Respeite sua senhoria
Respeite sua senhoria
Quando a febre do Alojamento Local (AL) começou em Portugal, aí pelos anos 2009-2010, um amigo começou a ganhar bastante dinheiro praticamente sem fazer descontos de IRS nem Segurança Social, gerindo apartamentos para turistas em Lisboa em plataformas tipo Airbnb. Estávamos quase a ser intervencionados pela troika. Desempregados ou com salários baixíssimos, sem perspectivas de futuro, muitos fomos obrigados a emigrar. Ele ficou em Lisboa e encontrou uma galinha que punha ovos de ouro.
Primeiro, eram apartamentos de pessoas que tinham casas vazias em Lisboa e as queriam "pôr a render", mas não "dar-se ao trabalho" de as "gerir". Notar: a linguagem. O amigo cobrava as comissões no aluguer, tratava da limpeza, da roupa lavada, das chaves, de tudo. Era um trabalhão, sobretudo na época alta, porque eram muitos apartamentos.
Cada vez mais, até porque outros amigos começaram a procurar casa porque iam casar ou ter filhos, ou tinham sido despejados porque a sua senhoria transferiu os apartamentos para o AL, e ficou cada vez mais impossível encontrar casa a preços que pudessem pagar.
Ao Estado, o meu amigo declarava o mínimo até porque se queixava dos impostos, "altíssimos", dizia, para quem "investia" no turismo. "Só neste país", dizia", perante as tentativas de regulação do AL. Ao fim de alguns anos, fez tanto dinheiro que juntou para "investir" e comprou apartamentos para ele próprio "pôr a render". Aí já "criava riqueza": pagava a alguém para tratar da limpeza, da roupa lavada. Já nem tinha de se deslocar: tratava tudo por telefone.
Anos depois, chegou a Uber: tudo numa app, pagamos com cartão, nem temos de "aturar o taxista" e até nos perguntam que música queremos ouvir. Espantoso. Uns amigos, precários que trabalhavam a recibos verdes, tinham um carro e faziam uns trocos nas horas livres a conduzir pessoas. Também não descontavam sobre os trocos. Sem contratos, sem problemas, sem papelada – isso do trabalho com direitos é uma chatice.
Anos depois, os amigos, que se queixavam muito dos impostos, compraram toda uma frota de carros que passaram a ser conduzidos por imigrantes do Brasil e do Bangladesh. "É por isso que este país não avança", diziam, diante da tentativa de regular o trabalho dos condutores de plataformas. Os amigos "criaram riqueza", já nem se deslocam (a não ser quando apanham um Uber para jantar fora): tratam tudo por telefone.
Estas histórias são apenas simbólicas, apesar de parte delas ser verdadeira. Não está em causa moralizar A ou B que fez uns trocos durante a crise ou enriqueceu ao ponto de se tornar um empreendedor liberal. Haverá sempre a história extra-ordinária de fulano, como ainda ontem se lia num cartaz do protesto, em Lisboa, dos proprietários de AL contra as novas regras para a Habitação: "Sem o AL não podia estudar." Podíamos sempre escrever o seu oposto: "Por causa do AL não consigo estudar".
O problema não é haver suas senhorias que fizeram pé-de-meia alugando um apartamento que compraram com o dinheiro da conta do BNU quando regressaram de África em 1975. O problema não está em haver quem, aqui e ali, alugue um quarto ou uma casa a turistas: mas quando isso se torna prática generalizada e daí depende parte da economia de um país.
O problema está na ilusão de que o Turismo, mesmo representando 8% do PIB, "produz riqueza". O Turismo não produz nada: vive da fábula da galinha dos ovos de ouro, isto é, existe enquanto existirem recursos naturais (praias, sol) ou a cultura transformada em commodity (fado e pastéis de nata), e vive de trends, de rankings e da next big thing: agora é Lisboa, ontem era Barcelona, amanhã, Bucareste. Não passa de uma espécie de "extractivismo".
O turismo é sobretudo um sector de serviços, assente na sazonalidade, nos baixos salários, na precariedade, na exploração laboral, dominado por meia dúzia de grandes players que, aliados aos grandes fundos de investimento e fundos abutres no imobiliário (que também não "produzem" riqueza), se servem dos pequenos players que alugam a casa para "pagar os estudos", como antes alugavam rooms/zimmer/chambres a turistas no Algarve.
É verdade que o Turismo e o imobiliário movimentam muitos milhões, mas isso não bem é "produzir" riqueza. É verdade que muitos fizeram riqueza com o turismo e o imobiliário. Mas fazem-na "para si", não para o país. Vivem da "renda", isto é, do rendimento que extraem do trabalho produzido por outros: os que lhes conduzem as motas, os que lhes alugam as casas.
Vivem da comissão que cobram na gestão dos carros ou dos apartamentos. Na renda de todos os meses do património herdado dos pais. Nos dividendos ou nos juros que pingam na conta porque são accionistas, porque "investiram". E nem têm de se deslocar: tratam tudo por telefone.
Os pequenos players acham que estão a "gerar riqueza", mas são simplesmente o fundo da tabela da cultura do rentismo: conduzem a mota e limpam casas, mas um dia serão grandes proprietários. Um país que vive disto é também um país que está no fundo da tabela da produção de riqueza: periférico, dependente e atrasado. Tem tantos hotéis, mas não produz comboios, tem centros de congressos, mas não produz vacinas, tem restaurantes estrela Michelin, mas não tem, nem trabalha para ter, soberania alimentar.
O problema não está na aspiração de poder dizer a alguém: "Respeite sua senhoria". A gente quer viver da renda porque, no fundo, ninguém quer trabalhar. Isso diz muito mais das condições miseráveis de trabalho do país, uma economia de baixos salários, de precariedade e de meia dúzia de rentistas.
O problema está na ilusão da pequena burguesia de que "gera riqueza" quando manda outros conduzir a mota e limpar casas, parasitar uma qualquer galinha que ponha ovos de ouro. É por isso que "este país não avança", dizem, enquanto não formos todos senhorios.
(Autora escreve de acordo com a antiga ortografia.)
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