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O preço do pão vai ser como o da gasolina?
Opinião Economia 7 min. 06.05.2022 Do nosso arquivo online
Inflação

O preço do pão vai ser como o da gasolina?

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O preço do pão vai ser como o da gasolina?

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Foto: AFP
Opinião Economia 7 min. 06.05.2022 Do nosso arquivo online
Inflação

O preço do pão vai ser como o da gasolina?

Luis REIS RIBEIRO
Luis REIS RIBEIRO
Dois meses de guerra da Rússia contra a Ucrânia engrossaram, até agora, um número trágico de mortes, refugiados, destruição e incerteza total sobre quando tudo isto acabará. E o que se passa no Leste da Europa é, cada vez mais, o desnorte na cúpula europeia.

"Querem ver que agora, o preço do pão vai ser como o da gasolina?", perguntava um vizinho meu de Lisboa, na brincadeira.

A brincar, a brincar, até ao final de março (a guerra começou a 24), a subida dos preços parecia, diziam, apenas sangrenta na energia e nas matérias primas alimentares, mas em abril trespassou a linha vermelha que os bancos centrais temiam e não diziam: a inflação começou a contaminar os restantes preços. Não é exagero dizer que chegou a grande inflação.

Na Europa, o discurso oficial tentou durante as últimas semanas, desde que eclodiu o conflito, manter rédea curta na cavalgada da narrativa que envolve a inflação: insistia que havia de ser temporária, que para o ano já não devia ser assim.

O Banco Central Europeu (BCE) liderou as hostes, com a prudência programática ou a "ponderação" possível, mas estamos em maio e o quadro está à vista. Deixou de ser possível prever o curso da inflação, seja o tamanho do seu avanço imparável, seja a duração desta torrente.

A guerra continua e não poupa nada, muito menos economistas monetaristas e modelos econométricos feitos para o conforto de uma inflação de 2% na zona euro.

Ou seja. Tão pouco se sabe quando acaba a guerra, muito menos se pode aferir sobre qual a magnitude e alcance das ondas de choque, hoje ainda a perto do epicentro, que irão e vão varrer o mundo neste e nos próximos anos.

O resumo da jornada inflacionista, até agora, diz-nos que a inflação total da zona euro já vai em 7,5% (medida homóloga em abril) e que o indicador da inflação subjacente, a que capta as componentes mais estáveis e que supostamente estariam mais isoladas da crise (que expurga os efeitos da energia e dos alimentos não processados), também já disparou, tocando quase os 4%.

Ambos os valores são quase cinco vezes maiores do que os registados há um ano, em abril de 2021. Os números são do Eurostat, da semana passada.

O português chega e pede calma ao finlandês

"Ponderação" foi o que Mário Centeno, governador do Banco de Portugal e membro do conselho do BCE, pediu esta semana a alguns colegas seus mais verbais ou emotivos, como o nórdico (finlandês), Olli Rehn.

O antigo comissário europeu aventou uma subida de taxas de juro em julho ou por aí. Mais cedo do que tarde. Não sendo latino, ponderou à sua maneira, com um mapa na cabeça onde a Finlândia ainda faz fronteira com a Rússia. Seria isso, não sabemos.

Helsínquia está a menos de 400 quilómetros de São Petersburgo. É mais ou menos Lisboa-Braga, menos se for um projétil ou um drone que voe a direito.

Portanto, ponderar. O BCE vai e continuará a ponderar sobre fundamentos que depois redundam em previsões altamente incertas ou irrealistas (de inflação). Um trabalho, digamos, frívolo nesta conjuntura.

Sabemos que o BCE decide a par e passo, de acordo com os sinais que vai recebendo, mas não há política monetária de médio prazo que resista a isto. A inflação tem de entrar no eixo dos 2%, diz a missão do banco central que une 19 países.

Compreende-se que o BCE precise de agarrar e ditar uma narrativa de estabilidade e previsibilidade para que os passos subsequentes tenham alguma eficácia, mas o BCE está, claro como água, preso a uma filosofia de curto prazo e isso reduz-lhe credibilidade.

