Inflação ou ilusão
Inflação ou ilusão
Já aqui escrevemos sobre o problema da inflação muito elevada. Esta funciona como um imposto que não diferencia entre ricos e pobres, sendo que os menos abonados (trabalhadores com salários baixos, reformados com pensões de miséria ou beneficiários de prestações sociais, como subsídios de desemprego ou apoios desenhados para elevar as pessoas do limiar da pobreza) são automaticamente os mais lesados com uma subida rápida e persistente dos preços do consumidor final.
Quem tem rendimentos mais baixos, tende a dedicar proporcionalmente uma parte maior dessas verbas para bens básicos, como alimentação e energia. Os gastos mais secundários vêm depois de serem satisfeitas as necessidades mais prementes.
Se a inflação é elevada e se isso acontece durante demasiado tempo, eis que nos deparamos com o problema clássico: a inflação agrava a pobreza porque reduz imediatamente o poder de compra.
Quem está no limite inferior da distribuição de rendimentos, sente mais depressa do que os outros as crises e as tensões nos mercados internacionais, sobretudo em economias muito dependentes do exterior. É o caso de Portugal, mas de muitos outros países europeus e por esse mundo fora.
Hoje, as disrupções acontecem nos preços de várias matérias primas. O encarecimento do petróleo e do gás é o mais mediático, mas o que dizer do aumento no custo de produtos intermédios que servem para fabricar alimentos? Fertilizantes agrícolas, água de rega, combustíveis para manter máquinas a funcionar e a produzir em massa e a custos mais competitivos (que se refletem em bens necessariamente mais baratos), tudo isto está hoje em xeque com o agravamento dos preços.
Mesmo com aumentos de salários e pensões (que normalmente acontecem no início do ano), o surgimento da inflação alta acaba por corroer parte desse ganho. O acréscimo inicial é, em parte, uma ilusão monetária.
A subida de preços é o elemento que define a realidade final, que se traduz, neste caso, em menos poder de compra. A subida nominal pode ser 6%, por exemplo, mas se a inflação for 5%, o aumento real de rendimentos será de apenas 1%. É a diferença entre um valor a preços correntes (com inflação) e outro a preços constantes (descontando o efeito da inflação).
Ora, isto acontece ao nível dos consumidores, dos orçamentos familiares, mas com o panorama de inflação que estamos a viver, vemos que o fenómeno está a perturbar praticamente todas as dimensões da economia. E
Em Portugal, as contas nacionais apuradas pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) até ao terceiro trimestre de 2021 mostram que a economia portuguesa está bastante inflacionada.
O terceiro trimestre é o que capta melhor a deterioração dos preços das matérias primas e fornecimentos industriais. Foi aí que começou a crise mais grave e que ainda hoje continua manifestando-se em taxas de inflação anormalmente elevadas face ao histórico dos últimos anos.
Ilusões setoriais (e no consumo privado também)
Vamos comparar com o mesmo período de 2019, só para evitar justapor a 2020, o primeiro ano de embate da pandemia, de recessão cavada e profunda, o que poderia distorcer demasiado esta análise.
No terceiro trimestre de 2021 (últimos dados disponíveis), quando visto a preços correntes (com inflação), o valor acrescentado da economia portuguesa já só perde 235 milhões de euros face ao nível pré pandémico. Mas a preços constantes (expurgando o efeito inflacionistas), a perda é muito superior: ronda os 1,2 mil milhões de euros apenas neste trimestre. O efeito inflação criou um valor acrescentado menos mau: a ilusão monetária provocada pela alta dos preços ascende a 997 milhões de euros num trimestre.
A nível setorial, é fácil perceber onde estão os maiores desvios entre o valor criado real e o valor a preços correntes. A inflação permitiu um ganho aparente de 239 milhões de euros às atividades financeiras, de seguros e imobiliárias.
O grupo "comércio e reparação de veículos; alojamento e restauração" está 64 milhões de euros melhor com o efeito inflação do que sem ela. A construção beneficia de um efeito de preços de 142 milhões de euros. A indústria, está 144 milhões de euros melhor do que sem o efeito inflação. O trio "atividades financeiras, seguros e imobiliárias" tem um impulso de 240 milhões de euros a preços correntes -- não fossem as subidas de preços e estas atividades juntas estariam estagnadas no terceiro trimestre.
Portanto, a ilusão existe e isto é só o princípio. Nas exportações de mercadorias, por exemplo, há já sinais inequívocos de que a recuperação (nominal, a preços correntes, com inflação) pode ser enganadora. As quantidades exportadas continuam a cair, mas como refletem (mesmo que parcialmente) as subidas de preços nas vendas, o quadro é aparentemente benigno. O tempo o dirá. Se esta inflação corrói a capacidade competitiva e os ganhos de quotas de mercados, o motor da economia pode estar outra vez em risco.
Para terminar, o consumo privado. Aqui as disparidades são impressionantes. Com inflação, a despesa das famílias engorda 510 milhões de euros, o cenário é de expansão. Mas expurgando o efeito dos preços, deparamo-nos com um emagrecimento de 160 milhões. Ainda está em recessão O mesmo que dizer: o consumo continua, realmente, abaixo dos níveis anteriores à covid-19.
Na escola secundária, tive um professor mais castiço que explicava assim, à juventude, o fenómeno da inflação: "É como fazer xixi nas calças. Na altura, sabe bem porque alivia, mas depois, quando arrefece, é mau e desagradável".
(Jornalista do Dinheiro Vivo)
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