Amazónia: viagem ao pulmão da Terra
Amazónia: viagem ao pulmão da Terra
(Enviado especial do Contacto à Amazónia)
A primeira capital da Amazónia foi um lugar chamado Airão, 180 quilómetros a noroeste de Manaus. Foi fundada por colonos portugueses em 1694 na confluência do Rio Negro com o Jaú, no Alto Amazonas, e prosperou no século XIX graças ao comércio de borracha. Hoje é um povoado fantasma. O declínio do mercado do látex fez o povo fugir em 1950, mas a lenda diz que o se deve a uma invasão de formigas-gigantes.
Hoje, quando se desembarca no Airão Velho, há de facto enormes formigueiros no que um dia foram ruas cheias de gente. Os edifícios coloniais foram engolidos pela selva e o único habitante do Airão é um eremita japonês chamado Shigeru Nakayama.
Tem 75 anos de vida e 60 de Brasil. Veio com a família de Fukuoka, durante a grande vaga de emigração japonesa dos anos sessenta. Os Nakayamas estabeleceram-se no estado do Pará, mas ele decidiu subir o rio. "Viver na Amazónia era o meu sonho de criança", diz agora em frente à casa de madeira construída sobre estacas que ocupa.
Vários anos de selva deram-lhe técnica de sobrevivência para aguentar as agruras da floresta e, na viragem do milénio, decidiu estabelecer-se aqui. O seu português é limitado, mas há anos explicou a sua filosofia de vida a um jornalista da televisão Globo que dominava o japonês. "Amo esta selva. Desde que cheguei que a vejo ser desmatada, e nos últimos anos cada vez mais. Então decidi vir para aqui guardar o Airão, porque esta zona ainda é floresta pura. Não são as formigas que me metem medo, são os homens", explicou.
Para perceber o que se está a passar hoje no Amazonas é preciso olhar para o grande rio a partir de Manaus, a grande metrópole brasileira que existe no meio da selva. É uma cidade de 2,2 milhões de habitantes à qual não se consegue aceder por estrada alguma, apenas por barco ou avião. Para leste, seguindo a corrente da água em direção ao Atlântico, as margens contam uma história de tragédia.
É aqui que a Amazónia desaparece a uma velocidade alarmante. Segundo o Instituto Brasileiro de Pesquisas Espaciais, 31 mil quilómetros quadrados de selva foram desmatados entre janeiro de 2019 e julho de 2022, anos de gestão do presidente Jair Bolsonaro. É uma extensão enorme: 12 vezes o território do Luxemburgo. Ou, se preferirmos, uma Bélgica inteira.
A leste de Manaus, em direção ao Peru e à Colômbia, a selva tem encontrando maneira de resistir. Seja por conta de um eremita japonês ou não, as terras de Airão, por exemplo, são ainda um abrigo intocado para as espécies animais e vegetais da floresta tropical. "A própria morfologia destas terras ajuda a explicar como elas se têm mantido relativamente a salvo", explica o biológo Lucas Alves.
É caboclo, o que significa é descendente da mestiçagem entre europeus e indígenas. Cresceu por isso entre a sabedoria das matas e os estudos da Terra. Hoje, é colaborador do Fundo Amazónia, um programa brasileiro de conservação da região financiado internacionalmente. Também presta serviços de consultadoria e logística a projetos de desenvolvimento sustentável que existem nas comunidades locais – maioritariamente artesanato, ecoturismo e transformação de plantas medicinais.
A salvaguarda do Alto Amazonas está, em grande medida, no poder das marés. "A montante de Manaus as inundações são constantes. As árvores têm raízes menos profundas, por exemplo, e a terra é bastante ácida, o que a torna menos propensa à produção agrícola", explica. "Mas isso não quer dizer que essa região esteja livre de perigo. Há hoje um desenvolvimento tecnológico que permite contrariar as adversidades naturais para favorecer o agronegócio, que tem crescido de forma descontrolada no Brasil." Não está sozinho na sua teoria: o mundo parece concordar com este biólogo caboclo.
O recém-eleito presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, sabe que o mundo inteiro está a olhar para a Amazónia – e muitos analistas apontam a preservação da selva como a maior arma geoestratégica da grande nação sul-americana.
