David contra Golias no regresso ao Jamor
David contra Golias no regresso ao Jamor
Olha que coisa mais linda mais cheia de graça / É ela menina que vem que passa / Num doce balanço caminho do mar.
Qual garota de Ipanema, qual quê. A coisa mais linda, mais cheia de graça é a Taça de Portugal. Óbvio. Amanhã há FC Porto vs Tondela no Jamor para animar o fim-de-semana desportivo.
É uma final inédita, entre o campeão em título e um dos recém-despromovido à Liga 2. O favorito é mais-que-evidente por força, história, estatuto e momento – se o Tondela ganha, é a maior surpresa do século.
Verdade, podemos rebater esta ideia com o espantoso Aves 2:1 Sporting em 2018. Só que o Sporting de Jesus aterra no Jamor sem rei nem roque, na ressaca do adeus à entrada directa na Liga dos Campeões por culpa de um golo do Marítimo no último minuto (que ‘casa’ de Rui Patrício) e do ataque à Academia de Alcochete. O Aves, mais tranquilo que nunca, capitaneado pelo guarda-redes Quim, ganha avanço com bis de Alexandre Guedes. O suplente Montero só reduz e o Sporting, sob brasas, acaba a época num pranto.
Verdade, podemos rebater a ideia do primeiro parágrafo com o incrível Vitória SC 2:1 Benfica em 2013. Só que o Benfica de Jesus aterra no Jamor feito num oito, na ressaca da perda dos títulos de campeão nacional (Kelvin aos 90’+1 no Dragão) e Liga Europa (Ivanovic aos 90’+2 em Amesterdão). O Vitória SC de Rui Vitória sofre o primeiro golo da tarde, por Gaitán, e deixa-se estar muito quieto até desferir dois golpes em menos de 200 segundos para atirar o Benfica para o vazio infinito.
Posto isto, insistimos na ideia de uma surpresa XXL em caso de vitória do Tondela. O caso ganha contornos ainda mais especiais se fizermos uma lista de equipas do interior com a Taça na mão. Em 82 anos de história, há cerca de zero. Ya, exacto, nem uma para amostra. O Covilhã é o primeiro clube a arriscar a façanha, em 1957, e apanha 3:1 do Benfica numa final com os irmãos Cavém a esgrimir argumentos. Domiciano pelo Benfica, Amílcar pelo Covilhã.
A mais especial de todas
Quarenta e dois anos despois, em 1999, é a vez do Campomaiorense. Essa Taça é a mais especial de todas. Primeiro, é a última de sempre sem qualquer grande. Depois, é a única sem grandes a partir dos oitavos – culpa de Gil Vicente (3:2 vs Sporting em Barcelos), Vitória FC (2:0 vs Benfica no Bonfim) e Torreense (1:0 vs FC Porto nas Antas). A última final do milenio apresenta Beira-Mar e Campomaiorense. Atenção, o Beira-Mar acabara de chorar a despromoção, à imagen do Tondela em 2022. Uma semana depois da desilusão, o máximo contraste com a alegría do golo solitario de Ricardo Sousa a dar um título à equipa treinada pelo pai António.
A última proeza de uma equipa do interior pertence ao Chaves, então relegado da 2.ª divisão para a 2.ª B. O FC Porto de Jesualdo ganha 2:1 com golos colombianos de Guarín mais Falcao. O de Clemente, a cinco minutos do fim, é só um ponto de honra para o Chaves sair ainda mais dignificado do Jamor. Segue-se agora o Tondela, da AF Viseu.
O Cracks Lamego
Nunca é demais recordar, o Cracks Lamego é a única equipa da AF Viseu com um título de campeão nacional. É o de juvenis, em 1978. O feito é ainda hoje apontado como o maior de todos entre as equipas da AF Viseu. Na série B da fase preliminar, os Cracks acumulam 10 pontos em 12 (só perdem vs Covilhã, já com o apuramento assegurado) e avançam para a ½ final. Em São João da Madeira, 2:1 vs Varzim após prolongamento. Na mesma tarde, o Sporting apanha cinco secos do Vitória FC. Tudo pronto para a grande final no dia 2 Julho.
