O inferno de Christian Faber abusado por um padre em criança no Luxemburgo
O inferno de Christian Faber abusado por um padre em criança no Luxemburgo
Christian Faber tinha seis anos quando sofreu a mais violenta mudança que uma criança da sua idade pode ter – separou-se dos pais, bateleiros de profissão, e da liberdade do mar, embalada pelo barco Mesulina, a sua casa, foi viver num internato masculino St François, em Grevenmacher. Foi o preço a pagar para iniciar o seu percurso escolar.
Longe dos pais, os seus novos colegas – alguns deles também filhos de marinheiros – e as freiras Franciscanas da Misericórdia passaram a ser a sua nova família. Durante os seis anos seguintes aquele instituto da igreja foi a sua casa. E o seu inferno. Foi ali que ele e outros meninos foram abusados sexualmente pelo capelão. O padre P. é o culpado pelas “décadas futuras de dor recalcada”. E deste “trauma” sem fim, que ainda hoje atormenta este luxemburguês de 59 anos.
Ao falar dele o seu rosto fecha-se e as mãos tremem denunciando a aversão pelo abusador da infância. Depois das aulas, era este clérigo – uma das figuras mais importantes da vila de Grevenmacher – que ficava a supervisionar o período do “silêncio”, quando os alunos faziam os deveres. Acabado o tempo, “ele dizia ‘podem sair todos, menos tu’. Era eu”. Então ficávamos os dois sozinhos na sala e era onde tudo se passava”.
Este luxemburguês perdeu a conta às vezes que ali foi vítima de violência sexual às mãos do capelão. “Este é um segredo só nosso, não pode ser contado a ninguém”, avisava-lhe sempre o padre P., depois de abusar do inocente interno. Não foram apenas toques íntimos condenáveis, com o pequeno uniforme meio despido. “Foi tudo, incluindo violação”, conta Christian Faber ao Contacto com o olhar crispado.
Só que, naquela altura, a “ingenuidade de criança” não o fez disparar nenhum alarme interior. “Naquela idade não conhecia nada, não se tem experiência nenhuma, e vivíamos ali isolados do mundo, só rapazes, por isso, pensava que seria algo normal. E como ele pedia segredo, respeitava. Nunca contei a ninguém, nem aos meus colegas, nem aos meus pais”, diz. Os alunos de Saint François não tinham conhecidos fora da instituição. “Quando saíamos éramos gozados pelos outros, por andarmos de uniforme, era horrível, muito duro”, relembra.
Mas os abusos sexuais não eram cometidos apenas por aquele clérigo, cuja foto Christian Faber guarda nos dossiers da sua “guerra contra a Igreja” Católica e que revela um homem de rosto magro e olhar vazio, na sua batina preta.
“Numa noite, uns internos mais velhos foram à minha cama e acordaram-me. Obrigaram-me a beber qualquer coisa, eu não sei o que era, e depois não me lembro mais nada. Felizmente. Não sei se o padre terá participado. Felizmente, que não guardo na memória nada daquela noite também”, diz Christian Faber, num jeito aliviado.
Luta contra a Igreja
O retrato consta de um recorte de jornal, entre dezenas, a par com outros tantos documentos e cartas, que compõem três gordos dossiers que o luxemburguês traz consigo para o encontro com o Contacto. Ali está tudo, preto no branco, entre memórias do instituto, as batalhas que tem travado com a Igreja e a “guerra” que prepara agora, para que seja feita “justiça às vítimas dos abusos na Igreja do Luxemburgo”.
O inferno, como o próprio define o tempo que passou em St. François, deixou-o aos 12 anos, em 1975, passando então a ir morar com a sua avó, já idosa, a frequentar o liceu, e finalmente, a entrar no mundo ‘normal’, sem portões e uniforme. “Só nessa altura é que percebi que existiam relacionamentos heterossexuais entre rapazes e raparigas, já viu a loucura?”, dispara indignado.
