Portugal vs. Coreia do Sul: O futuro é já hoje
Portugal vs. Coreia do Sul: O futuro é já hoje
Paulo Bento e Fernando Santos, olha que dois. Juntos, partilham o amor pelo Estrela. E depois o balneário do Sporting, em 2003-04. Separados, vivem o dérbi Benfica vs Sporting em 2005-06. A vantagem é de Fernando Santos, com 2:0 no José Alvalade (golos de Simão mais Ricardo Rocha) e 1:1 na Luz (Liedson e Miccoli).
É hoje, o Portugal vs. Coreia do Sul para a terceira jornada da fase de grupos. A ideia é dar minutos a António Silva, Dalot, Vitinha, Matheus Nunes, João Mário e Ricardo Horta. Dos titulares do primeiro jogo do Mundial, vs. Gana, só se mantêm Diogo Costa, Cancelo e Ronaldo. Se a Coreia repetir os cinco Kim na defesa, é um mimo. Fora de brincadeira, a Coreia é das poucas selecções com saldo positivo vs. Portugal: um jogo, uma vitória, um golo marcado e zero sofridos.
A situação embaraçosa é já de 2002, também terceira jornada da fase de grupos. Pela primeira vez na história dos Mundiais, o factor de desempate nas contas do grupo diz respeito à diferença de golos no total dos três jogos em vez do confronto directo. Ou seja, em caso de empate vs. Coreia do Sul e derrota dos EUA vs. Polónia, estende-se a passadeira vermelha para Portugal rumo aos oitavos-de-final.
Aos 5 minutos, 2:0 para a Polónia. Nunca esperávamos uma ajuda desta qualidade, agora só falta controlar a anfitriã Coreia e já está. Mas não, Portugal entra nervoso em campo e isso é mais que notório em algumas faltas despropositadas, como o primeiro amarelo para Beto e o vermelho directo para JVP, numa entrada desajeitada sobre Park Ji-Sung.
Ironia do destino, seria ele o autor do solitário golo da noite. Um belo movimento, diga-se. Pára a bola no peito, domina com o pé direito e remata com o esquerdo por entre as pernas de Baía (pelo meio, Conceição vai à queima e é afastado da acção). Nessa altura, já Portugal tem só nove jogadores – a JVP acrescente-se Beto no livro de indisciplina do árbitro argentino Ángel Sánchez.
É aí que Portugal assume o jogo e corre atrás do empate, que esbarra no poste de Lee Woon-jae com um pontapé artístico de Conceição. Quando soa o apito final, a desilusão apodera-se de todo um país. Pela segunda vez seguida, Portugal é eliminado de um Mundial na fase de grupos. Pela segunda vez seguida, Portugal recusa ajuda exterior. Sim, a Coreia do Sul oferece o empate. Durante a primeira parte e até ao intervalo. Portugal não quer saber. Aliás, Oliveira não quer saber. Do resultado do outro jogo, queremos dizer.
Em abono da verdade, a táctica já fora utilizada no último dia de qualificação, vs Estónia, na Luz. Diz o próprio Oliveira. "Proibi toda a gente de transmitir informações para dentro do campo e só soube do resultado [Irlanda vs Chipre] ao intervalo porque alguém atrás de mim o disse. Não se trata de não devermos estar preocupados com o outro jogo, mas sim de uma questão de discurso de coerência. Não posso estar a convencer os meus jogadores de que são os melhores, e eles são-no, e depois ir-lhes dizer para terem cuidado com aqueles que estão a jogar noutra casa."
