Bomba-relógio. Refugiados amontoados em pensões de Lisboa
Bomba-relógio. Refugiados amontoados em pensões de Lisboa
Três pratos, três copos e três conjuntos de talheres. Os beliches só têm uma muda de roupa e as duas casas de banho não têm quaisquer produtos de limpeza. Sem máquina de lavar a roupa e com apenas um fogão e um frigorífico, era assim que viviam até domingo 16 refugiados numa pensão em Lisboa. Fazem parte do grupo de 950 requerentes de asilo que estão à guarda do Conselho Português para os Refugiados (CPR), do qual apenas um reduzido número se encontra alojado no centro de acolhimento devido à sua sobrelotação. Os restantes vivem provisoriamente em pensões, apartamentos e quartos arrendados na região de Lisboa.
É uma realidade que nos bastidores da cidade, entre o fogo cruzado das autoridades políticas, se desenrola para um desfecho que pode ser trágico. Em poucas semanas, foram descobertas pensões com centenas de refugiados, muitos contaminados com covid-19. Outros continuam à espera que o vírus chegue sem nenhuma proteção.
Com a Organização Mundial de Saúde e a Direção-Geral da Saúde a sublinharem a importância de manter o isolamento social e de medidas de higiene padrão, estes refugiados denunciam que nunca tiveram acesso a máscaras e desinfetante.
Como muitos outros requerentes de asilo, Yanick Landu Matondo, de 38 anos, fugiu da República Democrática do Congo por motivos políticos. “O meu pai trabalhava com o chefe de uma tribo numa terra que tem diamantes. O governo matou o meu pai e o chefe porque queria ocupar essa terra. Tratavam-nos como rebeldes”, explica ao Contacto. Na semana anterior, elementos do CPR visitaram a pensão para testar os refugiados e saber se havia algum infetado com covid-19. “Eu recusei por uma razão. Nós podemos fazer o teste e dar negativo mas vamos continuar na viver na mesma situação”, descreve Yanick.
Mansita Kisimene corrobora as palavras do seu conterrâneo. O congolês trabalhava com o general Kassongo, gerente principal de uma empresa, que o ameaçou de morte. Fugiu do país e depois de um longo périplo chegou a Portugal a 14 de fevereiro. Foi diretamente do aeroporto para esta pensão onde diz nunca ter havido troca de lençóis e haver “filas para tomar banho”.
Quando deram pela presença de um jornalista, muitos quiseram denunciar a situação em que vivem. Foi o caso de Aissam Harroi, marroquino, que só pede “uma vida melhor” e que considera impossível uma convivência de 16 pessoas numa casa que só tem uma cozinha e uma casa de banho. Também o iraniano Moustafa Rastifaryfar, que fugiu por se opor ao governo num dos países mais afetados pela pandemia, explica num mau inglês que “demasiada gente não é bom” e que é “muito inseguro” denunciando que a casa onde dormem seis pessoas em cada quarto não é limpo todos os dias.
São dezenas. Dizem-se abandonados pelo Estado português e pedem ajuda. Entre as várias entidades com que o Contacto conversou, a Junta de Freguesia de Arroios, zona de Lisboa onde está a maioria destes casos, afirma que esta situação de sobrelotação das pensões já era do conhecimento do CPR, do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e da Segurança Social “sem que fossem tomadas quaisquer medidas”. A própria presidente freguesia, Margarida Martins, afirmou que estranhava a inexistente articulação com a junta que dirige num território que abrange 92 nacionalidades e que, diz, “sempre foi um exemplo de inclusão”.
Nesse sentido, esta entidade local passou desde o princípio da semana a assumir a entrega de alimentos, equipamentos de proteção e vestuário. “Somos um país de migrantes e temos de pensar em tratar as pessoas como pessoas. É triste esta situação em que pessoas que com dificuldades saíram dos seus países com problemas graves e chegam a um Estado da Europa e também não são bem tratadas. Temos o apoio da população e muita gente está a contribuir”.