Mas este filho de bateleiros não foi a única vítima do capelão, como veio a saber muitos anos depois, após ter revelado a sua história, em 2019. “Foi quando me telefonaram colegas meus, na altura, a confidenciar que também foram abusados por esse supervisor”. E, soube, pelo menos, de outro interno que frequentou o instituto antes dele, que também foi vítima do mesmo agressor. Depois, desde que começou a luta por justiça pelas vítimas de abusos pela Igreja no Luxemburgo, já o contactaram 12 antigos internos que passaram pelo mesmo sofrimento naquela instituição em anos distintos.
"Memória de dor"
Christian Faber deixou o internato das freiras franciscanas aos 12 anos e, até aos 45, a sua mente recusou-se a reviver o horror vivido na infância. Chama-lhe uma “memória de dor, de sacrifício”, que manteve em segredo absoluto, pois as palavras do padre ainda exerciam poder: “Este é um segredo só nosso”. Os abusos estiveram guardados “bem fundo”, porque “me recusava a sofrer”, mas as sequelas psicológicas estavam à solta e perigosas. Lidou com a “depressão” e viveu sem “autoestima” anos a fio. Há cerca de 14 anos começou a beber demais e “foi quando os fantasmas apareceram, as recordações dos abusos a assombrar-me”.
Não conseguiu mais resistir. “Senti um desejo de falar. Tinha de contar o que sofri e contei à minha mulher. Desatei a chorar e disse-lhe ‘fizeram-me muito mal’. Foi a primeira vez que desabafei. Ela tem sido um grande apoio e disse logo que eu tinha de procurar ajuda psicológica. Foi o que fiz”.
Desde então, os anos têm sido passados em consultas de psicologia, tratamentos de psicoterapia que o têm ajudado muito a lidar com as memórias infernais e já tem resolvido o problema do álcool. Quanto ao padre P. nunca mais o viu na vida. “Não me voltei a cruzar com aquele padre, nem apresentei queixa contra ele, pois ele já faleceu”. “Ele fumava e bebia muito e acho que a sua morte teve a ver com esses excessos”, comenta sem qualquer sinal de pesar.
Uma longa batalha
Antes tarde do que nunca e esta vítima decidiu então lutar por um reconhecimento da crueldade que lhe foi infligida na Igreja. Começou por fazer queixa ao Ministério Público contra os responsáveis do Instituto St. François, de Grevenmacher. “As transgressões sexuais que disse ter sofrido durante o período de 1969 a 1975 são de uma gravidade indesculpável e absolutamente inaceitáveis”, escreveu o Procurador de Estado Adjunto, Doris Woltz, na sua resposta, explicando, no entanto, que os factos “tinham já prescrito há muito tempo”, não havendo possibilidade de iniciar um processo legal.
Em 2010, a Igreja Católica do Grão-Ducado decide criar um Centro de Assistência para Vítimas de Transgressões Sexuais e Físicas, com contactos, a “Hotline Cathol” uma linha telefónica direta e um endereço de email. Christian Faber escreveu-lhes relatando o seu caso.
Exigiu ser reconhecido como vítima e pediu à Igreja uma indemnização para pagar os tratamentos das sequelas psicológicas, grande parte dos quais não são comparticipados. “Assumiram que eu tinha sido uma vítima, mas que os factos não eram assim tão graves que justificassem uma indemnização”, diz Christian Faber revoltado.
“Como não foi assim tão grave!? O que se passou no internato traumatizou-me para sempre, roubaram-me trinta anos de vida”, vinca, indignado.
"Roubaram-me décadas de vida"
Em 2012, o arcebispo de Luxemburgo, Jean-Claude Hollerich, decide num ato de “penitência” da Igreja pagar uma indemnização, até um valor máximo de cinco mil euros, às vítimas de violência sexual cometida pelos seus representantes, em reconhecimento pelos danos sofridos. Um apoio dado a quem sofreu crimes que já prescreveram. No decreto arquiepiscopal está explícito que caberá ao autor da agressão pagar esta atribuição, mas se tal não for possível, a Igreja avançará com o montante por ela decidido. Por outro lado, esta atribuição é independente de qualquer reembolso para despesas terapêuticas.