Da Estónia para a Coreia do Sul, distam seis meses e a táctica mantém-se. Se a Estónia é uma selecção a fazer figura de corpo presente, a Coreia do Sul é altamente competitiva. Sem qualquer vitória em nenhuma das seis presenças em Mundiais, ganha 2:0 vs Polónia e depois saca um empate vs EUA (1:1). O horizonte é risonho. O treinador é Guus Hiddink e o seu futebol é de paciência, muita paciência. Mais entreajuda, muita entreajuda. Nem é de agora. Quando Hiddink ganha a Taça dos Campeões 1988 pelo PSV, empata todos os jogos desde os ¼ até à final, vs Bordéus (1:1, 0:0), Real Madrid (1:1, 0:0) e, claro, Benfica (0:0, depois 6:5 nos penáltis). Nesse PSV, há figuras de topo como Van Breukelen, Gerets, Koeman, Vanenburg, Lerby e Kieft.
Também há jogadores de topo na Coreia de Hiddink, como Park, então do PSV, depois Man United, Seol e Ahn, do Perugia – eliminaria a Itália nos oitavos e seria impedido pelo próprio presidente do clube italiano de voltar a vestir a camisola. Ainda assim, nenhum português equaciona um regresso prematuro a casa. Porque o 4:0 vs Polónia devolve a alegria e a confiança e porque as famílias dos jogadores chegam à Coreia na véspera do jogo com bilhete de volta para daí a umas semanas. A esperança está viva, Portugal não irá repetir os erros de França e Argentina, já afastadas do Mundial em plena fase de grupos, nos dias 11 e 12, respectivamente.
Ai não?
Oliveira volta a cometer o erro do primeiro jogo e selecciona Beto para lateral-direito. De resto, tudo igual do meio-campo para a frente com Petit e Paulo Bento mais Figo, JVP e Conceição a alimentar Pauleta. Antes do jogo, a fadista Mariza canta o hino e há uma emoção diferente entre os jogadores. Que o digam Jorge Costa e Conceição em animada cavaqueira naquele alinhamento para a fotografia. São 12h30 da tarde em Portugal continental. O jogo começa à hora marcada, com JVP a dar para Pauleta. Um minuto depois do primeiro remate do jogo, a Polónia dá-nos uma alegria com o golo de Olisadebe. No instante seguinte, 2:0 de Kryszalowski. Quer isto dizer, o nulo em Incheon vale o apuramento directo para Portugal e fecha a porta do Mundial aos EUA. Dentro do relvado, ninguém sabe de nada. Ordens de Oliveira.
Seja, Portugal está no bom caminho. Se continuar 0:0, apuradíssimo e jogo vs México no dia 17, em Jeonju. O México que já fora observado pelo professor Neca na véspera, dia 13, vs Itália (1:1), em Oita. Está tudo tratado, só falta o empate. Venha ele. Ou não. Aos 10 minutos, Sérgio Conceição perde uma bola, Beto tenta o ombro com ombro com Seol e falha. Quando o avançado lhe foge à marcação, Beto estica a perna. Falta clara. O árbitro avisa-o. Paulo Sousa também, desde o banco. "Tira o Beto."
Aos 22 minutos, numa fase mais eléctrica do jogo com muitas bolas atiradas de um lado para o outro sem nexo, Beto vê o cartão amarelo. A falta é evidente, pontapé no joelho de Seol. Bola para a frente, vá. E, logo a seguir, marcada para a frente e Kim dá uma valente traulitada em JVP. O árbitro argentino Ángel Sánchez mostra cartão amarelo ao sul-coreano. Justo, justíssimo. O jogo está rijo, ninguém quer perder a bola. Já se sabe.
JVP levanta-se pior que estragado e, três minutos depois, apanha um adversário ali a jeito na sequência de uma troca desastrada de bolas, estilo pinball action. O pobre rapaz chama-se Park e é vítima de uma tesoura no meio-campo. A entrada é violenta, a bola não é tida nem achada no assunto. Ángel Sánchez puxa do cartão vermelho, JVP enerva-se ainda mais e dá-lhe um murro no estômago com o punho direito. O esgar do juiz sul-americano, num misto de incredulidade e dor, é um poema.
