Portugal. Cuidado, eles enganam
Portugal. Cuidado, eles enganam
Gana é o primeiro adversário da selecção nacional no Mundial 2022.
África, África mãe, casa, casa lar, lar conforto, conforto batuques, batuques selva, selva Jingabé, Jingabé África, África mãe. O estilo inconfundível de Carlos Pinto Coelho, caricaturado por Herman José como Carlos Filinto Botelho no saudoso "Tal Canal", preenche-nos alegremente a memória. É a movida africana em dia de Portugal vs. Gana no arranque do grupo H do Mundial 2022.
Às grandes questões estéreis sobre o onze titular de Fernando Santos, se joga António Silva ou Pepe, se é Rúben Neves ou William, se é Félix ou Leão, se se se. Não, nada disso. Nós aqui embarcamos na história para contar o currículo assim-assim de Portugal vs. África para alertar a malta, como quem diz "isto é tudo menos favas contadas".
O começo é lá longe, em 1928. Portugal vs. Egipto não é só o jogo dos ¼ final dos Jogos Olímpicos-28, em Amesterdão, como também a estreia vs. África. Perdemos 2:1 com uma exibição fraca do emblemático guarda-redes Roquete (Casa Pia): no primeiro golo, soca mal a bola, depois de uma intervenção também defeituosa de Carlos Alves, e permite o remate vitorioso de Mamaduh Mokltar (30’); no segundo, fica a meio caminho e permite o chapéu de Riad (48’).
A perder por 2:0, a selecção toma conta do jogo. Aos 65 minutos, o momento crucial: Vítor Silva remata, o guarda-redes embrulha-se com a bola e esta, segundo o árbitro auxiliar holandês, entra na baliza. O árbitro italiano não é da mesma opinião e invalida o golo. Finalmente, aos 76 minutos, o mesmo Vítor Silva (três golos em outros tantos jogos na competição) reduz, mas ficamo-nos por aqui. Portugal é eliminado e de nada vale o protesto junto da organização.
O próximo confronto com africanos é só em 1986, em Guadalajara, no México. É dia 11 Junho, para a terceira jornada da fase de grupos do Mundial. Com dois nulos vs. Polónia e Inglaterra, os marroquinos denotam qualidade acima da média e, antes da meia-hora, já ganham por 2:0. Na segunda parte, Torres tenta o tudo por tudo e estreia finalmente Rui Águas. Em vão. Marrocos, treinado pelo brasileiro José Faria, ainda faz o 3:0 antes de o suplente Diamantino fixar o resultado com um bonito golo.
Portugal fica em último lugar do grupo F e ruma desconsolado para casa. Tanta história, tanto carnaval (guerra entre futebolistas e federação) para tudo acabar na quarta-feira. O lesionado Bento é sucinto na análise: "Ganhámos o primeiro jogo, precisávamos de apenas mais um ponto e não conseguimos. Sem comentários!".
Passam-se os anos, vira-se o século. Repete-se o 11 Junho, agora em 2006, um domingo. É a estreia da selecção no Mundial da Alemanha, vs. Angola, e arranca com os três pontos necessários, via-golo madrugador de Pauleta aos 4’, numa bela jogada de Figo pela esquerda em que passa pelo pobre Jamba em corrida e assiste Pauleta para o 47.º golo do açoriano, num encontro histórico para Luiz Felipe Scolari, autor da oitava vitória seguida em Mundiais (sete pelo Brasil em 2002) e novo líder desse ranking, com ultrapassagem ao italiano Vittorio Pozzo (sete entre 1934 e 1938).
Quatro anos volvidos, em 2010, na África do Sul, a equipa portuguesa encontra Costa do Marfim no Nelson Mandela Bay, em Port Elizabeth. Portugal entra ambicioso, com Ronaldo e Liedson soltos no ataque. O problema é o nervosismo de Danny, a falta de explosão de Coentrão e a marcação de Tioté sobre Deco. Mesmo assim, Ronaldo avisa Barry com um remate ao poste (12’). Até final, o guarda-redes marfinense não mais é incomodado e é até Eduardo a ser testado na parte final do jogo, já depois da entrada de Drogba.