A 1 de janeiro deste ano, dia da sua tomada de posse em Brasília, o chefe de estado foi claro quanto aos planos para a região e anunciou o desmatamento zero como plano de governo. Em fevereiro, visitou Washington e pediu um pacote de apoios dos Estados Unidos para planos de conservação – recebeu 50 milhões de dólares, um contributo tímido do governo de Joe Biden.
Desde então, as dores de cabeça de Lula têm-se repetido. Em fevereiro, saiu a notícia de que a recolha ilegal de madeira continuava em alta nesse mês e tinha batido um novo recorde, crescendo 62 por cento em relação ao mesmo período de 2022.
Na mesma altura, vieram a público notícias da morte de dezenas de índios yanomami por falta de nutrição – algo que se deve em grande medida à ocupação ilegal das suas terras por garimpeiros em pesquisa de ouro. O presidente brasileiro apressou-se a anunciar a demarcação dos territórios indígenas para que estes possam sobreviver. Mas a vastidão da Amazónia parece tornar a sua tarefa hercúlea.
Lucas Alves tem razão numa coisa: "Nunca sabes o que se esconde no mato. Pode ser uma onça ou pode ser um jagunço." E, enquanto solta as amarras de uma pequena embarcação avisa que, a partir do momento em que embarcarmos, podemos bem estar preparados para assistir ao maior espetáculo. O dia ainda nem sequer nasceu e aos poucos o céu começa a pegar fogo. A selva acorda e então sim, começamos a subir o Amazonas.
A vida no rio
O Amazonas é de tal forma largo que há pontos onde não se consegue vislumbrar a outra margem do rio.
Subi-lo pelo contro é por isso como percorrer uma autoestrada – por onde sobe e desce toda a economia da selva. O comércio, aqui, flutua. Assentes em jangadas há mercearias e postos de abastecimento de combustível, casas de má fama e bares onde se faz a festa até altas horas da madrugada. Para os povos da Amazónia, a vida corre no balanço da maré.
Uma centena de quilómetros acima de Manaus fica o Por do Sol, o boteco improvisado que um caboclo chamado Shéu abriu há uma dezena de anos. Aqui vende-se cerveja morna e piranha frita – e promete-se vista privilegiada para o crepúsculo do fim do dia – e, se a noite for brava, também o da alvorada.
O lugar é ponto de peregrinação para marinheiros de água doce, claro, mas também amantes da natureza. As espinhas das piranhas que são jogadas à água atraem os botos, golfinhos cor-de-rosa que existem apenas nestas águas. Tal como os seus parceiros marítimos, são animais conviviais e aproximam-se dos humanos em procura de comida ou, simplesmente, para brincar.
Os biólogos mergulham nas águas e convidam-nos a fazer o mesmo. Então aqui não há piranhas nem jacarés? Eles explicam que esses preferem os charcos de águas paradas, com refúgios de vegetação. Nas águas abertas o mais provável que um nadador pode enfrentar são os botos, que chegam a medir três metros de comprido e pesar 200 quilos, ou os pirarucus, peixes de 300 quilos que constituem a base da alimentação regional.
Quando nos aproximamos das margens e começamos a percorrer os iguapés, muda a fauna e aumenta o perigo. Enguias elétricas e piranhas infestam as águas. Crocodilos e anacondas escondem-se em vigia – os primeiros dentro de água com os olhos de fora, as segundas nos trilhos que avançam floresta dentro. E aí há onças nas ramadas das árvores e formigas-vermelhas em carreiro pelo chão – ambas igualmente capazes de dar cabo de uma vida humana.
Lucas Alves, o biólogo, avança agora mata dentro. Leva uma catana a tiracolo e assegura que, na selva, a sobrevivência depende muitas vezes de um objeto cortante. Vai parando junto às árvores e explica para que serve cada uma delas: esta retira as comichões, aquela é antídoto para a febre, há outra que ajuda a cicatrizar.
Às tantas vai reconhecendo os trilhos dos tatus, depois bate com a faca numa árvore para ver as formigas emergirem de um buraco na casca. Eis alguém que conhece as dinâmicas da terra amazónica. "Uma vez, quando era miúdo, perdi-me com o meu primo nestas matas. Já nos estávamos a preparar para passar uma noite na selva, mas acabámos por conseguir encontrar o caminho até à canoa. As nossas mães estavam em pânico, a selva aqui engole tudo, até os homens."