Acto contínuo, Jorge Costa afasta JVP e Couto segura a cara de Sánchez com as duas mãos e tenta serenar os ânimos, completamente desenquadrados com os resultados dos dois jogos naquele instante. Com dez elementos, Portugal aguenta o nulo e é quando Baía se lesiona que a equipa toma conhecimento do 2:0 entre Polónia e EUA, através da entrada em campo da equipa médica. O resto da primeira parte é jogado em tom pachorrento. No balneário de Portugal, a figura de JVP enerva-se ainda mais. É possível? É, porque entra, olha para o 2:0 na televisão e nem quer acreditar no resultado. Tranca-se numa casa de banho a fumar um cigarro (ou mais) e de lá não sai. Nem durante o intervalo. Se saísse, senhoras e senhores, nem Oliveira, nem muletas, nem o diabo a sete.
O intervalo é também uma peça importante no puzzle. Os jogadores sabem de tudo, 0:0 aqui e 2:0 lá. Estamos satisfeitos, não mexe mais. Oliveira puxa da palavra e quer a vitória para eliminar os chinocas do Mundial deles. A segunda parte é um filme. Porque a Coreia cresce e intimida Baía com dois cabeceamentos a rasar o poste. De Portugal, zero. "Tira o Beto", ouve-se amiúde. "Tira o Beto". Oliveira demora, Ángel Sánchez nem por isso. O argentino, agora mal, assinala falta um mergulho de Lee e mostra o segundo amarelo a Beto. Nove, Portugal joga com nove. E deve seis mil euros à FIFA. Ah pois é, pela primeira vez na história dos Mundiais, os vermelhos pagam-se. E caro. Três mil euros à peça.
Com nove em campo, Oliveira chama Jorge Andrade e saca Pauleta, a única referência ofensiva. Na linha lateral, Oliveira diz de sua justiça. "Disse-me ‘vais jogar ali no meio-campo." Passada uma jogada, "não, vais jogar a central." Depois: "não, vais jogar a lateral direito." No minuto seguinte, canto para a Coreia. Bola aqui, bola ali, Park domina e atira para o 1:0. A Polónia continua a ajudar (já vai em 3:1).
Um golo é o suficiente para chegar aos oitavos-de-final. No banco, Oliveira chama Abel Xavier. E sai Rui Jorge. Já ninguém se entende, nem é coração e muito menos cabeça. Rui Costa percebe aí que está fora do jogo, não vai mais entrar e desata a chorar perto do banco, sentado na pista de tartan. O adjunto Rui Caçador chama-o à atenção. "Menino Rui [Caçador trata-os assim, já os conhece há anos e anos], ninguém lhe deu autorização para sair do aquecimento." A resposta de Rui é uma ida ao bilhar grande, salvo seja.
Ainda falta uma substituição, vá. Oliveira olha para o banco e saca Nuno Gomes. De todos os suplentes, e excepção feita aos dois guarda-redes, Nuno é o único sem o aquecimento feito. Oliveira simplesmente não se lembra de o chamar, a ele, ao seu suplente de eleição na fase de qualificação. Já equipado para jogar e com um pique apenas de aquecimento, Nuno Gomes ouve de Oliveira o nome do substituto. "Mas, mister, o Jorge [Andrade] entrou agora." Oliveira rectifica. "Ah, então vais para o lugar do Petit."
Continua 1:0 para a Coreia do Sul. Nos últimos minutos, já com o capitão Couto lá à frente para atazanar o juízo aos centrais adversários, há um carrossel de emoções sem igual. Vítor Baía sacode a pressão só com Song pela frente, Sérgio Conceição atira ao poste (89’), Baía salva novo contra-ataque (90’) e Conceição obriga o guarda-redes a defesa por instinto para canto (90’+3). Quando Ángel Sánchez apita para o fim, o adeus ao Mundial é inevitável. E hoje, como será?
(Autor escreve de acordo com antiga ortografia.)
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