UE está nas mãos da China e quer criar o "clube de matérias-primas críticas"
UE está nas mãos da China e quer criar o "clube de matérias-primas críticas"
Foi um primeiro despertar violento o que aconteceu na UE com a covid-19. Em pouco tempo, a Comissão Europeia percebeu que num território de 450 milhões de almas não havia matérias-primas essenciais. Com as dificuldades do comércio internacional e vários engarrafamentos de mercadorias, a União percebeu como estava dependente: consumia, mas não produzia.
O caso do paracetamol – nem um grama é produzido dentro da União Europeia – tornou-se emblemático. Mas agora que o continente se prepara para mudar para as energias renováveis e para a digitalização, a Comissão deu-se conta de que nada está assegurado se as fábricas europeias (muitas ainda em projeto), não tiverem as matérias-primas para produzir os equipamentos do futuro.
O segundo despertar violento foi quando em Bruxelas se percebeu que os países europeus estavam dependentes dos combustíveis russos – muitos quase a 100%, como era o caso da Alemanha com o gás natural. Para evitar que esse tipo de fatalidades futuras deixe a UE parada, sem fazer as duas transições – climática e digital – a Comissão Europeia propôs esta quinta-feira uma Lei das Matérias-primas Crítica.
A proposta será discutida no Parlamento Europeu e pelos 27 Estados-membros no Conselho Europeu, até chegar à aprovação final.
“Queremos ser líderes nas indústrias verdes do futuro”, disse na tarde desta quinta-feira Valdis Dombrovskis, vice-presidente da Comissão. "Para isso acontecer precisamos de assegurar que temos matérias-primas críticas. A sua procura vai-se multiplicar muitas vezes ao longo das próximas décadas”, sublinhou.
97% de magnésio vem da China
Dentro de sete anos – se o projeto da União de cumprir o Pacto Ecológico for conseguido – a necessidade de terras raras, usadas nas turbinas para energia eólica, vai aumentar entre 5 a 6 vezes. A utilização de lítio - um minério que todos já conhecemos, porque sem ele não há baterias elétricas – vai crescer 12 vezes até 2030 e 21 vezes até 2050.
“Contudo, não somos um continente de recursos, temos uma fração do que precisamos”, disse Dombrovkis. Pior, a fazer lembrar o pesadelo de abandonar o petróleo e gás russos, a Europa é dependente de um pequeno grupo de parceiros, ou até só de um parceiro para matérias-primas críticas: a China – com quem a UE tem relações complicadas.
O comissário do Mercado Único, Thierry Breton, fez uma apresentação didática do problema que a União enfrenta se quiser mesmo fazer a transição industrial. Muitas das matérias-primas essenciais para a vida contemporânea, para os smartphones, para os semicondutores, mas também para muitos produtos farmacêuticos e para munições, são, em muitos casos, provenientes de um único país.
Breton exibiu um pedaço de magnésio para mostrar que 97% deste minério provém da China, bem como o íman magnético usado nos computadores e nas turbinas. “Quando temos mais de 90% de dois componentes que são essenciais e são originários de um único país, imaginam que é urgente que atuemos”.
Além desta vulnerabilidade em relação a Pequim, a UE depende dos 98% do boro provenientes da Turquia – necessário para os ímanes permanentes e para os semicondutores. E 68% do cobalto usado em todo o mundo está num único país africano, a República Democrática do Congo – o cobalto é um elemento essencial nos setores da defesa e aeroespacial.
Um milhão de toneladas de terras raras no norte da Suécia
Para aliviar esta dependência externa, na proposta de lei que a Comissão apresentou na quinta-feira, prevê-se que até 2030 os minérios essenciais sejam em 10% extraídos de solo europeu e que 40% das matérias-primas críticas sejam processadas e refinadas nos países da UE (e não na China, como acontece agora). O objetivo é que 15% da reciclagem seja feita também na Europa, e não nos países do sul do globo. Este é o momento, exortou Breton, “de acabar com a ingenuidade e passar à ação”.
