituições da Igreja Católica. Um aviso: "este flagelo não se limita ao seio da Igreja Católica". Porém, das vítimas que relataram os seus casos à comissão, a larga margem dos abusadores eram homens (97%), destes 77% eram padres.
O relatório "Dar Voz ao Silêncio", entregue dias mais tarde à Conferência Episcopal, que reagiu publicamente de forma quase incompreensível, com um estranho desdém em relação às vítimas, promete continuar a dar que falar, não deixando que as consequências caiam no esquecimento. Esse silêncio, escuda-se invariavelmente numa omissão cúmplice dos factos. Algo que na Igreja Católica, em todos os países onde vieram à luz os escândalos de abusos sexuais, parece ter sido uma prática recorrente.
O caso Spotlight e as outras investigações
Em 2002, o abuso sexual de menores na Igreja não era propriamente um assunto. Acusações havia, mas sempre apresentados como casos isolados. Eram como fumo a sair da chaminé das suspeitas. Até o chamado Caso Spotlight ter feito estremecer as fundações da Igreja Católica. Em 2016, a obra homónima de Tom MacCarthy venceu o Óscar para melhor filme. Um filme, com muito pouco de ficção. Spotlight era o nome da equipa de jornalistas de investigação do Boston Globe, que em 2002 publicou mais de 800 reportagens, com matéria factual, sobre o sistemático abuso sexual de menores, ao longo de décadas, na arquidiocese daquele cidade americana, do Estado de Massachusetts, uma das mais importantes dos EUA.
Um caso que acabaria por conduzir à resignação do cardeal Bernard Law, depois de se provar que a Igreja Católica, pela sua pessoa, assim como de diversos bispos, tinha encoberto e abafado muitos crimes de abuso sexual de menores, em especial os crimes de um antigo padre da sua diocese, o padre John Geoghan que, entre outros crimes da mesma natureza, se havia provado ter abusado sexualmente de sete rapazes da mesma família. Esta acusação, que a hierarquia da arquidiocese de tinha conhecimento e encobrira, seria apenas a ponta do véu.
Desde a publicação da primeira investigação do Boston Globe, cujo conjunto de trabalhos lhe valeria o prémio Pulitzer de 2003, mais de meio milhar de vítimas apresentaram queixas formais contra perto de 150 padres e antigos párocos da cidade. Dessas acusações, foram instituídos 250 processos-crime. Por causa dos seus crimes, a diocese de Boston ficou na bancarrota, com o pagamento de mais de 85 milhões de euros às vítimas.
O mundo foi pela primeira fez confrontado com a verdadeira escala deste flagelo, ainda que fosse um mero sintoma de um problema muito mais vasto, que fez abalar até o Vaticano, forçado a reconhecer o problema e tomar medidas no Direito Canónico, no que diz respeito aos crimes mais graves por membros da Igreja Católica, da humilhante categoria "Delicta Graviora".
Foi igualmente uma investigação do Boston Globe que em 2018 destapou um pesado manto de silêncio no Estado da Pensilvânia. Durante mais de sete décadas foram perpetrados por elementos da Igreja uma enormidade de crimes de abuso sexual de menores, crimes esses consistentemente encobertos ao longo do tempo, com a cumplicidade das sucessivas hierarquias da Igreja Católica da Pensilvânia. A investigação criminal levaria à acusação de mais de três centenas de sacerdotes. O número de vítimas identificadas passava de mil. Neste, como em todos os casos, os números estão sempre subestimados.
Na Europa, a primeira investigação aprofundada por entidades independentes decorreu em 2009 na República da Irlanda, embora as primeiras denúncias públicas de abusos sexuais de menores no seio da Igreja Católica irlandesa tivessem surgido quatro anos antes. A hierarquia da Igreja, como parece ser o seu modus operandi, tratou o assunto como se fossem fumo sem fogo. O primeiro relatório independente apontava para perto de 15 mil vítimas, ao longo de quase oito décadas.
Em Inglaterra, a questão só se levantou em 2011, depois da Justiça tropeçar num caso que parecia isolado, num insuspeito leigo, que era um dos apresentadores mais conhecidos da BBC, falecido nesse mesmo ano. Foi após a sua morte que as vítimas ganharam coragem para vir a público. Jimmy Savile não era uma pessoa da Igreja, mas o que se concluiu é que o apresentador era um predador sexual, tendo abusado sexualmente de muitos menores ao abrigo de instituições da Igreja. O Reino Unido ficou escandalizado com os seus crimes. Ficou provada a existência de pelo menos 60 vítimas.
Em consequência deste polémico processo, em 2015 a então ministra da Administração Interna, Theresa May, tomou a iniciativa de criar uma comissão independente para investigar os crimes de abuso sexual de menores, não apenas em instituições de carácter religioso, como estatal. Essa comissão independente produziu até hoje 62 relatórios, com base em entrevistas a mais de mil e 500 vítimas, que se repartiam pela Igreja Católica e pela Igreja de Inglaterra.
A investigação alastrou para a Igreja Anglicana, a mais significativa em Inglaterra, assim como em Gales. Brotaram processos-crime como cogumelos. 390 agressores sexuais pertencentes à Igreja Anglicana foram condenados. Muitos, porém, já tinha falecido, pois estes crimes tinham sido perpetados entre 1940 e 2018.
A Igreja Católica estava longe de estar inocente nesta matéria. No espaço de cinco décadas de meia (até 2015), a comissão independente registou 3072 casos de abusos sexuais de menores em 340 instituições católicas, onde foram detectados 936 agressores sexuais. Desde 2015, o número de denúncias públicas tem aumentado exponencialmente. O número total estimado de vítimas é de três mil e o número estimado de agressores de 900.
