"Squid Game". Não façam isto em casa
"Squid Game". Não façam isto em casa
A nova coqueluche da Netflix é acusada de roubar inspiração aos filmes de sobrevivência tais como "Battle Royale" ou "The Hunger Game", mas o seu criador, o coreano Hwang Dong-Hyuk, de 50 anos, garante ter começado a escrever o argumento muito antes, em 2008, tendo em mente fazer um filme."Admito que me inspirei muito em mangas e animes japoneses", disse à revista americana Variety, confessando que quando começou a escrever a história "estava numa situação financeira péssima e passava muito tempo em cafés a ler as bandas desenhadas 'Battle Royale' e ‘Liar Game'".
Hwang Dong-Hyuk diz que sempre achou esses enredos demasiado complexos e, por isso, tentou inspirar-se em "jogos infantis". O criador de "Squid Game" afirma que o seu objetivo era escrever uma alegoria sobre a sociedade capitalista moderna, "algo que mostrasse a competição extrema que é a vida dos nossos dias".
O protagonista da série é um tipo que não pode viver sem jogar mas que é um azarado à moda antiga. Seong Gi-hun encontra-se profundamente endividado, divorciado, e luta para manter a relação com a sua filha menor. Seong tem uma dívida de jogo enorme. A esperança surge durante um encontro com alguém que o alista para participar num jogo muito especial. Seong Gi-hun acorda num local digno de filme de James Bond, isolado do resto do mundo, onde centenas de concorrentes se defrontam em jogos infantis com a promessa de uma enorme riqueza: o vencedor pode ganhar quase 40 milhões de euros, mas os derrotados morrem.
A Coreia do Sul surpreende-nos regularmente e não é só a fazer telemóveis ou carros. No domínio cultural global, os coreanos já influenciam o mundo com a K-pop, e um filme-fenómeno chamado "Parasite" foi Palma de Ouro em Cannes e conquistou um Óscar para o melhor filme, apesar de ser falado em coreano. Esta consagração veio apenas confirmar a crescente presença da Coreia do Sul no mundo do cinema. A Netflix percebeu bem a tendência e está a investir 500 milhões de dólares em conteúdo coreano apenas este ano.
Apesar de um ambiente e muitos detalhes puramente coreanos, os temas abordados encontram eco mundial e são a chave para o sucesso global de "Squid Game".
Ainda que "Squid Game" pretenda claramente denunciar como o dinheiro pode levar as pessoas a cometerem atos inenarráveis, a mensagem anticapitalista que o criador da série diz estar implícita, desaparece no meio de muita violência.
A denúncia da brutalidade social é feita através de brutalidade desenfreada na ação; em "Squid Game" o sangue flui livremente, mas há elementos ainda piores e mais assustadores do que os excessos de hemoglobina. É por isso natural que o sucesso da série – enorme junto dos adolescentes de todo o mundo – esteja a preocupar pais e educadores. Em Paris, no fim de semana de 2 e 3 de outubro, a abertura de uma loja pop-up dedicada à série causou uma fila interminável à chuva e uma zaragata entre jovens fãs de "Squid Game".
Os trajes vermelhos dos guardas da série e os fatos de treino verdes dos participantes no jogo já se vendem com grande sucesso em várias plataformas e prometem ser um sucesso para as festas de Halloween. Já as vendas das sapatilhas brancas dos jogadores multiplicaram-se por 800 durante as três semanas que se seguiram ao lançamento da série na Netflix.
Mais problemático: o que até agora eram apenas brincadeiras inocentes de crianças, transformaram-se em jogos muito mais violentos inspirados na série. A Bélgica, onde a série não é recomendada, tal como em França, a menores de 16 anos, foi a primeira a soar o alarme. O jogo "1,2,3, Soleil" (que em Portugal se chama “1, 2, 3, macaquinho do chinês”) espalhou-se nas escolas belgas em versão violenta: os perdedores são espancados ou chicoteados na cara, o que já levou a medidas de alerta por parte das autoridades.
"Squid Game" é uma obra que leva a fazer reflexões pós-apocalípticas sobre como poderemos comportar-nos em condições extremas. Enquanto Gi-hun luta freneticamente para localizar alguma coisa boa no abismo da desumanidade em que se encontra, a série torna-se mais intensa e horripilante porque parece não haver fundo no abismo.
Não é fácil ver "Squid Game", a não ser que o leitor seja um fã de filmes de terror daqueles com muito sangue, mas as belas imagens cativam desde o início, embora funcionem melhor quando ainda não percebemos o que está para vir. Quando os olhos da boneca aterrorizante veem tudo e não há esperança de escapar...
À medida que a ação avança e "Squid Game" busca respostas, a série torna-se menos surpreendente e menos virtuosa visualmente. Não estamos perante o tipo de história de apocalipse que termina com uma hollywoodesca esperança na resiliência humana. "Squid Game" é uma desesperante fábula que confirma que o dinheiro deve certamente trazer a felicidade, senão não seríamos capazes de tais crueldades para o obter.
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