As vozes dissonantes e meio erráticas começaram. Há anos que os alemães querem subir o custo do dinheiro (taxas de juro, incluídas). Agora, outros se juntam. Mais inflação legitima taxas de juro superiores e isso pode dar poder de compra ao euro. No curto prazo, assumindo que é curto, pode ser importante para o embate brutal enunciado pela Comissão Europeia: vamos acabar com o petróleo e o gás russo até ao fim do ano (2022).

Claro que, desejos políticos de Bruxelas à parte, o BCE ainda pode compensar mais à frente com medidas inovadoras (já aconteceu no tempo da crise aguda de 2012 com uma ousadia meticulosa de Mario Draghi - "faremos o que for preciso e, acreditem, será suficiente" - não o devemos subestimar), mas o que temos hoje é pura e simplesmente uma navegação à vista.

Isto não é sequer o Mar Negro. É muito maior em interdependências financeiras e capitalistas com Estados Unidos, China, Índia e tantos atores mundiais interessados numa solução que lhes sirva. Uma ou várias pronto-a-vestir.

Há provas recentes do problema, do dilema monetário inflacionista. São duas fotografias de Christine Lagarde. A separá-las, 34 dias.

A 10 de março, a presidente do BCE, com a guerra no início, disse que "a inflação poderá ser consideravelmente mais elevada no curto prazo. No entanto, em todos os cenários, a expectativa ainda é de que a inflação desça de forma gradual e, em 2024, estabilize em níveis em torno do nosso objetivo de inflação de 2%". "É incerto até que ponto o aumento destes indicadores será persistente, tendo em conta o papel de fatores temporários relacionados com a pandemia e os efeitos indiretos dos preços mais elevados da energia".

Resumo do 10 de março: muita inflação agora, sim, mas isto vai desvanecer, provavelmente ainda este ano.

A 14 de abril, nem há um mês, o tom ficou mais grave: isto, na volta, ainda vai durar mais do que julgamos.

Lagarde diz nesse dia, estava igualmente em Frankfurt, que "a subida acentuada dos preços dos produtos energéticos e das matérias primas reduz a procura e restringe a produção" e, ato contínuo, aceita que "a inflação subiu significativamente e permanecerá elevada nos próximos meses, sobretudo devido ao aumento acentuado dos custos energéticos. As pressões inflacionistas intensificaram se em muitos setores".

"Os riscos em sentido ascendente em torno das perspetivas de inflação também se intensificaram, em especial no curto prazo", acrescentou a antiga diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI).

O curto prazo é até final deste ano. Sobre o que vem depois, o BCE tenta incutir alguma "ponderação" e além disso pouco mais pode dizer. Na verdade, deixou de perorar sobre isso.

Aqui chegados, percebe-se que a observação dos preços e das expectativas de inflação não são nítidos, a pobreza na informação é enorme, como a incerteza e o otimismo inicial.

Entretanto, no mundo real

Já a pobreza real cresce. A inflação, como aqui já foi dito, é o imposto mais duro, desigual, de todos. Corrói o poder de compra, mas entre os mais pobres, cobra muito mais: toda a gente tem de comer, ter uma casa decente, estudar, pagar água, luz, aquecimento, transportes e comunicações. Poder ir ao médico, fazer cirurgias. Um luxo.

Num rendimento mais exíguo, os bens e serviços básicos, para manter a decência, são sempre proporcionalmente muito mais pesados do que num rendimento dito médio.

Pelo andar da guerra e da falta de visão e previsão a médio prazo, prevê-se que seja rápido até começar o sufoco dos mais pobres e o aperto torniquete da imensa classe média, onde alguns tendencialmente culparão os pobres e os mais ricos pelo seu infortúnio. Já faltou mais, de facto.

Esta inflação compara mal com as outras do passado, com as guerras frias e os outros choques petrolíferos de há meio século. Na zona euro, dizem, temos instrumentos e sabedoria nascidos e criados à força na sequência da grande recessão e da crise das dívidas soberanas e dos resgates a bancos. Resta saber usar ou inventar novas ferramentas aqui e agora, e não no caos do mar grande e bravo que já se vê de Frankfurt, Helsínquia, Lisboa.

Quem vai ao mar avia-se em terra (diz um ditado popular em Portugal). Na Finlândia, há um adágio parecido, mas em suomi. Perdidos nas previsões, sim, mas nunca lost in translation.

*jornalista do Dinheiro Vivo

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