Ao longe, em terras do indo-pacífico de sua majestade, surgiu com estrondo o escândalo de abusos sexual de menores ao abrigo da Igreja Católica da Austrália. O escândalo, aliás, havia de fazer rolar a cabeça da terceira personalidade mais importante no Estado do Vaticano. O então cardeal George Pell, arcebispo-emérito da cidade de Sydney e prefeito-emérito da Secretaria para a Economia do Vaticano, seria mesmo condenado, por abuso sexual de menores, a seis anos de prisão.
Crimes cometidos na Igreja de St. Patrick, quando Pell era arcebispo de Melbourne. O cardeal George Pell cumpriu apenas 404 dias de prisão. Em 2020, o Supremo Tribunal australiano anulou a sua sentença, considerando que as provas contra ele não tinham sido suficientes. Pell faleceu em Roma, em Janeiro passado.
Também na Austrália se provou que a Igreja Católica tinha omitido muitos crimes de abuso sexual de crianças ao longo de muitas décadas. Os resultados da Comissão Real de Respostas Institucionais ao Abuso Sexual de Crianças, constituída em 2013, traçaram um cenário de crime generalizado. Entre instituições do Estado e instituição religiosas, foram detectadas quase oito mil vítimas de abuso sexual em criança.
Mais de 60% dos crimes tinham sido cometidos em instituições ligadas à Igreja Católica. Mais de 2500 processos foram comunicados às autoridades judiciárias australianas. Foi, aliás, esta entidade independente que deu origem ao "Pell Affair", que conduziu à prisão um dos mais altos cargos do Vaticano. O número estimado de vítimas na Austrália é de 4444 pessoas, sendo que o número estimado de perpetradores é de 2400.
O escândalo de abuso sexual de menores na Igreja Católica chegaram também à América do Sul. No Chile, os casos foram de tal gravidade, que levaram mesmo a algo inédito na Igreja Católica: uma resignação em massa. Na sequência das investigações a 248 vítimas, acusando 221 abusadores, entre os quais uma dezena de bispos, levaram a que o Papa Francisco se pronunciasse sobre o claro encobrimento de elementos da Igreja chilena a estes crimes e à sua participação activa na destruição de provas. 34 bispos da Igreja Católica chilena apresentaram ao Sumo Pontífice a sua renúncia, que o Papa Francisco três dias depois aceitou.
A Igreja Católica alemã também não escapou ilesa às investigações de entidades independentes aos crimes de abuso sexual de menores e do seu encobrimento. O primeiro relatório foi produzido pelo trabalho conjunto de três universidades alemãs, que incidiram na análise de perto de 40 mil documentos, em banho-maria em 27 dioceses da Alemanha.
A conclusão foi um osso duro de roer para a Igreja Católica. Entre 1946 e 2014, concluiu-se, ocorreram ao abrigo de instituições católicas 3776 crimes de abuso sexual de crianças e de adolescentes. Estavam envolvidos nestes crimes mais de 1600 religiosos. Os autores do estudo, como se tornou habitual, salientaram que estes números, apesar da sua enorme gravidade, estavam muito longe da realidade. No entanto, no decurso destas denúncias massivas, o próprio Vaticano instaurou os seus processos de investigação.
Um conjunto de dioceses alemãs solicitou uma investigação a um dos maiores escritórios de advogados alemão, cujas conclusões trouxeram mais lenha para a fogueira do pecado, atingindo a maior diocese alemã: Colónia. Concluiu-se que nesta diocese pelo menos 386 crianças tinham sido abusadas sexualmente. Na sequência disto, o cardeal Rainer Woelki, arcebispo de Colónia, foi forçado pelo próprio Papa Francisco a apresentar a sua resignação.
A mesma firma de advogados investigou a arquidiocese de Munique, com resultados igualmente graves. Na Alemanha, o número total estimado de vítimas é de 3677 pessoas, sendo o número estimado de agressores de 1670. A Igreja Católica alemã já indemnizou as vítimas em mais de 40 milhões de euros.
Em França, os números mais recentes apontam para um número estimado de 7500 vítimas de abuso sexual em crianças e de perto de três mil agressores ligados à Igreja Católica. Os resultados dos trabalhos da Comissão Independente Sobre Abusos Sexuais na Igreja Católica Francesa foram revelados no final de 2021. E causaram enorme impacto na sociedade francesa, que veio para a rua pedir punição para os criminosos no seio da Igreja ou em instituições católicas e para os responsáveis pelo encobrimento dos seus crimes.
O escândalo tinha começado com o caso do padre Bernard Oreynat, durante longos anos capelão de escuteiros em Lyon, que cometera diversos crimes de abuso sexual de crianças e jovens entre 1970 e 1990 em acampamentos de juventude. Uma dezena das suas 35 vítimas deram a cara, fazendo a denúncia pública dos crimes que sofreram. O padre acabou por confessar os crimes. Em 2020 foi condenado a cinco anos de prisão.
Por omissão destes crimes, seria igualmente condenado a seis meses de prisão o arcebispo de Lyon, cardeal Phillipe Barbarin. Os resultados da comissão independente, que surgem a seguir a estas condenações, são tenebrosos. Segundo a comissão, durante um espaço de sete décadas, cerca de 216 mil menores terão sido abusados sexualmente por elementos da Igreja Católica e por leigos que integram instituições católicas.
A comissão vai mais longe. Caso se considere que muitas das vítimas já faleceram sem quebrar o silêncio e que o número de denúncias continua a crescer, será de admitir que o número de vítimas seja superior a 330 mil pessoas. A exemplo do que aconteceu em Boston ou na Alemanha, também a Igreja Católica francesa optou por pagar indemnizações às vítimas. No início deste ano, uma dezena e meia de bispos (ou ex-bispos) da Igreja Católica foram acusados pela Justiça.
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)
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