Escolha as suas informações

"The Banshees of Inisherin". Dizem que os ilhéus têm todos uma pancada
Opinião Cultura 1 4 min. 29.01.2023
Crítica de cinema

"The Banshees of Inisherin". Dizem que os ilhéus têm todos uma pancada

Crítica de cinema

"The Banshees of Inisherin". Dizem que os ilhéus têm todos uma pancada

Foto: DR
Opinião Cultura 1 4 min. 29.01.2023
Crítica de cinema

"The Banshees of Inisherin". Dizem que os ilhéus têm todos uma pancada

Raúl REIS
Raúl REIS
O filme é uma meditação sobre a tristeza e as feridas que não cicatrizam e, embora seja verde, verde, verde de tão irlandês, é também um filme universal.

O Zé Carlos era tido pelos meus amigos lá do escritório como um gajo com uma grande pancada. Primeiro porque era um grande desportista que ao meio-dia preferia ir correr 20 quilómetros do que almoçar no The Good Friend. Tinha um sotaque tão forte que não percebíamos muitas das coisas que dizia. 

O Zé Carlos era madeirense e, diziam os meus colegas, a malta das ilhas tem sempre uma pancada. Costumávamos concordar, sobretudo quando o Zé Carlos não estava connosco à nossa mesa do café. Na sua presença tínhamos mais cuidado, mas gostávamos muito de gozar com ele quando dizia 'delhite' em vez de 'delete' ao falar dos problemas que tinha com o seu computador...

"The Banshees of Inisherin" fez-me lembrar o Zé Carlos porque se passa numa ilha. O filme começa em 1923, num lugar proibitivamente remoto, num canto distante da Europa, as Ilhas Aran, perto da costa oeste da Irlanda.

As explosões provocadas pelos canhões podem ser ouvidas à distância em Inisherin. O barulho recorda que está a decorrer um conflito, a guerra civil irlandesa.

O filme é uma meditação sobre a tristeza e as feridas que não cicatrizam e, embora seja verde, verde, verde de tão irlandês, é também um filme universal.

Pádraic, um simples leiteiro, interpretado por Colin Farrell, é um homem sensível, um pobre diabo sem esperança. O melhor amigo de Pádraic, Colm (interpretado por Brendan Gleeson), decidiu rejeitá-lo sem aviso prévio e exige que Pádraic nunca mais lhe fale.

Esta microguerra entre ambos, reflexo da guerra que decorre ali perto, tem posições extremadas. Colm mostra-se pronto a tudo e as coisas parecem poder descambar para a violência mais sangrenta.

Mas o argumentista e realizador Martin McDonagh consegue criar um filme muito mais parecido com uma das suas peças de teatro do que com os seus anteriores trabalhos para o cinema. "The Banshees of Inisherin" é um trabalho disciplinado, com enredo impecável e transborda de suspense. 

Como muitas das peças de Martin McDonagh, mas nenhum dos seus filmes, a obra tem a sua ação no passado da Irlanda. O título do filme até sugere que o realizador brinca com "The Lieutenant of Inishmore" ou "The Cripple of Inishmaan". (Convém dizer que Inishmore e Inishmaan são ilhas de Aran que efetivamente existem, enquanto Inisherin foi inventada).

"The Banshees of Inisherin" é em parte sobre não falar ou sobre não-conversas. A discussão entre os protagonistas é algo que se encontra no estado gasoso. A conversa entre os dois protagonistas e os outros a quem eles explicam a sua zanga é tão intrincada e brilhante como os melhores e brilhantes sketches de comédia.

Brendan Gleeson é um dos protagonistas do filme.
Brendan Gleeson é um dos protagonistas do filme.
Foto: DR

O filme é uma meditação sobre a tristeza e as feridas que não cicatrizam e, embora seja verde, verde, verde de tão irlandês, é também um filme universal. Numa observação fulminante, e aludindo à capacidade infinita que têm os irlandeses para guardarem rancores e ressentimentos, no final do filme alguém reflete sobre o conflito bélico e diz: "Acho que está a acabar, não é?". Hoje, 100 anos depois, parece que a resposta continua a ser não.

McDonagh, que nasceu em Londres, vê a Irlanda (de onde são os seus pais) como um lugar de hostilidade eterna difícil de explicar. E, no entanto, com um pouco de abertura, não é difícil reconhecer outras culturas nessas personagens. Talvez até seja possível vermos as nossas próprias manias e falhas. Pádraic e Colm mostram como a insatisfação se transforma em desconfiança, que depois se transforma em antipatia e acaba por se tornar em raiva e fúria.

Numa cena deliciosamente surpreendente num confessionário, descobrimos que o verdadeiro problema é profundo. O confessor de Colm pergunta: "Como está o desespero?". Uma questão que poucos padres colocam, ou colocavam, no tempo em que eu ia à igreja. Mas esse desespero anda mesmo por aí. E nos últimos anos talvez mais do que aquilo a que estávamos habituados...

No final de "The Banshees of Inisherin", quando as coisas são quase irreconhecíveis em comparação com o início, todos na cidade se questionam: como chegamos aqui? Uma pergunta que as pessoas civilizadas se vêm colocando nos últimos anos quando leem os comentários nas redes sociais ou ouvem alguns líderes populistas. E afinal, se os ilhéus têm uma pancada, parece que toda a Humanidade sobre a mesma maleita.

Duro, mas engraçado, silencioso, mas deixando ecos, "The Banshees of Inisherin" é uma pequena comédia estranhamente profunda, longe de receitas de Hollywood, e vai ser um dos grandes filmes deste ano (e, sim, eu sei que ainda estamos em janeiro).

Os vídeos 360 não têm suporte aqui. Ver o vídeo na aplicação Youtube.

O Contacto tem uma nova aplicação móvel de notícias. Descarregue aqui para Android e iOS. Siga-nos no Facebook, Twitter e receba as nossas newsletters diárias.