Só cerca de 10% do gás armazenado está nas mãos dos governos europeus
Só cerca de 10% do gás armazenado está nas mãos dos governos europeus
A Europa tem trabalhado arduamente para encher as reservas de gás natural para o inverno, mas a verdade inconveniente é que os governos nacionais têm pouco ou nenhum controlo sobre essas reservas.
Apenas cerca de 10% do gás em instalações de armazenamento, da Itália aos Países Baixos, está sob o controlo direto dos Governos através de reservas estratégicas nacionais, segundo os dados compilados pela Bloomberg.
A larga maioria - cerca de 90% - está nas mãos de empresas comerciais internacionais, serviços de energia e grupos industriais, e as empresas são livres de vender a quem fizer a oferta mais alta, mesmo que seja noutro país. Isto significa que uma onda de frio na Alemanha poderia desencadear uma corrida ao gás nos seus vizinhos e pressionar a solidariedade da Europa no processo.
A rede de gás da região deverá funcionar, permitindo que os fornecimentos fluam entre os mercados. Desde que haja combustível suficiente no sistema, este deve equilibrar-se. Mas o sistema não tem funcionado num cenário como o da atual crise.
Gestão vai depender da severidade do inverno
"Os aspetos práticos do sistema nunca foram verdadeiramente testados antes", explica Graham Freedman, analista da empresa de consultadoria Wood Mackenzie. "Muito dependerá da severidade deste inverno".
Se estiver frio, os inventários poderão afundar-se abaixo dos 10% até ao final de março, de acordo com Freedman. Isso poderia desencadear uma nova corrida ao abastecimento antes do próximo inverno.
Faltam dados transparentes à Europa sobre quem é proprietário do gás armazenado. O que é essencial é detido pelos serviços públicos, incluindo empresas estatais, que terão de retirar combustível para abastecer as famílias e os fabricantes, de acordo com fontes próximas do assunto.
Uma quantidade menor está nas mãos de empresas como Glencore Plc e Vitol Group, cujo principal interesse é maximizar o valor das suas carteiras. São intervenientes relativamente menores devido aos elevados custos envolvidos e aos novos regulamentos que acrescentaram mais obstáculos, disseram estas fontes, que pediram para não serem identificadas. Os grupos Glencore, Vitol e Trafigura recusaram-se a comentar.
Governos podem declarar estado de emergência
"Manter gás físico em armazenamento pode fazer parte de uma estratégia mais ampla de apoio aos ativos" para as empresa privadas, disse Alun Davies, diretor-sénior para a Energia e Gás Europeus da S&P Global, acrescentando que os comerciantes puros geralmente fornecem liquidez e preferem afundar recursos em grandes armazéns de combustível.
As preocupações com os abastecimentos de inverno têm predominado na região há meses, estimulando os esforços para acumular gás - as reservas estão agora quase cheias e acima da média de cinco anos.
Mas para evitar riscos de abastecimento, os governos poderão recorrer ao chamado estado de emergência. Neste caso, por exemplo, a Agência Federal de Redes da Alemanha diz que teria o poder de ordenar se o gás permanece armazenado ou é retirado. Uma restrição poderia deixar os vizinhos sozinhos a enfrentar a escassez de gás.
A Alemanha está dependente de outros porque o seu armazenamento cobre apenas 25% da procura anual. A Polónia também se encontra em terreno instável. O quinto país mais populoso da União Europeia, com 38 milhões de habitantes, tem menos capacidade do que a Eslováquia, que tem uma população de apenas 5,5 milhões.
Países mais frios podem absorver gás dos mais quentes
Se o sistema funcionar, os preços aumentam onde a procura é mais aguda, e à medida que os fluxos se deslocam para mercados com preços mais elevados, as taxas nos países onde as reservas de gás estão a ser retiradas deverão aumentar em resposta, de acordo com Niek van Kouteren, comercial da empresa holandesa de energia PZEM NV. "Vamos ver quão eficiente é o mercado", acrescenta.
As distorções de preços são prováveis nos próximos meses, com os fornecimentos reduzidos pela Rússia, que cobria 40% da procura no ano passado. Isto aumenta a perspetiva de fluxo de gás de um mercado para outro, com temperaturas geladas em mercados maiores como a Alemanha e a Polónia potencialmente absorvendo os fornecimentos da Itália, Áustria ou Países Baixos.
Apesar de ter a maior capacidade de armazenamento da Europa, a Alemanha tem historicamente explorado reservas da Áustria para alimentar fábricas e aquecer casas - quase metade do gás queimado é para aquecimento.
A Áustria tende a funcionar como fornecedor no inverno, com mais de dois terços da sua capacidade de armazenamento normalmente disponível para outros países. A República Checa e a Hungria também têm mais capacidade do que a necessária para uso doméstico.
Alemanha já tem reservas de gás a 95%
"A Europa mantém-se unida", disse o chanceler alemão Olaf Scholz, esta quinta-feira, em discurso no Parlamento em Berlim. "Nós, como país, assegurámos com as medidas das últimas semanas e meses que podemos dizer com confiança:jJuntos conseguiremos passar este inverno".
O risco de propriedade privada de gás armazenado foi evidente em julho quando a Uniper SE, o maior comprador alemão de gás russo, retirou fornecimentos do armazenamento para servir clientes depois de a Rússia ter cortado as entregas.
A medida contrariou a pressão do governo para reabastecer as reservas e pressionou a administração da Scholz a atribuir mais financiamento à empresa. A Uniper está agora em vias de ser nacionalizada.
Os governos também estão a intensificar os esforços para conter as perturbações este inverno, regulamentando as retiradas e a constituição de reservas. A Alemanha aprovou legislação que impõe objetivos para o armazenamento de gás. Já atingiu o objetivo de 95% para o dia 1 de novembro e mandata um nível de 40% até 1 de fevereiro. Os operadores das instalações arriscam-se a ser penalizados se ficarem aquém do objetivo.
Fluxos transfronteiriços deverão continuar
O governo de Scholz também estendeu 15 mil milhões de euros ao Trading Hub Europe, empresa que gere o mercado de gás da Alemanha, para comprar combustível para armazenamento. O grupo comprou cerca de 60 terawatt-hora de gás, equivalente a cerca de 25% da capacidade de armazenamento da Alemanha, que pode ser considerada controlada pelo Estado.
"O governo alemão tem agora uma enorme quantidade de gás a ser utilizado quando necessário durante o inverno", disse Sebastian Bleschke, diretor-geral da associação de armazenamento de gás do país, Ines. "Mas a maior parte das reservas do país estão nos mercados e podem ir para onde for necessário".
Os governos esperam que os fluxos transfronteiriços continuem a ser uma parte crítica do mercado energético europeu. "Não há qualquer preocupação" sobre os riscos de retirada de gás dos locais de armazenamento italianos para outros países, disse um porta-voz do Ministério de Transição Ecológica de Itália.
Mas a crise provocou um olhar mais profundo sobre o armazenamento, e algumas nações manifestaram a necessidade de expandir a capacidade para fazer face a futuras crises. O inverno de 2023-24 "pode ser pior do que o atual", disse Claudio Descalzi, CEO da gigante italiana da energia Eni SpA.
"É correto preencher conjuntamente parte da capacidade das instalações europeias de armazenamento de gás no próximo ano", disse Scholz aos legisladores antes de uma cimeira da UE em Bruxelas. "Com o modelo do Trading Hub Europe, mostrámos como isto pode ser feito".
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