Está no ar a liberdade
por Ricardo J. RODRIGUES/ 21.05.2020
Tem estúdio montado em cima da ponte internacional de Echternach, entre o Luxemburgo e a Alemanha. A potência do emissor não permite um raio maior do que cinco quilómetros. As emissões são todas feitas por voluntários portugueses e luxemburgueses. E no entanto, nos dias confinamento, a pequeníssima rádio Aktiv tornou-se um exército pela liberdade de movimentos na Europa.
Beethoven no rio Sûre
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Eram duas da tarde de sábado quando o Hino da Alegria começou a ecoar na ponte internacional de Echternach. Georges Schmitz, luxemburguês de 50 anos, pegou nas colunas que estavam guardadas na cave do antigo posto da alfândega, levou-as para a rua e começou a emitir o seu programa para quem passasse. A antiga casa da guarda fronteiriça serve hoje de estúdio à Aktiv, uma rádio local que emite exclusivamente para Echternach e Echternacherbrück, do lado alemão da fronteira.
Ao microfone, o homem fazia brindes, regozijava-se com as mudanças, entrevistava transeuntes. Mesmo antes de terminar a transmissão, disse emocionado: “Sinto que acabámos de derrubar o nosso próprio Muro de Berlim.” E depois pôs a tocar “Another Brick in the Wall”, dos Pink Floyd.
Horas antes, a polícia alemã tinha desmontado as barreiras de controlo que impediam a entrada no país durante a pandemia de Covid-19. Ao longo de quase dois meses, os animadores da Aktiv tinham assistido à frustração de quem queria passar para o outro lado e não podia. “Foi uma violência enorme, porque esta comunidade é apenas uma. Echternacherbrück não é mais do que um bairro de Echternach, ainda que fique noutro Estado”, encolhia os ombros Schmitz. E depois puxava de um argumento que era dele e de uma comunidade inteira: “Como se alguma vez um vírus pudesse ser travado pela polícia.”
A onda que atravessa a ponte
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Echternach tem 5.671 habitantes, Echternacherbrück tem 939, e as duas povoações estão dividididas pelo rio Sûre. Uma boa parte dos que vivem na margem germânica trabalham no Luxemburgo, e é aqui que se abastecem de gasolina, tabaco ou bebidas. Na Alemanha fazem-se as compras de casa, muito mais baratas. E também é ali que se sai à noite, porque os bares têm horários mais alargados. Então há um vaivém constante entre os dois lados do rio, cumprido através de uma ponte de pedra.
Quando o calor se começa a instalar e os dias aquecem, essa ponte torna-se no centro da vida das duas comunidades. É de lá que arranca, na terça-feira de Pentecostes, a procissão dançante de Echternach – classificada pela UNESCO património imaterial da humanidade desde 2010. É também ali que todos os anos, no fim de maio, se realiza a Festa dos Vizinhos, com bancas de comida, bebida e música vindas dos dois lados do Sûre. Em 2020, no entanto, as celebrações de primavera foram substituídas pelas barreiras policiais.
A constestação foi imediata – e atingiu o pico a 9 de maio. No dia da Europa, o povo de Echternach e de Echternacherbrück juntou-se em cima do tabuleiro para protestar contra a falta de liberdade de movimentos imposta pela Alemanha. Vieram autarcas dos dois lados com discursos, veio o povo com bandeiras da União, miúdos que pintaram pedras de azul e amarelo e as depositaram em cima dos muros. Também veio música, e essa foi trazida pela gente da rádio.
Quem chega pelo lado luxemburguês, encontra a Aktiv no início da ponte. A rádio ocupa um edifício vetusto onde está escrita, em francês e alemão, a palavra alfândega. Tem emissões em português, luxemburguês, alemão, francês e inglês. E são ouvidas apenas em Echternach e Echternachbrück, porque a potência do emissor não permite um raio maior do que cinco quilómetros. “O objetivo da rádio foi sempre o de unir a comunidade”, diz Domingos Pereira, 62 anos, português de Vieira do Minho e fundador do projeto em 1996. Só que agora a comunidade estava partida ao meio.
“Antes do acordo de Schengen pera preciso passaporte, mas passava-se sem problemas. E agora não”, diz o homem. Queixa-se pela gente que durante dois meses não pode ver os familiares, pelos vizinhos que têm a casa de um lado e a garagem no outro, pela vida interrompida por causa de uma fronteira que lhe parece imposta sem sentido. “Fosse como fosse, tínhamos de unir os dois lados do rio.” Para as ondas hertzianas, afinal de contas, não há linhas impossíveis de ultrapassar. Foi então que a rapaziada da rádio começou a armar um pé de vento.
