Fever Pitch no Arsenal vs. Sporting
Fever Pitch no Arsenal vs. Sporting
Arsenal e Sporting, dois mundos parecidos de universos distantes. Ambos clubes da capital, andam quase sempre a reboque dos rivais citadinos, mais fortes, mais endinheirados e mais bem estabelecidos. Ambos com apenas dois títulos de campeão nacional no século XXI, ambos com uma Taça das Taças no século XX, ambos com treinadores sub40.
O sorteio dos oitavos da Liga Europa junta-os para esgrimir argumentos, a primeira mão no José Alvalade acaba com quatro golos (2:2) e uma carruagem do metro de Lisboa destruída pelos inconscientes adeptos conscientemente hooligans. Agora é o tudo ou nada em Londres, onde mora o líder da Premier League, conhecido pelo seu futebol romântico dos tempos de Wenger e pelo best-seller "Fever Pitch", de Nick Hornby.
É assim ó: na vida real, o caso assume contornos dramáticos. O Arsenal precisa de ganhar ao Liverpool por 2:0 ou por três ou mais golos de diferença para se sagrar campeão inglês, algo que não acontece há 18 anos. E isso é um pau de dois bicos. Ou mesmo três. Pronto, vá, quatro. É um pau da treta ou um tetra-pau, como queira: porque o Liverpool joga em casa, ganhara a Taça de Inglaterra na semana anterior, num épico 3:2 sobre o rival Everton, recuperara 15 pontos de atraso na segunda volta e é a melhor equipa da ilha desde o início dessa década, com Grobbelaar, Nicol, Whelan, Hansen, Aldridge, Rush, Barnes e McMahon.
Na vida ficcional, o caso é mais grave ainda. Na opinião de Paul Ashworth (Colin Firth), um adepto fanático do Arsenal, encontrar o amor é menos importante do que a sua equipa ganhar o campeonato ao fim de 18 anos. De repente, Paul encontra Sarah Hughes (Ruth Gemmell) e tudo parece possível. Pelo menos até ao momento em que o Arsenal começa a perder pontos. Aí Sarah percebe que está sozinha a competir com a equipa inteira do Arsenal. Quem vai ganhar? Aqui, sim, é um pau de dois bicos.
Ela ou o Arsenal?, pergunta-se Paul, visivelmente mais interessado no campeonato que na relação. Eu ou o Arsenal?, questiona-se Sarah, surpreendida por se ver no meio desta encruzilhada. Ora surpreendida por ver Paul usar boxers do Arsenal ("estás a pensar mostrar isso a outro ser humano?"), ora surpreendida pela filosofia do adepto quando diz que "o futebol é só um jogo" (DON’T SAY THAT! Se faz favor! É a coisa pior, a mais estúpida que qualquer pessoa pode dizer! Porque claramente o futebol não 'é só um jogo'. Quer dizer, se assim fosse, eu importar-me-ia assim tanto? Hã? 18 anos! De-zoi-to anos!
Sabes o que querias há 18 anos? Ou dez? Ou cinco? Querias ser professora na nossa escola? Duvido muito. Eu duvido que queiras uma coisa assim há tanto tempo. E mesmo que quisesses e passasses três meses a pensar que finalmente, FINALMENTE, ias ter o que querias e fosses privada dessa coisa… quero dizer, nem quero saber o que é, um carro, um trabalho, um Óscar, um bebé… aí entenderias como me sinto esta noite. Mas tu não sabes, por isso…).
Tudo depende do tal Liverpool-Arsenal. Ao intervalo, 0:0. "Eu sabia", lamenta Paul, ancorado no seu pessimismo, de pé sem tirar os olhos do monitor. "Sabias o quê? Está 0-0 ao intervalo. Ainda há hipótese de ganhar 2-0", argumenta Steve, o seu inseparável buddie do Arsenal, sentado no sofá, à frente da televisão.
"Hey, acorda para o mundo real. Está 0-0", contra-ataca Paul, às voltas na sala, e na cabeça. "No mundo real, Paul, está 0-0. É melhor assim do que estar a perder". Aos 52 minutos, 0:1 por Alan Smith, o marcador por excelência do Arsenal, com 23 golos no campeonato, dos quais 11 nas primeiras oito jornadas.
Paul continua de pé, nada convencido. "É mesmo típico do Arsenal: marcar o primeiro golo para dar esperança e depois não chega lá, ao objectivo." Steve responde sem se chatear por aí além: "O quê? Queres que o Arsenal marque o segundo antes do primeiro?" Minuto 90. É preciso mais um para o Arsenal, só que o Liverpool troca a bola na sua defesa e os atrasos para o guarda-redes ainda valem.
Sarah está numa festa de despedida das suas alunas (ah pois, é verdade, ela é professora, daquelas metódicas e rigorosas, resumindo: a pain in the ass) e recebe um presente entregue pela chefe de turma, que a compara com George Graham, treinador do Arsenal, metódico e rigoroso.
Ali dá-se o primeiro clique. Sarah abandona a festa e vai de táxi para casa de Paul. Toca à porta de casa dele. Minuto 90, insistimos. Toca outra vez à porta. Minuto 90 e tal. Toca novamente à porta. Paul perde a compostura, abre a janela e grita sem ver quem está lá em baixo. "Will you please, please, please, please, please, please just fucking FUCK OFF? Chegaste nos 60 segundos mais importantes da minha vida e não te quero ver."
A janela fecha-se, a câmara mostra a desanimada Sarah à porta e Paul vira-se para Steve: "Que diabo de atrasado mental faria isto? Só se fosse um alien do plantel Tharg, mas mesmo assim tinha de ser muito atrasado." Apercebe-se de alguma coisa e sai porta fora.
É o segundo clique, enquanto Steve lhe diz em voz alta: "Onde vais? Podes perder alguma coisa importante." Quando chega à porta, já não está lá ninguém. Paul volta a subir as escadas, atabalhoadamente. É quando Barnes perde a bola num drible curto, demasiado curto. Richardson corta e atrasa para o guarda-redes John Lukic. Daí para o lateral Lee Dixon. O público assobia, nervoso. O lateral mete a bola no meio-campo contrário. Alan Smith domina bem e desmarca melhor. Michael Thomas recebe.
Solto no meio, o número 4 ganha o ressalto a Nicol e isola-se, Steve chama desesperadamente Paul, sem desviar os olhos da televisão. Michael Thomas entra na área do Liverpool, Paul entra em casa, Thomas dá um toque na bola, Paul atira-se para o sofá, Thomas passa a bola subtilmente por cima de Grobbelaar, Paul e Steve caem no chão, em delírio. É goooooooooooooal! O mundo cai.
O real (jogadores do Arsenal a festejar no chão) e o ficcional. Quem não vibrar, rir, vibrar novamente e dobrar o riso, esqueça. Não gosta de futebol nem é um ser humano. Que o Arsenal vs. Sporting seja assim tão vivo, delirante e grandioso.
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)
O Contacto tem uma nova aplicação móvel de notícias. Descarregue aqui para Android e iOS. Siga-nos no Facebook, Twitter e receba as nossas newsletters diárias.
