Na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza
Na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza
Nem só de pão vive o homem – nem os sem-abrigo que chegam à associação Esperanza, em Bonnevoie, na capital luxemburguesa. À terça e à quinta, a partir das 19h30, os voluntários da igreja evangélica protestante servem sandes e sopa quente a requerentes de asilo e a quem vive na rua. "Há quem diga que é a melhor sopa portuguesa do Luxemburgo", brinca Nuno Almeida, um dos responsáveis da associação, formada por várias confissões religiosas. Mas a comida não é o único chamariz: nessas noites os doentes que não têm segurança social podem recorrer aos médicos e enfermeiros da organização não governamental Médicos do Mundo, que presta cuidados de saúde a imigrantes em situação precária, e por lá também passam alguns portugueses.
"Temos alguns sem-abrigo e requerentes de asilo, mas também pessoas numa situação tão precária que o pouco que teriam de pagar nas urgências dá-lhes para comprar um pão, e preferem não ir", explica o enfermeiro Serge Depotter, voluntário na ONG.
Por ali passam doentes "a precisar de ser suturados, por causa de quedas ou de violência", gente que dorme ao frio e tem dores musculares, pessoas com problemas de saúde mental. "A pobreza dá além de tudo um grande mal-estar social e psíquico: muitos não sabem onde vão comer ou dormir. Em alguns casos, a situação psíquica é muito má", diz o enfermeiro.
Seja qual for a doença, os meios da ONG são limitados. "Como trabalhamos com medicamentos doados, temos um stock limitado, e não podemos, como um médico, receitar um tratamento específico. Vemos entre o que temos o que é mais adequado".
Elsa Gomes tem dor de dentes mas não tem dinheiro para ir ao dentista. Está à espera para falar com um dos enfermeiros da ONG. Já teve consulta marcada, mas a lista de espera ronda as semanas e no dia combinado, esqueceu-se. Agora, só em meados de Fevereiro, diz-lhe o enfermeiro Ralph Hanck. O enfermeiro lembra-se de Elsa, que não pára de pressionar a cabeça com as mãos. "Ça va mieux, la migraine?" ("está melhor da enxaqueca?"). "Um pouquinho", responde Elsa em português. "Eu compreendo um bocado, mas falar é complicado, bloqueio", explica Elsa à jornalista. "Só fiz a quarta classe, e agora com 50 anos tenho vergonha de ir para a escola aprender francês, tenho muitos complexos...".
"Tem um número de telefone?", pergunta o enfermeiro, em francês. O número serve para avisar os doentes em lista de espera quando chegar o dia da consulta no dentista no Centro Hospitalar do Luxemburgo, mas Elsa não o sabe de cor. "O Zé sabe o meu número, onde é que está o Zé?".
Zé, aliás José Santos, é o namorado de Elsa. Tirando o momento em que Elsa sobe ao primeiro andar para marcar a consulta, não se largam um minuto. Há três meses que estão os dois a viver no Foyer Don Bosco, um abrigo onde a maioria dos residentes são requerentes de asilo, mas já estiveram a dormir em tendas durante sete meses no ano passado, ao pé do Foyer Ulisses, o albergue para sem-abrigo de Bonnevoie. Antes, José já dormiu "debaixo de um banco de jardim".
"Estava a trabalhar e a viver debaixo de um banco de jardim. Como não tinha contrato de trabalho, não conseguia que ninguém me alugasse um quarto", conta. "Trabalhei sempre nas 'interim' [empresas de trabalho temporário], hoje tens trabalho, amanhã não tens, hoje tens um quarto, amanhã já não. Estive em casa de família, e quando cheguei à situação de não ter dinheiro, fiquei na rua", diz.
Foi há seis anos que José veio viver para o Luxemburgo, aliciado por familiares que o convenceram que "um salário de 1.600 euros" era uma fortuna. "Nunca ninguém me disse que tinha de pagar 400 ou 500 euros para viver num quarto, sem ter direito a nada, isso nunca me disseram". Ao fim de três meses, acabou na rua. "A minha cama foi debaixo do banco, durante três meses, sem ter onde tomar banho, sem ter onde comer, nada". "E quem é que te deu a mão?", pergunta Elsa. Meses depois a portuguesa, que na altura vivia num quarto, também acabaria na rua, depois de o ex-companheiro ter sido preso por tráfico de droga. "Acabámos por juntar as nossas coisas".
Os dois gostam de contar a história de como se conheceram. Foi num café em Esch-sur-Alzette. Ao balcão com amigos, José, divorciado, queixa-se das mulheres. "Eu, mulheres, nunca mais!". Elsa, sentada numa mesa com uma amiga, tem um impulso e mete-se na conversa. "Tu deves estar muito queimado!". "Não sei o que me deu, alguma coisa mexeu comigo", recorda Elsa. Pouco tempo depois os caminhos de ambos voltam a cruzar-se. Descobrem afinidades. "A casa da minha falecida mãe não faz mais de 800 metros da casa da mãe dela", conta José.
De repente a conversa interrompe-se para ouvir o sermão do pastor da igreja evangélica. Os enfermeiros que distribuem senhas de atendimento aos imigrantes também param, por respeito para com a associação que lhes cede as instalações. De pé, um homem com ligaduras ouve o sermão. "Há muitos entre vós que vivem o Inferno na Terra, mas não é nada perto do que espera a humanidade se não se reconciliarem com Deus".
Elsa ficou viúva pouco tempo depois de chegar ao Luxemburgo, há dez anos, mas não se lembra de ter tido "um momento de paz na vida". José ficou sem pai com sete anos, perdeu a mãe aos 13, e teve de ir trabalhar para ajudar os irmãos. "Éramos 18, ninguém acredita, mas éramos 18 irmãos". No Luxemburgo garante que nunca recebeu "um tostão do Estado". "Eu já não sei o que é ter dinheiro, se me dessem 50 euros para a mão nem sabia o que fazer com eles", diz o português.
José aceita uma fatia de bolo servido pelos voluntários. Hoje não veio por causa das dores de cabeça nem das insónias ("são muitas coisas na minha cabeça"), veio só pela comida. A "sopa dos pobres" servida na associação "A Voz da Rua" a preços simbólicos deixou de estar ao alcance do casal. "Íamos antes, mas temos de pagar 50 cêntimos e agora não há dinheiro para ir".
Paula Telo Alves
