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O carmo e a trindade no Dragão
Desporto 5 min. 03.03.2023
Histórias da Bola

O carmo e a trindade no Dragão

O árbitro Rui Costa mostra o vermelho a Uribe, do FCP, durante o encontro com o Gil Vicente, a 26 de fevereiro de 2023.
Histórias da Bola

O carmo e a trindade no Dragão

O árbitro Rui Costa mostra o vermelho a Uribe, do FCP, durante o encontro com o Gil Vicente, a 26 de fevereiro de 2023.
Foto: Manuel Fernando Araújo/Lusa
Desporto 5 min. 03.03.2023
Histórias da Bola

O carmo e a trindade no Dragão

Rui Miguel Tovar
Rui Miguel Tovar
Nem sequer chega ao intervalo o único caso de um grande a acabar com 9 e a jogar em casa.

O Carmo e a Trindade. Cai o Carmo e a Trindade, aliás. É uma expressão bem portuguesa. Diz-se hoje em jeito de surpresa ou confusão. E nasce no século XVIII, por ocasião do terramoto 1755, quando os conventos do Carmo e da Trindade ruem no meio do caos e da tragédia. Se nos desviarmos para o futebol, basta juntar FC Porto e Gil Vicente. O surpreendente 1:2 de domingo passado é um hino à expressão.

Benfica 59, FC Porto 51. Oito pontos é muito. Ainda faltam 12 jornadas, é certo, só que o Benfica anda sempre prego a fundo e o FC Porto já perde mais vezes em 2022-23 do que nas duas últimas épocas juntas. Nesses termos, a diferença é abissal. Quase impossível de maquilhar com palavras animadoras como esperança, fé ou perseverança. Oito é dose.

O desnorte portista é em casa, duas derrotas no Dragão, ambas com equipas de vermelho. Ao Benfica, segue-se o Gil. Em ambos os casos, o FC Porto vê-se privado de um jogador antes do intervalo. Em ambos os casos, o FC Porto acaba em inferioridade numérica. Se o clássico é 10 contra 11, o surpreendente 2:1 do Gil Vicente é 9 contra 11.

Sim senhor, nove contra 11. O FC Porto acaba com nove, expulsões de João Mário (mão na bola) e Uribe (penálti) com intervenção do VAR. Insistimos, o FC Porto acaba com nove no Dragão. E agora? É preciso recuar até 1970 para verificarmos um caso igual na casa de um grande. Ponto de partida, Estádio da Luz, dia do 28.º aniversário de Eusébio.

O Benfica, segundo classificado, a já cinco pontos do Sporting, recebe o Belenenses, sexto, com o propósito de se reencontrar com as vitórias, na ressaca de um 2:1 em Guimarães. O onze é o de sempre, com aquele quarteto Artur Jorge, Torres, Eusébio e Simões na frente. 

Os primeiros 30 minutos dizem-se mexidos, com remates à baliza de parte a parte. De repente, aos 31 minutos, o bom gigante Torres agride Freitas e é expulso por João Nogueira. O público assobia. Aos 43’, Malta da Silva atropela Saporiti e o árbitro de Setúbal manda sair o benfiquista (ainda não há cartões, só na época seguinte). O público assob...

Nem pensar, o público já nem assobia. O público invade o relvado e João Nogueira nem dá por isso. É alertado pelo benfiquista Toni e os dois fogem à turba furiosa, cega de razão, com sede de vingança. A correria é tanta que João Nogueira esquece-se dos travões a descer as escadas para o balneário e estatela-se ao comprido. Magoa-se na mão e perna direitas.

Com a adrenalina a correr-lhe nas veias como nunca, levanta-se no quadradinho seguinte e entra no balneário, devidamente protegido pela polícia. Lá dentro, reúne com os delegados ao jogo e decreta o fim do jogo aos 43 minutos, com 0:0 no marcador. Ainda tem tempo (e, sobretudo, cabeça) para escrever o relatório.

No dia seguinte, faz a vida de sempre: acorda na sua casa no Largo das Areias, em Setúbal, e desloca-se para a Serra da Arrábida, onde trabalha há 21 anos como soldador da Secil. Ganha 3600 escudos por mês e 750 escudos por jogo na 1.ª divisão. 

"Nunca me meti num sarilho igual", diz o homem do apito ao jornalista do Diário de Lisboa. "Em 15 anos de arbitragem, e estreei-me num Vitória FC vs. Cova da Piedade para os distritais de juniores, tenho apanhado bons petiscos. Mas nada como este." Pois é, expulsar Torres e Malta da Silva vale-lhe publicidade gratuita. "Como eu consegui sair vivo dali é que não sei. Devo-o ao Toni, ele é que me disse fuja, senhor árbitro, fuja. E eu fugi. Porque a multidão invadiu o relvado nas minhas costas e não vi nada. Se não fosse o Toni."

E Toni, o que diz sobre o assunto? "Limitei-me a ajudar um homem em perigo. Quando me apercebi da invasão de campo, olhei para o árbitro e vi-o de costas, absolutamente alheado do que ocorria nesse mesmo instante e o visava especialmente. Pensei que ele precisava urgentemente de ajuda. Foi só o que pensei. A partir daí, acabaram-se os pensamentos. Todos os meus gestos seguintes foram instintivos. Vi-me a fazer. Só isso." 

Grande Toni, o herói da Luz. Naquela tarde de 1970 e em todas as outras de esplendor futebolístico. Afinal de contas, é ele o único homem campeão nacional pelo Benfica como jogador (oito vezes) e treinador (duas). Herói com agá maiúsculo.

De volta ao árbitro João Nogueira, perguntam-lhe sobre os penáltis pedidos pelo Terceiro Anel. "Quais penáltis? Não vi nenhum. Ná ná ná, não vi nada, nadinha. Tudo coisas normais. Cargas de ombro, desarmes, nada mais." E as expulsões?


Conta-me como foi da bola
Efemérides e histórias caricatas do futebol pelo jornalista Rui Miguel Tovar.

"Não podia fazer outra coisa, toda a gente viu, era falta para expulsão. Tanto a do Torres como a do Malta da Silva." E agora? "Já escrevi o relatório, enviei-o ontem para a federação e para a comissão central dos árbitros. Naquele inferno, quem era o árbitro que voltava a arriscar a vida para retomar o jogo? Não, aquilo não era para mim. E nem sei bem o porquê daquele inferno. Já escrevi o relatório, agora o problema não é meu. Eu sou apenas árbitro. E, como árbitro, tenho de manter a disciplina."

Passam-se dois dias, tão-só dois dias e a federação pronuncia-se com clareza: oito jogos de interditação da Luz, seis jogos de castigo para Torres e cinco para Malta da Silva. O resultado 0:0 é homologado e lá se vai o sonho do inédito tetra, por conta da superioridade do Sporting. Quanto a João Nogueira, só volta a apitar na 1.ª divisão daí a três meses, em Abril, um 3:2 entre Boavista e Leixões no Bessa. Escusado será dizer (ou não?), João Nogueira nunca mais apita o Benfica nem volta à Luz.

(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)

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