Apesar das críticas, o CPR explica que presta atualmente acolhimento a mais de 950 requerentes de proteção internacional, entre os quais, cerca de 600, no âmbito da lei de asilo, já estão sob a responsabilidade do Instituto da Segurança Social e da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Ao Contacto, Tito Matos, vice-presidente desta associação de solidariedade social, sem fins lucrativos com o estatuto de Organização não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD), reconhece que “perante o aumento de pedidos e os seus centros de acolhimento esgotados, o CPR viu-se confrontado com a necessidade de identificar rapidamente locais de alojamento externo”. Com o elevado preço da habitação, esta associação optou por “soluções de alojamento externo e coletivo em hostels e pensões, alguns deles com condições muito fracas mas que fizeram a diferença entre os requerentes pernoitarem num local abrigado ou na rua”.
No que se refere aos utensílios de cozinha e outros itens, “os mesmos são adquiridos pelos requerentes e, em alguns casos, são os alojamentos externos também que os disponibilizam” e sobre a falta de máscaras e desinfetante Tito Matos afirma que o CPR “está a tentar resolver este problema juntamente com os seus parceiros”. Nesse sentido, solicitou o apoio da Câmara Municipal de Lisboa. Mas reconhece que o CPR tem pressionado as autoridades para criar mais centros de acolhimento e informou que fez um pedido ao vereador da autarquia com a responsabilidade do pelouro dos Direitos Sociais e Habitação, Manuel Grilo, para cedência de um equipamento ao CPR para criar um novo centro de acolhimento.
Autarquia deixou cair alargamento de centro de acolhimento
A gestão desta crise pelo vereador eleito pelo Bloco de Esquerda tem sido objeto de várias críticas. Quando se descobriram cem refugiados contaminados num hostel em Arroios, Manuel Grilo afirmou num comunicado que o seu pelouro “não tinha conhecimento” apontando o dedo à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), ao Ministério da Administração Interna e ao SEF. O CPR afirma que esta situação “era do conhecimento das várias entidades envolvidas no procedimento de asilo” e a presidente da Junta de Freguesia de Arroios recordou a denúncia do deputado municipal eleito pela lista independente Cidadãos por Lisboa, Miguel Graça, que, em 28 de abril, numa sessão da Assembleia Municipal, lembrou que entre as competências do pelouro está “o acolhimento e integração de migrantes e refugiados”. De acordo com várias associações, esta situação era já do conhecimento da autarquia em dezembro de 2019.
O mesmo deputado garantiu que o anterior executivo municipal tinha apresentado, em 2017, uma candidatura a um financiamento europeu para ampliar o Centro de Acolhimento Temporário de Refugiados no Lumiar e que este teria sido aprovado com acesso a uma verba de um milhão de euros. Miguel Graça sustenta que “nada foi feito” e que agora “o dinheiro deve ser devolvido, uma vez que o centro não foi ampliado e as condições não melhoraram”.
Ao Contacto, o vereador Manuel Grilo explicou que a autarquia é, desde a criação do Programa Municipal de Acolhimento de Refugiados de Lisboa, uma das entidades de acolhimento de pessoas refugiadas e requerentes de asilo em Portugal mas que as situações que têm vindo a ser noticiadas “dizem respeito a requerentes espontâneos de asilo, pessoas que chegaram pelos seus próprios meios a Portugal e aqui pedem asilo”. Nestes casos, explica o vereador, “existe por decisão do Estado Central, via SEF, uma única entidade que os pode acolher, o CPR”. Por isso, alega, “não tinha registo ou informação” sobre os requerentes de asilo espontâneos acolhidos por esta associação, “nem dos locais onde se encontram, assim como não a temos sobre pessoas refugiadas acolhidas por outras entidades”. Quanto às acusações de Miguel Graça sobre o desperdício de um milhão de euros para o alargamento do centro de acolhimento, situado no Lumiar, em Lisboa, afirma que o pelouro foi “impossibilitado de executar os fundos europeus” por ter a cedência “do direito de superfície do espaço por parte da Associação de Defesa das Forças Armadas” por um impasse entre o Ministério da Defesa e o das Finanças.
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