William Shatner recorda viagem ao Espaço como um funeral e não uma festa
William Shatner recorda viagem ao Espaço como um funeral e não uma festa
Foi mais como um funeral e não uma celebração, conta William Shatner, o ator da série Star Trek/Caminho das Estrelas a propósito da sua histórica viagem de há um ano para fora da atmosfera terrestre, a bordo da nave da empresa de Jeff Bezzos. Na altura, o ator que encarnou o capitão James Kirk – o comandante da nave espacial Enterprise, na série de televisão dos anos 60 - viajou para o espaço (desta vez realmente e não numa produção de estúdio), com 90 anos, tendo-se tornado a pessoa mais velha a fazê-lo.
Mas chamaram-no de parvo e todo o projeto da Blue Origin de turismo espacial de Jeff Bezos – com o envio de multimilionários para o Espaço por 11 minutos – foi criticado como inconsciente do ponto de vista ambiental. O agora príncipe de Gales, William, apelidou a iniciativa de Bezzos, que inclui colonizar o espaço com terráqueos, como de irresponsável: “Precisamos dos melhores cérebros do mundo concentrados em reparar este planeta, e não a tentar encontrar o próximo lugar onde possamos viver”.
Corajosamente ir onde ninguém foi antes
O colega de Shatner no Caminho das Estrelas George Takei (o Mr.Sulu) considerou que o ator estava “a ir corajosamente onde outras pessoas já tinham ido”, parodiando a mítica introdução da série dos anos 60, que explica a missão da Enterprise, “corajosamente ir onde ninguém foi antes”, para desbravar novas fronteiras, encontrar novas civilizações. Passada a euforia do momento, em 13 de outubro de 2021, quando a nave New Shepard, tocou de novo na Terra com os seus quatro passageiros, e com tempo para refletir sobre as emoções, William Shatner recorda na sua autobiografia recém publicada como a breve ida ao espaço foi tudo menos alegre.
No livro recém publicado "A ir corajosamente: Reflexões de uma Vida de Espanto e Maravilha" (Boldly Go: Reflections on a Life of Awe and Wonder), William Shatner explica melhor o que quis dizer quando voltou a pôr os pés no chão, e disse que “olhas para baixo [para a Terra] e há todo este azul e para cima só há negro – há a Mãe Terra e conforto, e lá em cima - ... morte? Não sei”. Com lágrimas nos olhos, balbuciou, então, dirigindo-se ao bilionário dono da Amazon, que aguardava os viajantes: "O que me deu foi a experiência mais profunda de todas. Estou tão cheio de espanto do que aconteceu. Espero nunca recuperar disto, nunca esquecer”.
A viagem de Shatner, depois de Jeff Bezzos ter feito a travessia inaugural três meses antes, em julho de 2021, foi divulgada por quase toda a comunicação social, pelo simbolismo de enviar um ancião, um explorador ficcional das novas fronteiras, agora verdadeiramente a desbravar caminho para o turismo no Espaço, um novo horizonte para os super ricos.
Uma carta de amor à Terra: “Olhei para o Espaço e só vi morte”
Mas nada do que lhe aconteceu era o que tinha previsto. Depois de ter sentido, durante a propulsão, a força de três G’s a puxar-lhe com toda a força o rosto para baixo, Shatner, como os seus colegas de aventura, viveram a alegria da gravidade zero. Apressou-se depois a chegar à janela e contemplar o Espaço, e conta, num extrato da autobiografia, publicado na revista americana Vanity Fair, o que sentiu: “Amo o mistério do Universo. Amo todas as perguntas que fazemos há milhares de anos de exploração e hipóteses. Estrelas a explodir há anos, a sua luz a viajar atá nós anos depois; buracos negros absorvendo energia; satélites a mostrar-nos galáxias inteiras em áreas que se imaginava completamente desprovidas de matéria ... mas quando olhei na direção contrária, para o Espaço, não havia mistério, nenhum espanto majestoso para contemplar ... tudo o que vi foi morte”.
