Na Rua da Grande Cidade: 100 anos depois da vergonha
Na Rua da Grande Cidade: 100 anos depois da vergonha
Abril de 1918 foi um mês capital na cronologia do século XX. A Grande Guerra entrou na sua fase crucial: depois de anos de impasse caracterizado pela carnificina estática nas trincheiras da Flandres, a Alemanha passou ao ataque, concretizando a “ofensiva da primavera”, que tinha como objetivos romper as linhas dos aliados e ocupar os portos atlânticos de Calais e Dunquerque, cortando os abastecimentos ao exército britânico e assim, previsivelmente, vencer a guerra. A ter resultado – e esteve perto de acontecer –, o plano teria alterado para todo o sempre o rumo da História.
Uns poucos milhares de portugueses, minhotos na sua maioria, estavam prestes a tornar-se improváveis atores principais no desenrolar deste drama. No ano anterior, a jovem República portuguesa tinha decidido, entre acesas discussões, enviar para a guerra o Corpo Expedicionário Português que iria lutar “ao lado” (na realidade, “debaixo”) dos velhos aliados britânicos; 50.000 homens na pujança da idade viram-se assim atirados para as planícies lamacentas da Bélgica e Norte de França. Esse número vai decrescer ao longo dos meses, à medida que a “carne para canhão alemão” ia desaparecendo sem ser substituída, ou que os oficiais vindos de licença a Lisboa já não voltavam à frente de batalha (onde os soldados rasos ficavam seis meses sem descanso), ou que a óbvia falta de condições e comida, bem como o gélido inverno, iam aumentando as deserções…
A Segunda Divisão do CEP (só havia duas) tinha como responsabilidade defender uma extensão de 12 quilómetros da linha da frente. A sua situação no início de abril era tão desesperada, o desgaste tão grande e o moral tão baixo, que o exército britânico que os rodeava decide-se finalmente, no dia 8, por retirar os portugueses da frente e substituí-los por tropas mais frescas. Mas a ordem, a ser executada no dia seguinte, chegou demasiado tarde: na madrugada do dia 9, o exército alemão avança pela zona como um rolo compressor, centrado sobre as posições portuguesas defendidas por infantaria cansada e meia dúzia de canhões. A luta é feroz e desesperada, o soldado Alfredo Milhais (o tal “que vale milhões”) destaca-se por sozinho suster o avanço do inimigo por algum tempo, mas, em poucas horas, é o descalabro. A frente “portuguesa”, soterrada em obuses, tiros de metralhadora e gases químicos em granadas, tinha-se transformado, nas palavras do general Gomes da Costa (o comandante, confortavelmente instalado na retaguarda), em “massa de escombros, de terra, de revestimentos despedaçados, amalgamados com os cadáveres das guarnições”.
A debandada caótica do exército português em La Lys, “um novo Alcácer-Quibir”, nas palavras de Jaime Cortesão, teve consequências profundas. Na guerra, permitiu aos aliados ganhar tempo para uma reorganização, enquanto os alemães obtinham um falso sentimento de facilidades que lhes seria, em breve, fatal. Em Portugal, significou a perda da inocência da jovem República, bem como o esvair da credibilidade do presidente e protoditador Sidónio Pais – que, de gritar estridentemente “nem mais um soldado para a guerra”, passou rapidamente a prometer um reforço de “10 ou 15 mil” homens em troca de ajuda britânica no transporte. A estabilidade política e económica do país não mais regressaria, o que conduziria poucos anos mais tarde ao golpe de Estado militar – com o mesmo Gomes da Costa à cabeça –, que acabaria com a democracia (e com o desenvolvimento) e geraria o Estado Novo e o salazarismo.
Um século mais tarde, recuperar a memória de uns milhares de pobres agricultores desterrados na Flandres, perdendo a vida em nome dos caprichos assassinos das cabeças coroadas e dos poderosos da época, é falar de um tema quase irreal, certamente surreal. E, no entanto, todos somos o produto da nossa História e dos nossos antepassados. Que a Europa unida nunca esqueça que a sua grande conquista é a Paz.