Christian Faber faz novo pedido de indemnização, em 2013, que desta vez, é aprovado e recebe o montante máximo atribuído, cinco mil euros. Mas este valor não é suficiente nem para todos os gastos terapêuticos, nem para “devolver a honra das vítimas” de tais atrocidades cometidas por clérigos ao longo de tantos anos, como diz ter frisado pessoalmente ao arcebispo do Luxemburgo, numa audiência que teve com este responsável há uns anos.
“Roubaram-me décadas da minha vida”, salienta, enquanto procura mais documentos para provar que a Igreja do Luxemburgo não avança com o que deve realmente fazer: “A criação de uma comissão independente para estudar todos os abusos cometidos pelos seus membros desde há décadas até hoje”.
O Luxemburgo tem de seguir o exemplo de outros países, como França e Portugal, ou cidades como Munique, que realizaram ou estão a realizar investigações por comissões exteriores à Igreja, defende este luxemburguês. “Esta é a minha guerra com a Igreja” e foi este o objetivo da sua reunião com o arcebispo Hollerich, também cardeal.
“Parece-me não haver vontade da Igreja do Luxemburgo para avançar com uma comissão externa”, critica. E justifica: “O problema é que este é um país muito pequeno, onde todos se conhecem e onde a Igreja e Estado estão intimamente ligadas, o que ainda torna tudo mais difícil”.
O próprio Papa Francisco tem apoiado a criação destas comissões independentes para estudar os abusos na Igreja Católica, vinca.
Carta ao primeiro-ministro
Christian Faber escreveu também uma carta ao primeiro-ministro Xavier Bettel, que é também o ministro dos Cultos, reivindicando o mesmo, depois de muito esperar por uma audiência. Na missiva, datada de outubro de 2019, e onde não poupa duras palavras à Igreja, esta vítima alertou o chefe do Governo para a “proximidade perigosa” que existe, no facto de ser a própria Igreja a clarificar a verdade sobre a violência sexual na sua própria comunidade. Uma Igreja que “junta todas as suas forças contra as indemnizações às vítimas de pedofilia”, vincou a Xavier Bettel por escrito.
“Se existe uma vontade real de clarificação, que seja nomeado um comissário para os abusos cuja missão fique sob a responsabilidade de um organismo independente e sobretudo neutro”, pediu Christian Faber.
Faber ousa ainda criticar o próprio Bettel. “Como eu escrevo na carta, nunca houve da parte de nenhuma instituição estatal, nem dele, uma palavra de compaixão, de desculpa para com as vítimas da Igreja, como fez, aliás, a primeira-ministra da Dinamarca que pediu perdão em nome dela e de todo o estado”: “O primeiro-ministro nunca me respondeu”.Mas, mais do que qualquer pedido de desculpa, Christian Faber anseia é por “justiça”. “A minha guerra é a justiça para connosco”, diz inabalável.
Ajudar outras vítimas
“Recebo muitos contactos de vítimas que não se queixam à Igreja porque não confiam e dizem-me que pensam que não vai valer de nada. Preferem contactar-me e isso acontece desde o meu relato, em 2019”, revela o luxemburguês. “Pelo menos, 25 vítimas” já o procuraram desde então, e todas “estão do meu lado na luta pela criação da comissão independente que apure a verdade sobre a história dos abusos sexuais na Igreja no Luxemburgo”.