A experiência, mais do que de contemplação revelou-se assustadora: “Vi um vazio frio e escuro. Nada que se pareça com qualquer negritude que se possa ver ou sentir na Terra. Era profunda, envolvente, esmagadora. Virei-me em direção à luz de casa. Podia ver a curvatura da Terra, o bege do deserto, o branco das nuvens e o azul do céu. Era vida. Protetora, segura, vida. Mãe Terra. Gaia. E eu estava a afastar-me dela”.
Durante os seus três anos como personagem principal da série criada por Gene Roddenberry, entre 66 e 69, William Shatner teve a possibilidade de imaginar o que seria explorar o Cosmos, mas agora, perante a pequena amostra de 11 minutos de realidade, percebeu que “tudo o que pensara estava errado. Tudo o que esperava ver estava errado”. Esperava que viajar para o Espaço “seria a maior catarse da conexão que sempre procurara entre todas as criaturas vivas – que estar lá em cima seria o passo seguinte para perceber a harmonia do Universo”.
Em vez disso, e ao contrário do que a personagem de Jodie Foster disse no filme Contacto, quando murmura que um poeta devia estar no seu lugar, Shatner não encontrou nem poesia, nem filosofia. “Descobri que a beleza não está lá em cima, está cá embaixo, entre nós”. Por isso, recorda, estar a fugir de “casa” contou-se “entre as maiores experiências de dor que já senti. O contraste entre a perversa frieza do Espaço e o calor envolvente da Terra encheu-me de uma tristeza infinita. Todos os dias somos confrontados com a descoberta de uma nova destruição da Terra às nossas mãos: a extinção de espécies animais e de plantas... criaturas que levaram cinco mil milhões de anos a evoluir, e de repente nunca mais as veremos por causa da intervenção da humanidade”.
A perspetiva dessa destruição encheu-o de horror: “A minha viagem ao Espaço deveria ter sido uma celebração; em vez disso pareceu um funeral”. Enquanto isso, os seus acompanhantes na pequena cápsula, contou numa entrevista ao Washington Post, “estavam a abrir garrafas de champanhe para celebrar o feito. E eu não me sentia assim. Não estava a celebrar. Estava, não sei, a fechar os punhos contra os deuses”.
Uma pequena luz, “se aproveitarmos a oportunidade”
Mas em todo este sentimento de dor sobre a fragilidade da Terra e da descoberta de uma nova devoção pelo nosso planeta – comum na descrição de muitas gerações de astronautas – o ator que comandou uma nave imaginária por incontáveis galáxias encontra uma pequena luz de esperança.
A visão da janela, naquela manhã de 13 de outubro de 2021, também lhe aumentou dez vezes a sua perceção do poder “dos nossos maravilhosos e misteriosos laços coletivos e, por fim, devolveu um sentimento de esperança ao meu coração. Nesta insignificância que partilhamos, temos um dom que outras espécies talvez não tenham: estamos conscientes – não apenas da nossa insignificância, mas da grandeza que nos faz insignificantes. Isto dá-nos talvez uma chance de nos direcionarmos ao nosso planeta, uns aos outros, à vida e ao amor à nossa volta. Se aproveitarmos a oportunidade”.
As imagens da Terra tiradas do Espaço, e divulgadas desde 1946 pela agência espacial norte-americana NASA, alimentaram a ideia de um planeta azul e serviram de suporte aos movimentos ecologistas que sublinharam ao longo de décadas a singularidade e beleza do nosso planeta. De todas, a fotografia “Berlinde Azul” (Blue Marble), tirada em 1972 a 29 mil quilómetros da superfície da terrestre, é das mais divulgadas e a que mais inspira o discurso ecologista. James Lovelock, o cientista que descobriu o conceito e inspirou o uso do nome Gaia - descrevendo o nosso planeta como uma entidade complexa, dependendo das trocas entre os seres vivos - era nos anos 60 consultor da NASA.
William Shatner com as passagens da autobiografia referentes à sua incursão verdadeira no Espaço dá um contributo à ideia de que temos que salvar o que aqui temos, em vez de prosseguirmos para colonizar o “vazio escuro e frio”.
O contrário do que Jeff Bezzos, com a sua Blue Origin, e Elon Musk, com a SpaceX pretendem fazer, que é encontrar novos poisos para a Humanidade.
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