Lições de homens livres
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No dia 25 de Abril de 1974, Domingos Pereira saiu de casa por volta das dez da manhã e apanhou o elétrico em direção à Praça da Figueira, em Lisboa. “Eu tinha vindo para a capital aos 14 anos e trabalhava num restaurante nos Restauradores, mas o guarda-freios disse-me que não podia passar do Terreiro do Paço, que havia movimentações do exército.” Galgou a rua Augusta e o Rossio a pé, chegou com dez minutos de atraso mas lá abriu as portas do estabelecimento. Hora e meia depois, dois soldados vieram ordenar-lhe que fechasse e tornasse a casa. Estava em marcha uma revolução.
“Cheguei e liguei o rádio. Foi aí que percebi o que estava a acontecer. Diziam que o governo estava cercado no quartel do Carmo e então eu saí disparado a correr para lá”, conta. No bolso levava um pequeno transístor, e enquanto via o povo gritar vivas à liberdade no largo onde Salgueiro Maia cumpriu a revolução, ia encostando o aparelho ao ouvido para ouvir os comunicados oficiais. “E depois era aquela música que corria e antes era proibida, coisas que nunca pensei poder ouvir sem ser às escondidas.” Foi nesse dia que se apaixonou pela rádio, porque foi pela rádio que ouviu a chegada da liberdade.
Em 1976, decidiu emigrar para o Luxemburgo. “Havia em Echternach uma enorme comunidade proveniente da minha freguesia, Parada do Bouro, então foi para aqui que vim.” Nesses anos, a pequena cidade fervilhava com turistas, então trabalhou os primeiros anos na hotelaria. Com a quebra do setor, tornar-se-ia taxista. E teve sempre uma preocupação pela integração dos portugueses no Luxemburgo - durante anos, aliás, estive na direção de uma associação de emigrantes. Quando um grupo de amigos luxemburgueses lhe disse que estava a pensar fundar uma rádio, juntou-se à causa. O bichinho da rádio ganhava finalmente forma.
Passava músicas portuguesas, fazia entrevistas com cantores pelo telefone, recebia chamadas com discos pedidos. “E tentava dar informação útil às pessoas, explicar-lhes as burocracias, informá-los do que se passava no país. Estabelecer uma ponte, vamos.”
Passou o gosto à filha, Manuela Pereira, que é chefe de redação na Rádio Latina, e à mulher, Conceição, que é presidente da associação sem fins lucrativos que gere a Aktiv. A primeira rádio faliu em 2001, em 2003 abriram a segunda versão – a que continua em funcionamento. Um ano depois, já com o acordo de Schengen em pleno vigor, a câmara de Echternach cedeu-lhes o edifício da alfândega. As fronteiras tinham morrido, e não havia nada melhor do que uma rádio para tomar o seu espaço.
Quando a polícia alemã instalou as barreiras na ponte, Domingos Pereira ficou francamente incomodado. Era como se a terra que ele tinha tornado sua fosse agora amputada de uma parte. Passou dois meses sem poder ver os vizinhos do outro lado. Mas isso não significava que não pudesse estar com eles. No estúdio da Aktiv chegara a hora de construir uma nova ponte.
Uma pequeníssima revolução
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“Freedom”, de George Michael, “I Fought the Law”, dos The Clash, ou “Grândola, Vila Morena”, de José Afonso, nunca tinham passado tantas vezes na rádio Aktiv como na primavera de 2020. “Depois reforçámos o rock alemão, e as emissões nessa língua para que nos podessem ouvir do outro lado”, conta Luc Hurt, luxemburguês, 46 anos. É o responsável técnico e o homem que lê os noticiários. “Percebi que tivemos a ter um impacto enorme na Alemanha, com pessoas a mandarem mensagem para nos perguntarem que música era aquela, ou para comentarem os problemas que tinham com o fecho das fronteiras. Às tantas eu acordava às cinco da manhã com as notificações de que mais alguém nos estava a escrever.”
O hino da Europa passou a ser outra constante nas emissões. Aos microfones, Georges Schmitz ironizava: dava conta dos restaurantes que se mantinham abertos com serviços de entrega, explicava que eles podiam entregar em todo o lado, menos na outra margem do rio. Domingos chamava uma psicóloga ao programa, que falava nos efeitos psicológicos do coronavírus mas também nos danos que provocava uma separação forçada. “Sentíamos que tínhamos a rádio para furar o bloqueio”, conta o português. “Pelo menos ao microfone, a Europa continuava a ser a Europa.”
Para lugares como Echternach ou Echternacherbrück, uma barreira pode ser um trauma. A 16 de maio, quando os postos de controlo foram desmantelados, Georges Schmitz cumpriu uma promessa que tinha feito nos primeiros dias depois do bloqueio. “Armei-me em Papa”, brinca. Atravessou a ponte, chegou ao lado alemão, ajoelhou-se e beijou o chão. Depois deu meia volta e corda aos sapatos, voltou ao estúdio para fechar a emissão a derrubar o seu muro de Berlim com Pink Floyd. E nesse momento, uma pequena rádio que não tem mais de cinco quilómetros de alcance de frequência, tornou-se palco para o mais belo espetáculo do mundo: a conquista da liberdade.
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