Christian Faber está agora fortemente envolvido na criação de uma associação de apoio às vítimas de abusos sexuais, não só no seio da Igreja, mas em geral. A fundadora da futura associação é a portuguesa Ana Pinto, e como frisa o luxemburguês “estamos a preparar tudo para que a associação nasça o mais rápido possível”. Uma das missões “é pressionar a Igreja e o Governo para avançar com a comissão independente para o estudo sobre os abusos na Igreja Católica desde há décadas e ao mesmo tempo defender e apoiar todas as vítimas”, refere. A dor profunda que quase engoliu a sua vontade de viver durante anos é “sentida por muitas das vítimas da Igreja, num sofrimento silencioso, e eu sei o que isso é”.
A posição da Igreja
A reivindicação desta vítima de um clérigo pode vir a ser uma realidade no Luxemburgo. “A posição atual da Igreja Católica no Luxemburgo é que um estudo, semelhante ao de Munique ou Colónia, não é excluído em princípio. A arquidiocese está a estudar as possibilidades e irá coordenar-se com as dioceses vizinhas”, declara ao Contacto Gérard Kieffer, porta-voz da Arquidiocese do Luxemburgo.
Estas investigações alemãs, tal como a que decorreu a nível nacional em França e está a realizar-se agora em Portugal, foram todas solicitadas pela Igreja Católica e desenvolvidas por especialistas com total independência. Todas revelaram centenas ou mesmo milhares de crianças e adolescentes vítimas de abusos cometidos por outras tantas centenas de membros do clérigo ou trabalhadores da Igreja durante várias décadas até recentemente.
Gérard Kieffer recordou também que o vigário geral Patrick Muller, responsável pelo dossier na arquidiocese, já tinha se “expressado positivamente sobre a criação de um ponto de contacto independente e neutro para casos de abuso em instituições com crianças e adolescentes no Luxemburgo”.
Igreja. 11 denúncias em 2021
Desde que a “hotline Cathol” para as vítimas de abusos no seio da Igreja iniciou a sua atividade, em 2010, que a Igreja tem revelado o número de casos ali denunciados e as indemnizações pagas.
Em 2021, 11 vítimas contactaram este serviço, oito homens e três mulheres, revela o relatório divulgado nesta terça-feira. Uma delas já era maior de idade à altura das agressões, sendo considerada uma pessoa vulnerável. “Dez sacerdotes/religiosos e uma pessoa exterior ao contexto eclesiástico foram citados como perpetradores das agressões”, que ocorreram entre 1940 e 2009. Quatro das vítimas foram indemnizadas.
Em 2020, houve contacto de duas vítimas, ambas do sexo masculino. As agressões que tiveram lugar entre 1960 e 1969 foram cometidos por três sacerdotes/religiosos e outra pessoa, segundo denunciaram. “Uma outra pessoa denunciou ter sido vítima de violência física e psicológica por parte de uma mulher religiosa”. Três vítimas receberam indemnizações, relativas a casos comunicados em 2018 e 2019.
Neste ano, um padre do Luxemburgo foi proibido de exercer o ministério sacerdotal em público, bem como de estar sozinho com menores, após a conclusão de um processo.
Em 2019, houve seis vítimas a recorrer há “hotline Cathol” para denunciar abusos sexuais cometidos quando todas tinham entre seis e 12 anos e entre 1940 e 1979. Três “sacerdotes ou religiosos” e uma outra pessoa foram identificadas como perpetradores. É a partir deste ano que a arquidiocese passa a divulgar anualmente as denúncias e indemnizações.
Um total de 24 vítimas contactou este serviço entre 2011 e 2018. Já em 2010, ano em que estes meios de apoio entraram em atividade, 138 pessoas telefonaram para a nova linha de apoio e destas 109 denunciaram ter sofrido atos de violência no seio da Igreja, 39 das quais denunciaram abusos sexuais. Foram encaminhadas 114 denúncias para o Ministério Público. As vítimas que contactam a linha telefónica direta são atendidas pela psicóloga Martine Jungers, também ela responsável pelo tratamento da correspondência eletrónica.
Contactos da “hotline Cathol” para vítimas de abusos: Através do telefone 621 676349 (sextas das 9h às 11h), ou através do email fir-iech-do@cathol.lu.
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