O jogo das identidades
O jogo das identidades
O conceito de identidade tão omnipresente nas nossas sociedades foi uma preocupação tardia nas ciências sociais. A primeira referência conhecida ao palavrão é registada em 1968, na “International Encyclopedia of the Social Sciences”, a entrada refere-se a uma investigação de autoria de Erik Erikson, que tem como tema a identidade psicossocial dos adolescentes e as mudanças e tensões surgidas nesse período da vida dos jovens.
Hoje todo o planeta parece estar em choque por causa das diferenças de identidade, que anteriormente não eram pensadas a partir da expressão desse conceito.
A criação dessas identidades é uma construção social em que as suas fronteiras são criadas por correlações de força e ideologias, mais do que por realidades inscritas na pedra. Nos livros da religião cristã, Deus criou o mundo nomeando as coisas; na realidade social, a opressão e a desigualdade dos humanos muitas vezes é o maior produtor de identidades.
É relativamente evidente que o racismo não é produto de “raças”- identidade que não tem sustentação real na biologia – mas é absolutamente verdade que essas raças inventadas são produto do racismo.
Em 2016, um estudo, da autoria de Ineke Pit-ten Cate e Sabine Glock, demonstrava que os professores tendiam a enviar os alunos portugueses para o ensino técnico, em vez de os enviarem para o ensino clássico, que estaria reservado, na prática, sobretudo aos luxemburgueses. A investigação baseada na monitorização das reação dos professores a 38 perfis fictícios mostrava que estes tomavam uma decisão mais acertada em 90% dos casos, quando os alunos eram luxemburgueses, e apenas tomavam a decisão mais correta em 67% das vezes, nos casos em que eles eram portugueses.
Como é óbvio não há nenhuma diferença de capacidade cognitiva entre portugueses e luxemburgueses, existe é um sistema de ensino que, muitas vezes, reproduz e mantém uma diferença social, que no Grão-Ducado, coincide com uma diversidade de origem nacional. Os imigrantes e os estrangeiros são os trabalhadores que estão na base da escala social.
Perante um país que tem metade de gente que não tem a nacionalidade luxemburguesa e que fala outras línguas, o sistema de ensino, para cumprir a função de incluir, tinha que se transformar radicalmente. Infelizmente, escolheu ser sobretudo um mecanismo de triagem: o que faz que para muitas pessoas o sistema de ensino luxemburguês é uma barreira e não um elevador social.
Num recente debate, no quadro da comemoração dos 40 anos da ASTI, foi discutida a tese da investigadora Heidi Martins, entrevistada nesta edição do Contacto, “Dinâmicas de (des)pertença no curso da vida: o caso dos portugueses de ‘segunda geração’ no Grão-Ducado”. A certa altura da conversa alguém fez uma oposição entre o percurso de um luxemburguês de origem portuguesa , como Félix Braz, que chegou a vice primeiro-ministro do Luxemburgo e de Steve Duarte que acabou preso por combater nas fileiras dos terroristas do Estado Islâmico. O primeiro seria um caso de integração com sucesso na sociedade de acolhimento e o outro seria a expressão de um insucesso. Nenhum deles ficou nas suas comunidades nacionais de origem. O ex-ministro conseguiu participar com cidadania plena na sociedade em que vive; o filho de imigrantes portugueses Steve Duarte globalizou-se de outra forma e acabou preso num campo das forças curdas no norte da Síria.
É nesta altura que se vê que as identidades são móveis e são ditadas pelo jogo das conveniências.
“Steve Duarte nasceu no Luxemburgo, cresceu no Luxemburgo e radicalizou-se no Luxemburgo. Somos por isso obrigados a assumir as nossas responsabilidades”, disse em novembro do ano passado a ministra da Justiça Sam Tanson no Parlamento. As declarações de Tanson, sobre a possível extradição para o Grão-Ducado, contradizem a posição que o ministro dos Negócios Estrangeiros luxemburguês, Jean Asselborn, tinha dado em junho de 2019, ao Luxemburger Wort: “Steve Duarte é um cidadão português e por isso não é responsabilidade nossa.” Já o próprio não tinha duvidas à cerca de quem era, em entrevista à RTP, o jihadista reiterou o que já tinha dito antes ao canal de televisão curdo Rudaw: “Quero ser julgado e cumprir pena no meu país, o Luxemburgo.”
Como explicava Einstein, muitas vezes a nossa aceitação, depende do êxito: “Se a minha teoria da relatividade estiver correta, a Alemanha dirá que sou alemão, e a França, que sou cidadão do mundo. Mas se eu estiver errado, a França sustentará que sou alemão, e a Alemanha garantirá que sou judeu.”
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