Tudo? Nem por isso. As meias do Cracks ficam esquecidas em Lamego. Por sorte, o União Tomar também veste preto e empresta. Agora sim, tudo pronto. O Estádio 25 Abril, em Tomar, é o palco eleito pela federação para a gloriosa manhã desportiva. Às 11 horas, Francisco Rodrigues apita para o início da final. O Cracks apresenta o onze de sempre com Moisés na baliza, Martinho, José João, Vasco e Duarte como defesa, Tony, Henrique e Álvaro no meio mais Mário, Jorge Eduardo e Telmo no ataque. No banco, o treinador-presidente José Marques da Silva. É uma das relíquias do Cracks, um homem a acumular funções tão decisivas fora de campo. Aos 44 minutos, Tony liberta o grito do golo e sela a vitória pela margem mínima. Nas anteriores 16 edições do Nacional de iniciados, o campeão nunca saíra do tridente geográfico Lisboa, Porto e Coimbra. De repente, Lamego no mapa futebolístico.
Mérito para o Cracks, cujo nome assenta finalmente como uma luva. Craques mesmo. Do alto. O Vitória FC tem tradição nas camadas jovens e vê aqui uma oportunidade de ouro para fazer história, só que a qualidade do Cracks fala mais alto. Na primeira parte, só uma oportunidade de golo, desperdiçada pelo setubalense Bernardino na cara de Moisés. Após o intervalo, um centro de Álvaro é cabeceado por Tony com conta, peso e medida. Firmino estica-se, em vão. O 1:0 é o resultado final e a festa da entrega da taça ao capitão José João é ruidosa, em Tomar. Daí para a frente, e até aos nossos dias, só mais duas cidades rompem a tradição (Braga em 1981, Guimarães em 2014).
Álvaro, o "especial"
Contratados pelo Benfica na véspera da final, José João (capitão) e Tony (herói) raramente encontram espaço na grande montra do futebol. Então há algum nome incontornável desse Cracks? Ya, um nome sobressai dos restantes: Álvaro. Assim de repente, é como os chapéus do Vasco Santana no ‘Canção de Lisboa’: há muitos. Este Álvaro é especial, porque é o mais novo (só 14 anos), é da terra (Lamego) e chega ao Benfica, primeiro, e à selecção, depois. Melhor, joga todos os quatro jogos do Euro-84 como lateral-esquerdo, em perfeita sintonia com o mágico Chalana, e todos os três do Mundial-86 como lateral-direito. É dose. Generoso e combativo, Álvaro começa como médio-esquerdo e joga nessa posição na final em Tomar. Só recua para lateral na Académica, onde se faz jogador e alvo de cobiça do Benfica. No Verão 1981, Álvaro assina pelo Benfica e é amor para sempre – até 1990, como jogador, e em 2005, como adjunto de Trapattoni.
FC Porto. A dobradinha?
Craques, também, os do FC Porto 2021-22, campeões nacional em toda a linha, com recorde de pontos (91), melhor ataque (86), defesa menos batida (22), mais vitórias (29), menos derrotas (1), melhor equipa em casa e melhor equipa fora. Falta-lhe a Taça de Portugal para festejar a dobradinha. No caso de Sérgio Conceição, a segunda da sua carreira – a primeira é em 2020, já pelo FC Porto. O único treinador a fazer duas dobradinhas em três anos é brasileiro, chama-se Otto Glória e completa esse ciclo nos anos 50 pelo Benfica (1957, 1959).
Para a 1.ª divisão 2021-22, o FC Porto arruma o Tondela em dois tempos. Primeiro no Estádio João Cardoso, com hat-trick de Taremi (1:3), depois no Dragão, e outra ‘batata’ do iraniano (4:0). O desnível é evidente, David contra Golias na magia da coisa mais linda, mais cheia de graça. É ela Taça que vem e que passa.
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)
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