A guerra da Ucrânia aumentou a necessidade de tornar a UE menos dependente de países terceiros, mas o trabalho já tinha começado antes. Esse facto permitiu que a Comissão tenha agora “uma cartografia do subsolo [dos 27]". "Podemos dizer que temos recursos na Europa”, diz Breton, que recordou o convite do governo sueco estendido a todos os comissários: o de dormir num iglô no norte da Suécia. “Pois bem, muito perto de onde dormimos tinha acabado de ser encontrada uma jazida de um milhão de toneladas de terras raras”.
Mas há uma luta que vai ser desencadeada assim que as primeiras escavadoras tentarem remexer o subsolo: o conflito com a proteção da biodiversidade e dos santuários naturais. Breton diz que a Europa não pode continuar a atirar os seus problemas para os países em vias de desenvolvimento, fazendo lá os trabalhos sujos da mineração. Vai ter de encontrar e escavar recursos, procurando com as novas tecnologias e regulamentações provocar um mínimo de dano ambiental.
O texto da proposta inclui o aligeiramento de licenças para abertura de minas, cujos processos administrativos podem agora levar cinco anos. A ter em conta o que acontece em Portugal com a oposição das populações e dos ambientalistas à proposta de mineração de lítio na zona do Fundão, a corrida europeia ao novo ouro vai ser um grande desafio.
O clube dos países bons na corrida ao novo ouro
A Europa, no entanto, não consegue ser completamente auto-suficiente. Por isso vai continuar a importar matérias-primas de países terceiros, mas segundo Dombrovskis, num novo modelo. Em vez de apenas comprar os minérios em produto – entregando aos países um valor baixo – vai criar parcerias com esses países para que parte do refinamento seja feito localmente. “Terá que ser um processo de ‘win,win’, como me disse o presidente da Namíbia”, contou Breton.
Novas parcerias foram assinadas com o Canadá, com o Chile, Nova Zelândia, Cazaquistão e Ucrânia. E a Comissão está a trabalhar num acordo de comércio livre com a Austrália, bem como novos acordos com a Noruega, a República Democrática do Congo (RDC), o Ruanda e países da América Latina.
“Temos que usar as nossas forças tradicionais de criação de boas relações baseadas em confiança mútua e regras bem definidas”. Na corrida mundial a estas cadeias complexas de matérias-primas críticas, a UE joga contra um parceiro, a China, que está já a assentar arraiais em todo o mundo.
Para fazer face à pressão asiática, a UE está a criar um ‘clube de matérias-primas críticas’, como lhe chamou Dombrovskis, onde estarão os parceiros alinhados com o eixo europeu. São “todos os países interessados em fortalecer as cadeias globais de fornecimento, juntando os países consumidores e os países ricos em recursos para uma cooperação mútua e benéfica”.
O aspeto de ‘mútuo e benéfico’, foi acentuado pelos comissários encarregues da apresentação da nova proposta, considerando que esta é uma nova abordagem nas relações dos países consumidores, ricos e desenvolvidos do norte do planeta com os países ricos em recursos no sul, tradicionalmente espoliados.
O presidente da RDC ter-se-á queixado a Breton que “até ao presente os recursos têm sido uma extraordinária oportunidade, mas também causa de grande infelicidade. Porque são extraídos de forma brutal por parceiros que não têm em conta o valor ambiental ou preocupações de acrescentar valor local”.
Uma atitude colonialista que a Europa não quer perpetuar, segundo a Comissão. “A proposta que lhes fazemos tem três aspetos: audamos a avaliar o património e os recursos destes países, eles precisam deste ‘savoir faire’ e vamos também dar formação. Em segundo lugar, vão ser criados localmente os projetos de refinação. E em terceiro, vamos ajudar nas infraestruturas, que são as estradas, mas também na energia. O que se discute na Namíbia é como utilizar a energia solar, mas também a criação de hidrogénio. E estamos a fazer isto também com a RDC”, disse Dombrovskis.
O Contacto tem uma nova aplicação móvel de notícias. Descarregue aqui para Android e iOS. Siga-nos no Facebook, Twitter e receba as nossas newsletters diárias.
