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O dono de um bairro é a pessoa que mais o ama
Opinião Luxemburgo 3 min. 04.02.2023
A fava

O dono de um bairro é a pessoa que mais o ama

Opinião Luxemburgo 3 min. 04.02.2023
A fava

O dono de um bairro é a pessoa que mais o ama

Ricardo J. RODRIGUES
Ricardo J. RODRIGUES
As cidades também se estão a tornar todas iguais umas às outras, com as mesmas lojas e as mesmas marcas, com as mesmas ruas pedonais e os mesmos bares, onde se ouve a mesma música e nos sentamos em sofás com o mesmo design.

Quanto mais viajo, mais sinto que as cidades se estão a tornar todas demasiado iguais. Uma vez explicaram-me que, seja em que parte do mundo for, os aeroportos são monotonamente semelhantes uns aos outros por um motivo muito específico. Se pensarmos que as viagens de avião são cápsulas que nos transportam rapidamente entre as mais contraditórias geografias, os lugares de onde descolamos e aterramos cumprem a função de nos orientar minimamente e reduzir os choques culturais que estamos prestes a viver. São ligações iguais entre mundos diferentes.

As viagens são hoje tão rápidas que precisamos desses espaços de transição. Júlio Verne escreveu em 1872 uma das obras essenciais da literatura propondo uma volta ao mundo em 80 dias. Em 2005, um avião monomotor conseguiu circular o globo pelo Trópico de Câncer em apenas 67 horas. Um avião comercial poderia cumprir a distância ainda mais rápido, se não tivesse de parar para abastecer combustível. Mas o voo direto mais longo do planeta chega bem para o argumento: liga Singapura a Nova Iorque em 18 horas e meia e, ainda que o passageiro tenha cumprido 15,349 quilómetros em menos de um dia, transitando entre realidades divergentes, o ponto de partida é igualzinho ao ponto de chegada.

A eficiência da velocidade dos transportes obrigou-nos a criar não-lugares antes de chegarmos aos lugares. O problema é que esse fenómeno de réplica global a que assistimos nos aeroportos já não se cinge a eles. As cidades também se estão a tornar todas iguais umas às outras, com as mesmas lojas e as mesmas marcas, com as mesmas ruas pedonais e os mesmos bares, onde se ouve a mesma música e nos sentamos em sofás com o mesmo design, bebemos as mesmas bebidas, provamos os mesmos pratos, dançamos as mesmas batidas. Seja em Lisboa ou no Luxemburgo, Nova Deli ou Nova Iorque, Tóquio ou Joanesburgo. É o capítulo urbano da globalização – chama-se gentrificação.

A eficiência da velocidade dos transportes obrigou-nos a criar não-lugares antes de chegarmos aos lugares.

Em Boston, capital do estado norte-americano do Massachusetts, vi há dias um dos melhores casos de resistência a esse fenómeno que vai tornando as cidades em extensões de aeroportos. O bairro de North End é um dos mais pequenos da cidade, mas também é um dos mais movimentados. Informalmente é conhecido por Little Italy, e mais de metade dos seus residentes têm origem italiana. As ruas estão apinhadas de pizzarias e restaurantes napolitanos, pequenas lojas de conveniência onde vende um pouco de tudo, livrarias onde se importam originais do outro lado do Atlântico – e uma pastelaria que se orgulha de ter os melhores ‘cannoli’ da cidade, talvez até dos Estados Unidos, e que concentra filas que dão uma volta inteira ao quarteirão.

Numa loja de vinhos, um velho italiano explicou-me o North End. Desde o século XVIII que o bairro dos imigrantes está na moda, e a pressão para enchê-lo de lojas das grandes marcas, hotéis de cadeias multinacionais e restaurantes de comida do mundo é hoje maior do que nunca. Mas os italianos organizaram-se, muitos decidiram não vender as suas propriedades, quase todos votaram para eleger os seus próprios representantes. Defenderam o bairro que amaram e por isso o North End é deles. É de Boston, aliás. Se não se tivessem defendido com o voto, explicou-me o velho da loja de vinhos, viveriam também eles numa extensão de aeroporto.

(Grande Repórter)

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