O capítulo seguinte é um 2:1 vs. Gana no Mundial-2014. Joga-se tudo ou nada, é a última jornada da fase de grupos. Portugal tem de recuperar cinco golos de diferença e esperar pela derrota dos EUA vs. Alemanha (há suspeitas, infundadas, óbvio, de um complot entre os seleccionadores Jürgen Klinsmann e Joachim Löw, ambos alemães). Um golo de Thomas Müller ajuda Portugal. Só que Portugal é pobre de espírito e fraco de ideias. A quantidade de passes transviados é assustadora, os erros repetem-se a uma velocidade vertiginosa. Isto nem é jogo de Mundial, é mais daqueles particulares de Agosto no estádio do Algarve. Joga-se a passo, sem qualidade nem critério. Vai entender? Não vai, nem pode.
Do autocarro para o balneário, o Gana dá espectáculo com música e dança. Dentro do campo, os jogadores transformam-se em marionetas. Na véspera, um jacto aterra em Brasília a mando do presidente do Gana para pagar os prémios em atraso. Merece até escolta policial até ao hotel dos africanos, onde lhes são dados os prometidos 3 milhões de dólares. Uau, isso vai animá-los. Não, não vai.
O Gana mete dó pela forma displicente como encara o jogo. A uma bola perdida, seja qual for o jogador, segue-se a indiferença ao desenrolar da jogada. Quer isto dizer que Portugal tem conforto para criar jogo, como aliás já acontecera com os EUA. E deitamos tudo a perder, como aliás já acontecera com os EUA. É tudo igual. Seja pelos passes longos de Beto, seja pelos sucessivos cruzamentos inexplicáveis de Miguel Veloso, pela incapacidade de Éder de ganhar uma bola de cabeça ou pela falta de explosão de João Pereira, é tudo mau, mas mau. E ainda assim consegue criar uma mão-cheia de oportunidades, todas pelo incansável Ronaldo.
Se é certo que começa o jogo com um rodriguinho exagerado seguido de um passe curto para fora, o capitão acorda e faz pela vida: atira à barra num cruzamento-remate (6’) e obriga o guarda-redes Dauda a ser a figura com duas defesas espalhafatosas. No outro lado, Beto só é verdadeiramente incomodado pelo capitão Gyan. Até que chega o 1:0 caído do céu, autogolo de Boye.
O golo poderia dar outro ar à selecção. Não a esta. Reagimos de uma forma preguiçosa. Não há querer. Não há veias a sair da pele. Não há tesão. Um exemplo: o árbitro dá um minuto de descontos na primeira parte. A bola sai e é lançamento para Portugal. O que fazemos? Bruno Alves tem a bola na mão e espera por João Pereira. Tic tac tic tac. O lateral ajeita a bola tic tac tic tac e o juiz do Bahrein apita para intervalo. Pior, pior, só o 1:1 do Gana. Do inimitável Gyan, de cabeça, após cruzamento de trivela de Asamoah.
O Gana interessa-se subitamente pelo jogo (basta-lhe um golo e está na fase seguinte), Portugal não sai da cepa torta. Só a entrada do número 10 Vieirinha anima a equipa e até se criam três ocasiões de golo. Aquela que não o é, Ronaldo aproveita para o 2:1. É o seu 50.º golo na selecção e iguala Klinsmann a marcar em sete fases finais seguidas, entre Mundiais, Euros e Olímpicos. Triste adeus, ruim mêmo.
O último capítulo da saga Carlos Filinto Botelho é em 2018, na capital russa Moscovo. O golo solitário (e madrugador) é de Ronaldo, de cabeça. A partir daí, acredite, só dá Marrocos. Se acabasse empatado, seria justo. Agora imagine. Portugal joga francamente mal e o melhor em campo é Rui Patrício com um par de defesas impressionantes. Atenção, Marrocos é treinado pelo francês Hervé Renard, o mesmo a causar mega-sensação neste Mundial-2022 como seleccionador da Arábia Saudita, autor da reviravolta mais formidável de que há memória com o 2:1 vs. Argentina. Ai ai, África minha. Nossa. De Portugal.
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)
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