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"Quero que os meus filmes sejam mais do que uma expressão artística, quero que sejam de mudança"
Cultura 2 11 min. 24.09.2020 Do nosso arquivo online

"Quero que os meus filmes sejam mais do que uma expressão artística, quero que sejam de mudança"

"Quero que os meus filmes sejam mais do que uma expressão artística, quero que sejam de mudança"

Foto: DR
Cultura 2 11 min. 24.09.2020 Do nosso arquivo online

"Quero que os meus filmes sejam mais do que uma expressão artística, quero que sejam de mudança"

Ana TOMÁS
Ana TOMÁS
Depois do sucesso estrondoso que obteve no Festival de Veneza, o seu filme 'Listen' vai estrear daqui a um mês nos cinemas portugueses.

"Muito surpreendida e sensibilizada" é como Ana Rocha de Sousa ainda se sente, semana e meia depois do sucesso estrondoso que o seu filme obteve no Festival de Veneza e a um mês de o estrear nos cinemas portugueses. 'Listen' é a primeira longa-metragem da atriz e conquistou quatro prémios naquele que é um dos certames mais reputados do mundo na indústria cinematográfica. Um feito para a sétima arte portuguesa que lhe incute a responsabilidade de continuar. 

Inspirado em factos reais, 'Listen' trata a história de uma família portuguesa emigrada no Reino Unido, a quem os serviços sociais retiram os três filhos menores, por suspeita de maus tratos. Ana Rocha de Sousa quis fazer a dramatização desses casos, amplamente noticiados, que a tocaram de várias maneiras. "Tinha sido mãe pouco tempo antes, tinha vivido em Inglaterra muitos anos e a possibilidade de aquela realidade poder ser efetivamente aquilo que parecia era muito chocante e perturbadora", confessou em entrevista ao Contacto.

O realismo social rendeu-lhe associações ao consagrado realizador britânico Ken Loach, ainda que 'Listen' seja "genuinamente" seu, feito sem pensar em referências e a partir do que diz ser uma visão "muito estrangeira, muito portuguesa e muito de mãe". O filme foi rodado nos arredores de Londres e é protagonizado por Lúcia Moniz e Ruben Garcia, que lideram um elenco português e inglês. A mensagem da história que conta pode não ditar, para já, o percurso de direção que a realizadora quer trilhar, mas o seu impacto é demasiado forte para não se refletir na escolha de temas que quer que vão para além da mera expressão artística.

'Listen' tem Lúcia Moniz como uma das protagonistas
'Listen' tem Lúcia Moniz como uma das protagonistas
Foto: DR/Divulgação

A sua primeira longa-metragem, 'Listen', venceu o 'Leão de Futuro', de primeira obra, o prémio especial do júri 'Horizontes', o prémio 'Bisato d'Oro' de melhor realização e o prémio 'Sorriso Diverso Venezia', estes dois últimos galardões paralelos do evento. Agora, que já passou mais de uma semana desde o festival como é que olha para este múltiplo reconhecimento? 

Continuo muito surpreendida e muito sensibilizada. E também me traz um sentido grande de responsabilidade. Não é que antes não tivesse, mas é diferente, é perceber que já não é uma coisa que eu apenas quero fazer. A partir do momento em que me são atribuídas distinções para continuar a fazê-lo, tenho essa obrigação de o fazer e fazer mais e melhor. 

Mas sente alguma pressão acrescida, ou sente liberdade para fazer uma pausa a seguir e voltar a trabalhar como atriz, por exemplo? 

Eu não vou fazer uma pausa para me dedicar a outra coisa, a minha pausa é para me dedicar ao próximo projeto enquanto realizadora. Se entretanto surgir outra coisa que me faça sentido, também poderei fazer. Mas não tenciono fazer uma pausa para nada que não seja efetivamente concentrar-me nos meus próximos filmes. 

Este filme inspira-se em crianças retiradas aos pais, no Reino Unido, um processo que já afetou várias famílias emigrantes portuguesas. Porque se interessou por este tema e por que o quis retratar em forma de ficção? Interessei-me pelo tema porque fiquei muito chocada com a possibilidade disto acontecer. Eu tinha sido mãe pouco tempo antes, tinha vivido em Inglaterra muitos anos e a possibilidade de aquela realidade poder ser efetivamente aquilo que parecia era muito chocante e perturbadora. E então fui pesquisar e ao pesquisar percebe-se que o sistema está efetivamente a tentar proteger as crianças, mas o problema é que não está a ser eficaz, porque está a prejudicar muitas famílias que às vezes são inocentes e quando são inocentes a tragédia é irreversível. O meu pai foi juiz e foram-me passadas, ao longo da vida, as noções de justiça de liberdade, e este tema vai muito contra estas duas noções básicas de direitos humanos. 

