Reportagem. As vítimas na guerra da habitação
Reportagem. As vítimas na guerra da habitação
Prefere manter o anonimato, mas a sua história é igual à de muitas outras pessoas que procuram casa no Luxemburgo. A portuguesa chegou há um mês ao Grão-Ducado, para trabalhar numa empresa que goza de boa reputação no país, com contrato de trabalho indeterminado e salário acima do que a lei exige para trabalhadores qualificados. Apesar disso, algumas agências imobiliárias levantaram dificuldades. “Uma ainda fez um reparo, por causa da cláusula de seis meses [período de experiência], apesar de ser um CDI”, conta. Outra alegou que o salário era baixo – apesar de a renda ser paga a dois, por ela e pelo namorado.
Encontrar um apartamento foi mais duro que a entrevista de emprego. As agências exigiram-lhe cópias do contrato de trabalho, B.I. e folhas de salário. E fizeram-lhe perguntas pessoais que a chocaram. “Mais do que uma perguntou-me se eu estava grávida. Achei inacreditável”. Num dos casos, depois da visita, foi rejeitada por um senhorio português, “sem razão aparente” nem explicações. “Disseram-me só que ele mandou prosseguir com as visitas”, conta.
Quando finalmente encontrou um apartamento disponível – um T1 por 1.300 euros, fora as despesas de aquecimento, de 150 euros –, a agência exigiu-lhe mais cem euros para fazer a vistoria (“état des lieux”), um inventário dos móveis e dos eventuais defeitos do imóvel. Protestou: afinal, para que servia a comissão de agência que ia ser obrigada a pagar, um valor equivalente a um mês de renda? Da agência responderam-lhe que era pegar ou largar. E alegaram que os cem euros “até eram baratos”: haveria agências que cobravam mais. Com medo de não encontrar mais nada, a portuguesa cedeu.
O caso passou-se com a agência New Immo, sediada na capital luxemburguesa. O valor cobrado ficou escrito no contrato de arrendamento assinado pela portuguesa. “O estabelecimento da vistoria [no original, ’état des lieux’] será feito à entrada [no apartamento], como na saída (...), através do pagamento de um montante fixo de 100 euros mais IVA”. Um valor que acresce aos 1.300 euros de comissão de agência (mais IVA a 17%) que a portuguesa também teve de pagar. A este montante ainda há que somar os dois meses de garantia locativa.
O Contacto questionou outras agências a operar no Luxemburgo, fazendo-se passar por uma pessoa amiga de alguém à procura de apartamento, para saber se cobram a realização da vistoria, obrigatória em todos os contratos de arrendamento. Na MKA, responderam que cobram entre 150 a 250 euros pelo ’état des lieux’, dependendo da área do apartamento, mas garantiram que esse valor é pago pelo proprietário. Na Rockenbrod – que a agência em causa apontara como sendo mais cara –, a funcionária hesitou. Começou por dizer que cobram 250 euros pela vistoria, mas que esse valor é pago pelo proprietário. Mas perante as perguntas do Contacto, acabou por admitir que “depende” – da relação com o proprietário e das agências. “Há algumas que o fazem [cobrar a vistoria aos inquilinos], há as que não fazem. Não é uma lei”.
Desregulamentação
“Não é uma lei”, até porque não há lei a regulamentar o que pode ser exigido pelas agências, disse ao Contacto a jurista Aline Rosenbaum, da União Luxemburguesa dos Consumidores (ULC). “É verdade que não é claro, porque o contrato é feito entre o proprietário do apartamento e o agente imobiliário, e é neste contrato que devem ser estabelecidas as missões confiadas ao agente imobiliário. Tradicionalmente, consistem em procurar um candidato para ocupar o bem imóvel (inquilino) e servir de intermediário para concluir o contrato de arrendamento, e isto costuma incluir fazer o inventário (’état des lieux’)”, explicou a jurista.
A ULC não recebeu até agora qualquer queixa por causa do valor extra cobrado pelo inventário, mas tem “imensas por causa do arrendamento”. Em 2017, chegaram à ULC 980 queixas ou pedidos de informação de inquilinos – mais de três por dia. Entre os principais problemas estão tentativas abusivas de pôr fim ao contrato de arrendamento, por parte do senhorio, e problemas na restituição da garantia locativa, no final do contrato. “Na maioria dos casos, o imóvel é restituído em bom estado, e apesar disso não recebem a caução de volta”, explica a jurista.
Mas também chegam à ULC problemas com agências. “Há queixas de inquilinos desiludidos por terem recorrido a uma agência e depois terem contratos de arrendamento com cláusulas que não são conforme à legislação. ’Como é possível? Fui a uma agência, confiei neles, e afinal o contrato tem estas cláusulas’”, conta.
Que as agências defendam os interesses dos proprietários não surpreende, até porque o contrato é feito com eles. Esse é um dos paradoxos no Luxemburgo: apesar de a comissão de agência ser paga pelo inquilino, as agências representam os proprietários, como se vê nos contratos. As cláusulas são feitas à medida destes, segundo os seus interesses e pedidos, e apesar de alguns serem modificados a pedido do locatário – sempre com o acordo do senhorio –, em grande parte dos casos é assinar ou largar. O partido Déi Lénk (“A Esquerda”) propôs que a comissão de agência seja paga pelo proprietário, como acontece na vizinha Bélgica, mas a proposta ficou em águas de bacalhau.