Uns quilómetros acima do bar Por do Sol há prova disso mesmo. Quando se entra no Ariaú, um dos muitos cursos de água que compõem o Alto Amazonas (e que liga os dois principais cursos da bacia, o Rio Negro e o Solimões), dá-se de caras com as Amazon Towers, um hotel de que a selva tomou conta. Foi um sonho megalómono de hotelaria construído nos anos oitenta e que fechou portas em 2015. Tinha mais de 600 quartos, albergou estrelas de Hollywood e serviu de cenário ao filme Anaconda. Mas a floresta tornou-se demasiado poderosa para o empreendimento turístico triunfar.
Shéu, o caboclo que é dono do bar flutuante, assegura que não poisou os pés em terra firme mais de três vezes na vida – e tem 71 anos e 15 filhos, todos nascidos em cima da água. "A Amazónia está viva em todas as partes", diz com os olhos semicerrados. "Cada ser tem de saber o lugar que ocupa e não ocupar o espaço dos outros, seja árvore ou bicho, caboclo ou índio." Ele prefere levar a vida ali, no embalo da maré. O mundo há-de chegar-lhe de barco – e isso basta-lhe.
O perfeito esconderijo
Quanto mais Amazonas se sobe, mais denso o arvoredo e menor a população.À medida que os dias passam e a embarcação se afasta de Manaus, vão-se tornando raras as comunidades ribeirinhas. Em vez disso, começamos a entrar nos territórios indígenas, simultaneamente protegidos e ameaçados. Avança-se contra a corrente e alguns corpos despidos começam a assomar às margens.
Lá para diante hão de estar as tribos mais isoladas, que recusam qualquer forma de contacto com o mundo ocidental. Quem ali chegar sem aviso, corre o risco de ser recebido à flechada e ser devorado em rituais canibais. Mas, nas ilhas do Jaú, há povos que toleram a visita dos biólogos e dos povos caboclos.
Vai a manhã larga quando o barco atraca num povoado de casas construídas em adobe e madeira com telhados de palma. Aqui vive a tribo tatúyo, que fala a língua tucana – e apenas o curandeiro da tribo é capaz de se expressar em português. Os homens usam plantas acabadas de colher para cobrir o corpo e coroas de penas na cabeça.
As mulheres apresentam-se em tronco nu e saias feitas com produtos da floresta. Vivem habitualmente da plantação de yuca, da pesca do pirarucu e da caça às térmitas para sobreviver. Mas os tempos são de modernidade – e também eles tiveram de se adaptar.
De tempos em tempos, apresentam as suas danças rituais aos turistas e viajantes de ocasião. Recolhem por isso meia dúzia de euros, que lhes permitem ir à cidade comprar medicamentos ou outros produtos de primeira necessidade. A energia elétrica chegou há uns anos, graças a um gerador que alimenta toda a aldeia.
Há um pequeno transístor onde se ouvem as notícias do mundo. "Mas em tudo o resto estamos escondidos do mundo", avisa o líder, um homem chamado Yepassoné. Aquilo que verdadeiramente receiam, admite ele, é que o mundo ande à procura deles.
O curandeiro conta uma história que não é lenda. Desde o início da pandemia, os barcos começaram a descer da Colômbia carregados de cocaína e homens armados. Fechou-se o espaço aéreo e abriu-se uma autoestrada para o tráfico no Amazonas. Então agora os tatúyos andam com um medo novo. "Não nos bastavam os madeireiros e garimpeiros que nos vieram tirar as terras, agora também temos os traficantes com que nos preocupar."
Ao longo do dia, hão de dançar para os forasteiros, oferecer-lhes comida, sorrir-lhes constantemente. Falta o diálogo, mas depois acontece algo de extraordinário. Um grupo de miúdos agarra numa bola de futebol e corre para o topo do monte, onde está instalado um campo improvisado. Vão trocando passes e dribles e vão rematando à baliza, onde os mais novos tentam fazer as vezes de guarda-redes.
Vai-se gritando em tucano o que só podemos imaginar ser mote de combate futebolístico: "Passa." "Chuta." "Remata." Os forasteiros também entram em campo, que afinal o futebol é ele próprio uma língua. E, no meio da mais remota profundeza da Amazónia, é impossível não pensar que a humanidade se explica em todas as partes. Na história de uma floresta que tenta resistir e adaptar-se ao resto do mundo está a história de todos nós.
O Contacto tem uma nova aplicação móvel de notícias. Descarregue aqui para Android e iOS. Siga-nos no Facebook, Twitter e receba as nossas newsletters diárias.