Ana Rocha, premiada no festival de Veneza, pela sua primeira longa-metragem, 'Listen'.
Ana Rocha, premiada no festival de Veneza, pela sua primeira longa-metragem, 'Listen'.
Foto: AFP

Chegou a falar com alguma das famílias portuguesas, envolvidas nesse processo, durante a preparação para o filme? 

Como opção, inicialmente aquilo que fiz foi uma pesquisa através de fontes muito rigorosas e com ajuda jornalística, sem iniciar esse contacto. Pus essa possibilidade para mais tarde, a possibilidade de colocar os atores em contacto com essas famílias, mas acabou por se decidir fazer [o filme] só através do contacto com instituições, advogados, com a associação de surdos, de pesquisa... Sentimos que, da outra forma, seria quase uma invasão à vida daquelas pessoas, porque a dor delas está espelhada na comunicação social. Aquilo que tínhamos de confirmar era o outro lado e existe mesmo muita informação disponível e credível. Depois todas aquelas outras fontes que tivemos foram fundamentais para ter um cruzamento dessa informação e confirmar o que era correto.   

Ainda assim, o filme parte do drama de uma família, em concreto. Como é que é esta família do 'Listen'? 

É uma família em condições muito precárias, com uma situação financeira muito difícil, isolada e muito inadaptada, que já vive no Reino Unido há bastantes anos e que se percebe que já tem um histórico para trás. Portanto, quando começa o filme, compreendemos que existe esse histórico e que não tem sido fácil a sua ligação à Segurança Social [britânica]. É uma família portuguesa em que sentimos que a educação das crianças já é britânica. 

Ao mesmo tempo será também um retrato, ainda que partindo de uma situação específica, daquilo por que alguns emigrantes portugueses passam, muitas vezes, nos países de acolhimento. 

Sim, é um retrato que tenta ser mais fiel à realidade do que ao sonho, porque de uma forma geral nós temos muito a tendência para acreditar que lá fora a vida é melhor, voando e indo atrás dos sonhos, acreditando que as coisas melhoram sempre. E não é sempre assim. 

Falando em realidade, houve quem comparasse o 'Listen' ao traço de realismo social do realizador Ken Loach. Como é que vê essa comparação? É o tipo de cinema que a inspira? 

Eu não posso dizer que não acho a comparação quase como um prémio também [risos]. No entanto, por acaso, o júri da crítica faz uma referência com que me identifico mais. Ou seja, no parágrafo que escrevem sobre o porquê de atribuírem o prémio, uma das coisas que dizem é que eu não seguindo nunca os traços de Ken Loach também não vou contra a essência do cinema dele. Acho que onde eu o encontro é no tema, não na forma como este é abordado. O trabalho dele é tão respeitado, que sentirei sempre isso como uma grande honra, mas este filme não foi feito com o Ken Loach em mente. Embora perceba a associação, é tão genuinamente meu! 

Talvez por também ter a preocupação em passar uma mensagem real e social?

Claro. Tem a ver com isso e acho que tem a ver com outra coisa. Eu estudei três anos na London Film School, onde o realismo social é inevitavelmente característico e eu acho que vem daí. Mas o meu filme é, evidentemente, uma visão muito estrangeira, muito portuguesa e muito de mãe. 

Como é que essa visão portuguesa trabalhou com um elenco que não é só português, que é também britânico? Como é que foi essa experiência? 

Essa experiência foi muito enriquecedora, mesmo muito, porque, enquanto realizadora, dirigir atores portugueses com quem estabeleço uma conexão muito mais rápida, por causa da língua e até do histórico de ligação que já tinha tanto à Lúcia como ao Ruben, é um campo mais fácil. Existe uma confiança e uma entrega que ajuda muito ao filme. Os desafios que encarei a dirigir atores ingleses foram fascinantes. Com o ator Brian Bovell tive um entendimento muito especial, é uma pessoa com quem quero trabalhar, definitivamente, mais vezes. Aquilo que me fascina e que guia os meus filmes é sempre o trabalho do ator. Se tiver que abdicar da estética, da linguagem, de tudo, abdico. Não abdico da interpretação, do espaço e da liberdade para um ator poder trabalhar. Mas voltando à pergunta, dirigir em português ou em inglês tem características diferentes. E quando acrescentámos à equação dirigir uma menina com um talento incrível, que é a Maisie Sly, que é surda e com quem tive de comunicar ora através de intérprete, ora através de língua gestual que domino muito pouco, foi magia. 