Controlo de rendas não funciona
O contrato de arrendamento é regulado pela Lei de 21 de setembro de 2006 (Loi du 21 septembre 2006 sur le bail à usage d’habitation et modifiant certaines dispositions du Code civil). A lei estabelece o montante máximo de garantia locativa a prestar pelo inquilino (o equivalente a três meses de renda) e as condições em que pode haver despejo. Mas há uma disposição que a maioria das pessoas desconhece: uma cláusula que limita o montante máximo de renda que pode ser exigido.
Tão pouco usada é esta disposição que levou o jornalista Laurent Schmit, do jornal Reporter.lu, a ironizar: “Numa lista das leis menos eficazes, o diploma de 2006 sobre as rendas dos apartamentos estaria entre as dez primeiras. Praticamente ninguém sabe que as rendas são limitadas a um máximo de cinco por cento do capital investido por ano”.
O desconhecimento e a ausência de fiscalização não são os únicos problemas com a lei das rendas. A percentagem de cinco por cento foi estabelecida “de forma arbitrária”, denuncia o jornal. É que, apesar de as rendas no Luxemburgo serem altíssimas, ainda ficam abaixo do valor a que se chegaria recorrendo a esta cláusula. “Para um apartamento de 50 metros quadrados, que o proprietário compre por 500 mil euros, poderia exigir 2.080 euros por mês”, calculou um deputado do DP, em declarações ao Reporter.lu.
O burlesco da situação estende-se à fiscalização. Segundo a lei, os inquilinos podem pedir a redução do valor das rendas às Comissões das Rendas (“Comission des Loyers”), a funcionar nas localidades com mais de seis mil habitantes. Estas são responsáveis por calcular o valor máximo da renda permitido por lei e reduzir o montante pago, caso o preço seja excessivo. Mas são tão poucos os que recorrem a elas que se podem considerar inativas. Entre 2013 e 2017, as comissões da capital trataram entre 13 e 22 pedidos por ano. “É absurdo, tendo em conta que quase metade das famílias na cidade do Luxemburgo vivem em casas arrendadas, segundo o Statec”, denuncia também aquele jornal. Esch-sur-Alzette e Differdange confirmam o ridículo destes números: cinco a sete queixas por ano, segundo dados do mesmo jornal.
Com leis que não são aplicadas e a desregulamentação no setor, a balança continua a pender a favor dos proprietários e agências. Como dizia Lacordaire, “entre o forte o fraco, entre o rico e pobre, entre o patrão e o empregado, a liberdade oprime e a lei liberta”. Podia ter acrescentado “entre o proprietário e o inquilino”. Muitos são forçados a sujeitar-se ao que encontram. “Por causa da falta de alojamento, as pessoas têm tendência a precipitar-se: ’Tínhamos uma lista de pessoas atrás de nós em espera, se não aceitássemos haveria outros que aceitariam’”, conta a jurista da União Luxemburguesa dos Consumidores. Há mesmo quem conheça os seus direitos mas renuncie a exercê-los. “Há pessoas a viver em alojamentos insalubres mas que não ousam sair, porque não sabem para onde ir e se encontrarão um novo alojamento, ou se vão conseguir financiar uma nova garantia locativa e uma nova comissão de agência”, sublinha.
Encontrar casa: missão impossível
Uma semana depois do incêndio na residência onde vivia, em Esch-sur-Alzette, Sarah Gentili garante que as roupas ainda tresandam a queimado. “Até o meu computador cheira a fumo”, diz a estudante luxemburguesa, filha de mãe portuguesa e de pai de origem italiana. A estudante da Universidade do Luxemburgo estava no quarto da residência universitária na rua do Canal quando o alarme de incêndio disparou, e reconhece que ainda está traumatizada. O fogo não provocou vítimas nem danos avultados, tirando os deixados pelo fumo que invadiu o edifício. Sarah mostra fotos do quarto depois do fogo: das paredes aos lençóis, ficou tudo amarelo. A Universidade realojou os estudantes, mantendo o preço que pagavam: 425 euros por mês, por um quarto com cozinha partilhada. Agora, Sarah está num estúdio. “Para um estudante, 425 euros é caro, mas se fosse um contrato normal, pagava mais do dobro”, diz.
Quando acabar o mestrado, esta estudante de Literatura francesa teme ser obrigada a sair do país para conseguir casa. “Toda a gente me aconselha a ir viver para o outro lado da fronteira, por causa dos preços. Mas não devia ser preciso deixar o país. Eu quero mesmo viver aqui, adoro o Luxemburgo”.
Cidália Fonseca também já pensou em deixar o país e voltar para Portugal. Desde que o senhorio da casa onde vive há dez anos vendeu o apartamento, em Ettelbruck, não consegue encontrar nova morada. “Ando nisto desde abril, e quando não me dizem ’não’ na cara, telefonam-me da agência a dizer que não”, conta ao Contacto. O problema, segundo a imigrante de 50 anos, é o trabalho: é assistente parental e todos os dias tem crianças em casa. “Quando voltei de férias ligaram-me de uma agência a dizer que afinal não podia ser, porque eu guardava crianças. Falei diretamente com o proprietário, era luxemburguês, e ele ainda teve a lata de me dizer que se fossem cães ainda concordava, agora crianças, não”. Revoltada, Cidália começa a chorar. Tem um rendimento acima da média e nem assim consegue encontrar casa. “Já fui falar com o burgomestre, já fui falar com a assistente social, e ela disse que não me pode pôr na lista porque eu trabalho”, queixa-se. “Não é justo porem animais à frente de crianças. Pago os impostos, pago a renda, dá a sensação que é um trabalho ilegal”. Direito à habitação é que, para já, Cidália não parece ter, e com ela milhares de pessoas.
Paula Telo Alves