Em que sentido? 

Houve espaço para uma comunicação que eu acho que foi pura magia, porque ela sabendo, com uma idade tão tenra, que eu não a compreendia como ela estava habituada a comunicar, teve o cuidado de fazer com que eu a entendesse, com gestos que não seriam expectáveis. E isso foi muito especial.

É o facto de ter um percurso como atriz que a faz querer ter esse tipo de realização, focado na liberdade do ator? 

Acho que a razão é essa e só essa. O facto de ter sido atriz faz com que eu queira que os atores tenham aquilo que eu gostava que me dessem a mim quando estou em frente à câmara, que é essa confiança e essa liberdade. E, acima de tudo, dar oportunidade de a pessoa explorar o seu próprio espaço e ter o seu próprio papel. Não me vejo a marcar as cenas de uma forma absolutamente rígida e quadrada, ao milímetro, porque o ator tem que experimentar e tenho esperança que ao longo dos anos me vá sendo cada vez mais possível explorar essa liberdade. Gosto que a liderança venha dos atores. 

Conhecemo-la primeiro como atriz, em séries de televisão e novelas. Quando é que decidiu que também queria realizar? 

Foi acontecendo, fui descobrindo. Não foi uma coisa que começasse por dizer muito cedo. Sempre disse, desde pequenina, que queria ser atriz e acho que foi por conseguir ser atriz, por ir fazendo tanta coisa e por pensar "e agora?" que percebi que, se calhar, havia coisas que não iria ter a oportunidade de fazer enquanto atriz e que as que tinha tido oportunidade de fazer já tinha feito. Foi essa associação de coisas e o começar a perceber que o meu lado é realmente criar, fazer e estar nesse processo. E com a junção das Belas Artes e com o facto de ter estudado pintura, de ter começado depois a descobrir a fotografia, a fazer instalações de vídeo e a experimentar instalações com o espaço. Percebi que juntar fotografia, imagens, espaço, estética e interpretação tem um nome e foi atrás disso que fui. 

Foto: DR


O tipo de histórias que traz com o 'Listen' é o que quer fazer no seu percurso como realizadora, ou este ainda não está definido?
 

Não tenho ainda um trajeto absolutamente definido, nem acho que faça sentido ter, porque essas coisas são para se ir construindo, e é por isso que os realizadores passam por diversas fases. Neste momento, e depois de fazer um filme como o 'Listen' e de perceber a importância, a força do cinema e da mensagem, acho que é impossível se descubro essa força não a seguir e não procurar temas que sejam "perturbadores". Quero que os meus filmes sejam mais do que uma expressão artística, quero que sejam de mudança, cheguem às pessoas e sirvam para mais do que preencher o seu tempo ou satisfazer as necessidades de entretenimento. 

Sente que os prémios que ganhou em Veneza são também para o cinema português? 

O cinema português tem uma história muito bonita. É um cinema que está no mundo, mesmo com as grandes limitações que existem e com as dificuldades de sermos um país pequeno. Ultrapassando essas coisas e os pequenos orçamentos, o nosso cinema tem chegado sempre muito longe. Não podemos esquecer que o Manoel de Oliveira ganhou um Leão de Ouro de carreira e que outras pessoas ganharam prémios muito importantes, inclusivamente em Veneza. Mas gostaria que vissem que também já faço parte. 

O seu filme estava previsto estrear em Portugal só para o ano, mas vai chegar às salas já no dia 22 de outubro. Em Veneza, agradeceu à organização  por realizar o evento em formato presencial, apesar da pandemia, e de isso significar uma certa esperança no futuro para a arte do cinema. Vê no facto de o seu filme estrear agora também um significado semelhante, nestes tempos ainda sombrios? 

Espero que o facto de as pessoas terem pedido tanto para o filme estrear, as leve a irem vê-lo. E digo isto não apenas por ser o meu filme, mas no sentido de voltarmos a ter pessoas nas salas - claro que com segurança, com o distanciamento obrigatório, com as máscaras. Mas eu espero profundamente que as pessoas vão ao cinema, porque de outra forma iremos perder, iremos perder para uma pandemia. Deixar de viver não me parece que seja uma solução para lutar contra qualquer pandemia ou qualquer que seja o problema. O medo e viver com o medo... para mim, isso não é viver.

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